OBRIGATORIEDADE
DE REALIZAÇÃO DE INQUÉRITO CIVIL
Adilson
Abreu Dallari
Professor
Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da PUC/SPE
I - Colocação do problema
O Ministério Público, assim como, por exemplo, o Tribunal de
Contas, é uma instituição de nível constitucional. Suas relevantíssimas
finalidades estão expressas no art. 127 da Constituição Federal, de cujo texto
nada consta a indicar que ele possa ser havido ou como um Poder acima de todos
os poderes ou como um substituto perfeito do cidadão:
"Art. 127. O Ministério
Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis". |
Ou seja, o Ministério Público é uma instituição legal, no sentido
de que está inserido na ordem jurídica nacional, sendo dotada de poderes e
responsabilidades. Como toda e qualquer entidade ou instituição pública, tem um
caráter eminentemente instrumental, destinando-se, no campo de suas
atribuições, a atuar no sentido da realização do interesse público.
Os interesses próprios e específicos da instituição Ministério Público e de
seus integrantes são interesses secundários em relação ao interesse público,
entendido como o interesse comum de toda a coletividade.
Por exemplo: não pode o Ministério Público valer-se de provas obtidas por meios
ilícitos nem para defender a ordem jurídica, pois isso seria até mesmo uma
contradição. Enfim, o Ministério Público é dotado de poderes jurídicos
necessariamente limitados, como é elementar à ordem jurídica, pois direito é
sempre limitação; todo direito é limitado.
Voltando ao texto constitucional, cabe destacar o disposto no parágrafo
primeiro desse mesmo artigo acima transcrito, onde estão enumerados os
princípios fundamentais do Ministério Público:
|
Esta independência funcional deve ser entendida como liberdade de
atuação dentro dos quadrantes da ordem jurídica, dentro dos limites
estabelecidos pela Constituição e pelas leis em geral. Independência não
significa liberdade absoluta.
Para que o Ministério Público, único, indivisível e independente, possa atingir
suas finalidades de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos
interesses sociais e individuais indisponíveis, com independência, o próprio
texto constitucional já lhe define as funções:
"Art. 129 - São funções
institucionais do Ministério Público: ...
|
Cabe, portanto, ao Ministério Público promover a ação civil
pública e instaurar o inquérito civil, figura esta que representa uma novidade,
algo que não tem tradição no ambiente jurídico nacional, mas que, pelo que
indica a denominação, deve ter uma natureza e uma finalidade análogas às do
inquérito policial, já tradicional no direito brasileiro.
O problema está em que, enquanto a ação civil pública é
suficientemente disciplinada na legislação específica, complementada pela
legislação processual civil, o inquérito civil não tem disciplina legal.
O art. 8º da Lei nº 7.347, de 24/07/85 (Lei da Ação Civil Pública), apenas
afirma, em seu § 1º, que "O Ministério Público poderá instaurar, sob sua
presidência, inquérito civil...", sem indicar qualquer parâmetro a
respeito de quando essa providência é necessária ou de quando ela é
dispensável.
Alguns, menos avisados, menos afeitos à interpretação sistemática das normas
jurídicas, atendo-se exclusivamente à literalidade do texto isolado, vislumbram
nessa falta de parâmetros expressos uma total liberdade, uma discricionariedade
absoluta, para instaurar ou não o inquérito civil, ao puro arbítrio da
autoridade ministerial competente, no exercício de sua independência funcional.
Não é isso, entretanto, o que emana de uma análise do assunto, quando feita no
contexto da ordem jurídica, segundo os mais prestigiados métodos
interpretativos.
II – Interpretação das normas jurídicas
Interpretar um texto normativo é algo mais do que ler a seqüência
de palavras que o integram. Por certo, qualquer pessoa alfabetizada é capaz de
ler um texto normativo, mas somente alguém dotado de conhecimentos técnicos
científicos em Direito é capaz de apreender todo o seu conteúdo, retirando daí
ilações de ordem prática.
Antes de se aplicar qualquer disposição normativa a um caso concreto é preciso
interpretá-la, até para se saber se ela se aplica efetivamente ao específico
caso em pauta.
O que é interpretar um dispositivo legal? Quem responde com excepcional clareza
a essa pergunta é EROS ROBERTO GRAU, na parte inicial de seu "Licitação e
Contrato Administrativo" (Malheiros Editores, 1995, pág. 5 e 6 ):
|
Mas nenhuma disposição normativa tem vida fora do contexto em que
está necessariamente inserida. O universo normativo não é um amontoado caótico
de prescrições, mas, sim, um sistema, organizado, articulado e hierarquizado,
no qual as contradições são apenas aparentes.
Nunca se pode apreender a totalidade do conteúdo normativo de um dispositivo
legal isolado, sem relacioná-lo com outros dispositivos e, muito especialmente
com princípios contidos no ordenamento jurídico do qual ele é apenas uma parte.
A correta elaboração desse relacionamento exige conhecimentos científicos
específicos. A ciência que cuida da interpretação das normas jurídicas é a
hermenêutica.
Entre os cultores dessa ciência destaca-se a figura exponencial de CARLOS
MAXIMILIANO, de cuja obra "Hermenêutica e Aplicação do Direito" (Ed.
Forense, Rio, 1984, págs. 128 e 129), foi extraída a seguinte passagem:
"O Direito objetivo não é
um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo
regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em
interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De
princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se
condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que
constituem elementos autônomos operando em campos diversos.
|
A hermenêutica cuida do estudo dos diversos métodos
interpretativos, tais como o literal, o lógico-gramatical, o histórico, o
teleológico etc. Não é o caso de se proceder aqui a um estudo de cada um desses
métodos, destacando suas respectivas características. Basta assinalar a opção
feita pelo uso do método sistemático, cujas características e virtudes são
salientadas por JUAREZ FREITAS ("A Interpretação sistemática do
Direito", Malheiros Editores, 1995, pág. 54) nos seguintes termos:
"Destarte, assumindo uma
ótica ampliativa e mais bem equipada, a interpretação sistemática deve ser
definida como uma operação que consiste em atribuir a melhor significação,
dentre várias possíveis, aos princípios, às normas e aos valores jurídicos,
hierarquizando-os num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando
antinomias, a partir da conformação teleológica, tendo em vista solucionar os
casos concretos". |
Além da opção pelo método sistemático, cabe também destacar uma
segunda opção metodológica, qual seja aquela que dá maior relevância aos
princípios jurídicos em relação às simples regras específicas de conduta.
Porém, no contexto da Constituição Federal, são, afirmados vários
princípios jurídicos, de maior ou menor amplitude e hierarquia, sendo que
alguns deles recebem do próprio texto constitucional a qualificação de
fundamentais, enquanto outros, ainda que sejam apenas implícitos, têm sua importância
decorrente do fato de se relacionarem a pontos estruturais da conformação do
Estado Brasileiro.
Tudo isso deve ser sopesado, conforme ensina ROQUE CARRAZZA, na
parte introdutória de seu "Curso de Direito Constitucional
Tributário" (Malheiros, São Paulo, 6ª edição, 1994, pág. 30):
"Resulta do exposto que um princípio jurídico é
inconcebível em estado de isolamento. Ele -- até por exigência do Direito
(que forma um todo pleno, unitário e harmônico) -- se apresenta sempre
relacionado com outros princípios e normas, que lhe dão equilíbrio e
proporção e lhe reafirmam a importância. O jurista, ao examinar o Direito, deve considerar as idéias que mais se aproximam da universalidade dos
princípios maiores; com isto, formará proposições e terá verdades menos gerais.
Em seguida, tomará as idéias que mais se aproximem,
por sua universalidade, das descobertas que acabou de fazer, concebendo novas
proposições e continuando, desta maneira, sempre sem deixar de aplicar os
primeiros princípios a cada proposição que descobrir. Descerá, então, pouco a
pouco, dos princípios gerais às normas jurídicas mais particulares,
caminhando, na medida do possível, do conhecido para o desconhecido. Realmente, mesmo sem detenças maiores, nota-se que o Direito,
longe de ser um mero conglomerado de normas, é um conjunto bem estruturado de
disposições que, interligando-se por coordenação e subordinação, ocupam, cada
qual, um lugar próprio no ordenamento jurídico (Ferrara). É precisamente sob
este imenso arcabouço, onde sobrelevam os princípios, que as normas jurídicas
devem ser consideradas". |
O princípio, por sua importância, serve exatamente para orientar a
interpretação e a aplicação de toda e qualquer norma. Na ausência de norma
específica, o princípio condiciona ou determina, diretamente, a atuação do
agente da administração.
Seja permitido transcrever aqui alguns apontamentos feitos por
GERALDO ATALIBA, em sua notável monografia sobre "República e
Constituição" (RT, São Paulo, 1985, págs. 5 e segs.) a respeito do valor
da noção de princípio:
"Os princípios são as
linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico.
Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente
perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos).
|
Nem mesmo o legislador pode criar, extinguir ou modificar direitos
(por lei) contrariando um princípio. Com muito maior razão os agentes públicos,
no momento da aplicação da lei, mediante a produção de específicos atos
administrativos, devem estar atentos para os valores contidos e, especialmente,
para as finalidades apontadas nos princípios.
Isto também se aplica, obviamente, ao Ministério Público, no
tocante à prerrogativa de instaurar o inquérito civil.
III - Deveres e limites inerentes à competência
Toda regra de competência estabelece poderes/deveres, mas, ao
mesmo tempo, fixa limites. O inciso III, do art. 129 da Constituição Federal,
supra transcrito, deixa claro que o Ministério Público tem o poder/dever de
defender interesses difusos e coletivos, significando, também, que não lhe
compete substituir-se ao cidadão defendendo interesses individuais disponíveis.
Igualmente, por força do princípio federativo e da imanente autonomia
administrativa das pessoas jurídicas de capacidade política, não compete ao
Ministério Público defender interesses patrimoniais da União, da Fazenda
Nacional, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, pois, para isso
existe a advocacia pública, que também tem "status" constitucional.
A defesa dos interesses patrimoniais da Administração Pública pelo
Ministério Público, entretanto, pode e deve ser feita exatamente junto aos
Tribunais de Contas, dentro dos quais a instituição (una e indivisível) tem
seus representantes, cuja presença é assegurada pela própria Constituição
Federal:
"Art. 130 - Aos membros do
Ministério Público junto aos Tribunais de Contas aplicam-se as disposições
desta seção pertinentes a direitos, vedações e forma de investidura". |
O conjunto dos dispositivos constitucionais acima transcritos
circunscreve as atribuições do Ministério Público no tocante aos interesses
patrimoniais da Administração Pública e às contas públicas. Nenhuma ampliação a
esse extenso universo pode ser feito por lei ordinária, pois isso acarretaria
invasão do espaço constitucionalmente reservado a outros órgãos ou entidades,
quebrando a harmonia institucional.
Todavia, interpretações "data venia"
indigentemente literais de fragmentos da legislação ordinária têm levado a
conclusões inaceitáveis, no tocante à competência do Ministério Público com
relação às atribuições mencionadas no acima transcrito inciso III do art. 129
da Constituição Federal.
O primeiro desses deslizes interpretativos diz respeito a uma
suposta liberdade absoluta para a instauração, ou não, de inquérito civil, ao
puro e insindicável arbítrio de qualquer membro do Ministério Público.
Conforme o magistério de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO,
("Curso de Direito Administrativo", Malheiros Editores, 11ª edição,
1999, pág. 31 a 39), por força do princípio da obrigatoriedade do desempenho da
atividade pública, toda competência conferida à Administração Pública acarreta
sempre, necessariamente, o dever de exercê-la. Para isso, para exercitar suas
competências em favor da coletividade, para satisfazer um interesse qualificado
como público é que a Administração desfruta de prerrogativas:
"Quem exerce "função
administrativa" está adscrito a satisfazer interesses públicos, ou seja,
interesses de outrem: a coletividade. Por isso, o uso das prerrogativas da
Administração é legítimo se, quando e na medida indispensável ao atendimento
dos interesses públicos; vale dizer, do povo, porquanto nos Estados
democráticos o poder emana do povo e em seu proveito terá de ser exercido. Tendo em vista este caráter de
assujeitamento do poder a uma finalidade instituída no interesse de todos --
e não da pessoa exercente do poder --, as prerrogativas da Administração não
devem ser vistas ou denominadas como "poderes" ou como
"poderes-deveres". Antes se qualificam e melhor se designam como
"deveres-poderes", pois nisto se ressalta sua índole própria e se
atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever,
sobressaindo, então, o aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão
suas inerentes limitações". "Em suma, o necessário --
parece-nos -- é encarecer que na administração os bens e os interesses não se
acham entregues à livre disposição da vontade do administrador. Antes, para
este, coloca-se a obrigação, o dever de curá-los nos termos da finalidade a
que estão adstritos. É a ordem legal que dispõe sobre ela". "O princípio da
obrigatoriedade do desempenho da atividade pública traduz a situação de "dever"
em que se encontra a Administração -- direta ou indireta -- em face da lei. O interesse público, fixado por
via legal, não está à disposição da vontade do administrador, sujeito à
vontade deste; pelo contrário, apresenta-se para ele sob a forma de um
comando. Por isso mesmo a prossecução das finalidades assinaladas, longe de
ser um "problema pessoal" da Administração, impõe-se como obrigação
indiscutível". |
Em síntese, dado o caráter instrumental da Administração Pública,
em seu sentido mais amplo (excluídas apenas as atividades de natureza política;
de formação da vontade do Poder Público), pode-se dizer que no exercício da
função pública não existem prerrogativas puras.
Ressalvadas as decisões tipicamente políticas, toda e qualquer
decisão de agente público deve ser devidamente motivada. Obviamente, o motivo
não se confunde com a pura vontade do agente. O motivo sempre haverá de ser
algo de ordem pública, algo ditado pelo dever atender ao interesse público,
algo concreto, sindicável, aferível, controlável.
IV - O dever de instaurar
inquérito civil
Aplicando-se tais ensinamentos à competência para a instauração de inquérito
civil, fica espantosamente claro que isso não pode ser tomado como uma
prerrogativa pura, como mera faculdade, como questão de foro íntimo, como
matéria totalmente submetida ao puro arbítrio do membro do Ministério Público.
Felizmente, já existem insuspeitas e respeitáveis opiniões
doutrinárias mais lúcidas a esse respeito:
"O inquérito civil não é em
si uma função, e sim um instrumento, que legitima, implicitamente, o
exercício da função investigatória. Note-se que quando prevê o
inquérito civil, para, em seguida, tratar de valores essenciais para a
sociedade, ligando aquele à proteção desses valores, a Constituição Federal
deixa claro que o inquérito civil é um instrumento para aquele fim, mesmo
porque quem quer os fins quer, explícita ou implicitamente, os meios. Então, claro está que a Carta
Federal confere ao Ministério Público um poder investigatório voltado para a
apuração de lesões ou ameaças de lesões àqueles valores. Esse poder investigatório
constitui função exclusiva do Ministério Público, pois a Constituição Federal
ressalvou a legitimação concorrente apenas para a ação civil pública (art.
129, § 1º), não o fazendo relativamente ao inquérito civil. Além disso, a
própria Lei 7.347/85, estabelece, como visto inicialmente, a exclusividade do
inquérito civil para o Ministério Público, reafirmando a impossibilidade da
competência concorrente para a função investigatória na matéria, por meio do
inquérito civil. Como todo poder, é um
poder-dever e assim não pode deixar de ser exercido. Todavia, como é óbvio,
em nome e na defesa desses mesmos valores, esse poder não deve transformar-se
em instrumento de devassa, porém em instrumento para investigação e a
apuração de elementos e fatos necessários para a promoção de ação pública,
civil ou penal, para a proteção do patrimônio público e social e de
interesses difusos e coletivos". |
JOSÉ EMMANUEL BURLE FILHO, "Principais aspectos do inquérito
civil, como função institucional do Ministério Público" in "Ação
Civil Pública", coordenador: Édis Milaré ,
RT. 1995, pág. 321 e 322.
HELY LOPES MEIRELLES, ao discorrer sobre a prioritária legitimação
do Ministério Público para a propositura da Ação Civil, faz uma importantíssima
ressalva:
"Mas esses poderes
atribuídos ao Ministério Público para, a propositura da ação civil publica não justificam o ajuizamento de lide temerária ou
sem base legal, nem autorizam a concessão de liminar suspensiva de obras e
serviços públicos ou particulares regularmente aprovados pelos órgãos
técnicos e administrativos competentes, sob a simples alegação de dano ao
meio ambiente" . |
Hely Lopes Meirelles, "Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação
Civil Pública, Mandado de Injunção e Habeas Data", 16ª edição, RT, p. 126.
Em abono de sua posição HELY LOPES MEIRELLES reproduz esta
expressiva manifestação do hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, JOSÉ
CELSO DE MELLO FILHO emitida quando no exercício do cargo de Assessor do
Gabinete Civil da Presidência da República:
"O inquérito civil, em
suma, configura um procedimento preparatório, destinado a viabilizar o
exercício responsável da ação civil pública. Com ele, frustra-se a
possibilidade, sempre eventual, de instauração de lides temerárias". |
(Apud, Hely Lopes Meirelles, "Mandado de Segurança, Ação
Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção e Habeas Data", 16ª
edição, RT, p. 125, nota "3").
Não se pretende sustentar que a realização do inquérito civil seja
condição indispensável para a propositura de toda e qualquer ação civil
pública. O bom-senso não briga com o direito. Quando houver informações firmes
e seguras no sentido da provável ocorrência de determinado dano a interesse supra-individual (coletivo ou difuso), é de admitir-se a
propositura direta da ação judicial.
Quando, porém, as informações forem insuficientes para indicar a
ocorrência de determinado dano ou de sua autoria, é de rigor a instauração do
inquérito civil.
Fazendo-se uma comparação, no campo do direito administrativo, pode-se dizer
que o inquérito civil está para a ação civil pública, assim como a sindicância
está para o processo administrativo. Não é possível instaurar-se um processo
administrativo disciplinar genérico, para que, no seu curso se apure se,
eventualmente, alguém cometeu alguma falta funcional.
Não é dado à Administração Pública, nem ao Ministério Público,
simplesmente molestar gratuitamente e imotivadamente qualquer cidadão, por
alguma suposta eventual infração da qual ele, talvez, tenha participado.
Vale também aqui o princípio da proporcionalidade inerente ao
poder de polícia, segundo o qual só é legítimo o constrangimento absolutamente
necessário e na medida do necessário.
Repugna a consciência jurídica aceitar que alguém possa ser
constrangido a figurar como réu numa ação civil pública perfeitamente evitável.
Configura abuso de poder a propositura de ação civil temerária, despropositada,
não precedida de cuidados mínimos quanto à sua viabilidade.
Não há razão alguma para que se deixe de aplicar, em relação ao
Ministério Público, o preceito contido no art. 37, § 6º, da Constituição
Federal, que estabelece a responsabilidade patrimonial da Administração Pública
por danos causados por seus agentes. Da mesma forma, conforme já tem
reconhecido (timidamente) a jurisprudência, o Ministério Público enquanto atuar
como parte na relação processual civil, deve suportar os ônus da sucumbência,
pois o sistema republicano (conforme a magnífica lição de GERALDO ATALIBA) é
incompatível com a irresponsabilidade de quem exerce prerrogativas públicas.
A realização ou não do inquérito civil, como providência
preliminar à promoção da ação civil pública, pode ser um importantíssimo
indicador do nível de correção da conduta do agente do Ministério Público, da
sua maior ou menor diligência no exercício de suas funções.
A experiência prática tem revelado a ocorrência desagradavelmente freqüente de ações civis públicas totalmente
despropositadas, que poderiam ter sido perfeitamente evitadas se o promotor
público tivesse tido a mais mínima e elementar das cautelas, que é simplesmente
ouvir o suposto infrator.
Por outro lado, é fora de qualquer dúvida que um inquérito civil
pode fornecer elementos concretos e sólidos, levando à propositura de uma ação
civil pública cuidadosamente estruturada e rigorosamente fundamentada,
assegurando a efetiva punição dos causadores de danos a interesses difusos e
coletivos.
V - Fundamentos constitucionais
A interpretação constitucional não pode ser avarenta. Não é
correto extrair-se, especialmente das garantias constitucionais, apenas aquilo
que aflora à superfície.
Por exemplo, quando a Constituição assegura o direito de petição,
isso não pode ser entendido apenas como o direito de protocolar um pedido em
uma repartição pública. Evidentemente, o direito de petição abrange, também,
necessariamente, o direito a uma resposta conclusiva emitida em tempo razoável,
devidamente fundamentada e motivada.
Da mesma forma, a garantia do devido processo legal deve ser
entendida como protetora da liberdade em seu sentido mais amplo e dos bens não
apenas materiais, mas também do patrimônio jurídico e do patrimônio moral das
pessoas, que inclui o seu bem estar, sua tranqüilidade.
Constranger alguém a figurar como réu em uma ação civil pública, sem um mínimo
de plausibilidade, sem a menor preocupação em verificar se existe ou não motivo
para tanto, sem se valer de cautela constitucionalmente prevista para evitar
que isso ocorra, ofende, sim, a garantia do devido processo legal.
De maneira alguma se pode entender que qualquer pessoa pode ser
acusada sem qualquer motivo ou propósito, desde que se lhe assegure o direito à
ampla defesa. Ter que invocar, em juízo, essa garantia, imotivadamente, como
resultado de uma acusação gratuita e desprovida de plausibilidade já é um
constrangimento ilícito.
São coisas totalmente distintas uma acusação plausível, com
relação à qual o acusado se revele, ao final, inocente, e uma acusação
despropositada, fruto do puro descuido, da simples negligência no exercício de
função pública, para não falar até mesmo de dolo.
O simples fato de figurar como réu em uma ação civil pública já
produz efeitos deletérios para o acusado, podendo até mesmo corroer e destruir
uma boa reputação, ofendendo seu direito à inviolabilidade da honra e da
imagem, prescrita pelo inciso X, do art. 5º da Constituição Federal.
Desgraçadamente, é um dado da realidade o desvirtuamento da Ação
Popular, que tem servido, acima de tudo, para alimentar desavenças políticas. O
mesmo pode acontecer com a ação civil pública, se não se estabelecer uma
diferença entre seu uso e seu abuso.
Não está expresso, mas está implícito no preceito contido no
referido art. 129, III, da Constituição Federal, ao mencionar o inquérito civil
e a ação civil pública, que o Ministério Público deve valer-se do meio menos
gravoso para atingir seu objetivo de proteger o patrimônio da coletividade.
Convém não esquecer que o § 2º do art. 5º da Constituição Federal
afirma que a enumeração de determinados direitos e garantias não significa a
exclusão de outros decorrentes do regime e dos rincípios
por ela adotados.
Entre esses princípios, figuram, com o qualificativo de
fundamentais, o da cidadania e o da dignidade da pessoa humana. Tais princípios
não podem ser espezinhados, para sustentar a existência de uma prerrogativa
absurda, incompatível com o próprio conceito de direito e com características
elementares do exercício da função pública.
Pode-se, portanto, afirmar, com segurança, que, em princípio, é
obrigatória a realização de inquérito civil como procedimento preliminar à
propositura de ação civil pública de responsabilidade. A instauração do
inquérito civil pode ser dispensada se e quando da existência de elementos
probatórios que indiquem, com segurança, a efetiva ocorrência de atos
deletérios a interesses difusos ou coletivos, assim como de sua autoria,
permitindo o exercício responsável do poder/dever de promover a ação civil
pública.
São Paulo, fevereiro de 1999.