OBRIGATORIEDADE DE REALIZAÇÃO DE INQUÉRITO CIVIL

Adilson Abreu Dallari

Professor Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da PUC/SPE

I - Colocação do problema

O Ministério Público, assim como, por exemplo, o Tribunal de Contas, é uma instituição de nível constitucional. Suas relevantíssimas finalidades estão expressas no art. 127 da Constituição Federal, de cujo texto nada consta a indicar que ele possa ser havido ou como um Poder acima de todos os poderes ou como um substituto perfeito do cidadão:

"Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".

Ou seja, o Ministério Público é uma instituição legal, no sentido de que está inserido na ordem jurídica nacional, sendo dotada de poderes e responsabilidades. Como toda e qualquer entidade ou instituição pública, tem um caráter eminentemente instrumental, destinando-se, no campo de suas atribuições, a atuar no sentido da realização do interesse público.


Os interesses próprios e específicos da instituição Ministério Público e de seus integrantes são interesses secundários em relação ao interesse público, entendido como o interesse comum de toda a coletividade.


Por exemplo: não pode o Ministério Público valer-se de provas obtidas por meios ilícitos nem para defender a ordem jurídica, pois isso seria até mesmo uma contradição. Enfim, o Ministério Público é dotado de poderes jurídicos necessariamente limitados, como é elementar à ordem jurídica, pois direito é sempre limitação; todo direito é limitado.


Voltando ao texto constitucional, cabe destacar o disposto no parágrafo primeiro desse mesmo artigo acima transcrito, onde estão enumerados os princípios fundamentais do Ministério Público:

"§1º. São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade a independência funcional".

Esta independência funcional deve ser entendida como liberdade de atuação dentro dos quadrantes da ordem jurídica, dentro dos limites estabelecidos pela Constituição e pelas leis em geral. Independência não significa liberdade absoluta.


Para que o Ministério Público, único, indivisível e independente, possa atingir suas finalidades de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, com independência, o próprio texto constitucional já lhe define as funções:

"Art. 129 - São funções institucionais do Ministério Público:

...


III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;".

Cabe, portanto, ao Ministério Público promover a ação civil pública e instaurar o inquérito civil, figura esta que representa uma novidade, algo que não tem tradição no ambiente jurídico nacional, mas que, pelo que indica a denominação, deve ter uma natureza e uma finalidade análogas às do inquérito policial, já tradicional no direito brasileiro.

O problema está em que, enquanto a ação civil pública é suficientemente disciplinada na legislação específica, complementada pela legislação processual civil, o inquérito civil não tem disciplina legal.


O art. 8º da Lei nº 7.347, de 24/07/85 (Lei da Ação Civil Pública), apenas afirma, em seu § 1º, que "O Ministério Público poderá instaurar, sob sua presidência, inquérito civil...", sem indicar qualquer parâmetro a respeito de quando essa providência é necessária ou de quando ela é dispensável.


Alguns, menos avisados, menos afeitos à interpretação sistemática das normas jurídicas, atendo-se exclusivamente à literalidade do texto isolado, vislumbram nessa falta de parâmetros expressos uma total liberdade, uma discricionariedade absoluta, para instaurar ou não o inquérito civil, ao puro arbítrio da autoridade ministerial competente, no exercício de sua independência funcional.


Não é isso, entretanto, o que emana de uma análise do assunto, quando feita no contexto da ordem jurídica, segundo os mais prestigiados métodos interpretativos.

II – Interpretação das normas jurídicas


Interpretar um texto normativo é algo mais do que ler a seqüência de palavras que o integram. Por certo, qualquer pessoa alfabetizada é capaz de ler um texto normativo, mas somente alguém dotado de conhecimentos técnicos científicos em Direito é capaz de apreender todo o seu conteúdo, retirando daí ilações de ordem prática.


Antes de se aplicar qualquer disposição normativa a um caso concreto é preciso interpretá-la, até para se saber se ela se aplica efetivamente ao específico caso em pauta.


O que é interpretar um dispositivo legal? Quem responde com excepcional clareza a essa pergunta é EROS ROBERTO GRAU, na parte inicial de seu "Licitação e Contrato Administrativo" (Malheiros Editores, 1995, pág. 5 e 6 ):


"A interpretação do direito é atividade voltada ao discernimento de enunciados semânticos veiculados por preceitos (disposições, textos) -- o intérprete desvencilha a norma do seu invólucro (o texto); neste sentido, o intérprete "produz a norma". Atividade que se presta a transformar disposições (textos, enunciados) em normas, a interpretação é meio de expressão dos conteúdos normativos das disposições, meio através do qual o juiz desvenda as normas contidas nas disposições. Por isso, as normas resultam da interpretação, e podemos dizer que elas, enquanto disposições, não dizem nada -- elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem. A interpretação é um processo intelectivo através do qual, partindo-se de fórmulas lingüísticas contidas nos atos normativos (os textos, enunciados, preceitos, disposições), alcançamos a determinação do seu conteúdo normativo".

Mas nenhuma disposição normativa tem vida fora do contexto em que está necessariamente inserida. O universo normativo não é um amontoado caótico de prescrições, mas, sim, um sistema, organizado, articulado e hierarquizado, no qual as contradições são apenas aparentes.


Nunca se pode apreender a totalidade do conteúdo normativo de um dispositivo legal isolado, sem relacioná-lo com outros dispositivos e, muito especialmente com princípios contidos no ordenamento jurídico do qual ele é apenas uma parte. A correta elaboração desse relacionamento exige conhecimentos científicos específicos. A ciência que cuida da interpretação das normas jurídicas é a hermenêutica.


Entre os cultores dessa ciência destaca-se a figura exponencial de CARLOS MAXIMILIANO, de cuja obra "Hermenêutica e Aplicação do Direito" (Ed. Forense, Rio, 1984, págs. 128 e 129), foi extraída a seguinte passagem:

"O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos.


Cada preceito, portanto, é membro de um grande todo; por isso do exame em conjunto resulta bastante luz para o caso em apreço.


Confronta-se a prescrição positiva com outra de que proveio, ou que da mesma dimanaram; verifica-se que o nexo entre a regra e a exceção, entre o geral e o particular, e deste modo se obtém esclarecimentos preciosos. O preceito, assim submetido a exame, longe de perder a própria individualidade, adquire realce maior, talvez inesperado. Com esse trabalho de síntese é melhor compreendido.


O hermeneuta eleva o olhar, dos casos especiais para os princípios dirigentes a que eles se acham submetidos; indaga se, obedecendo a uma, não viola outra; inquire das conseqüências possíveis de cada exegese isolada. Assim, contemplados do alto os fenômenos jurídicos, melhor se verifica o sentido de cada vocábulo, bem como se um dispositivo deve ser tomado na acepção ampla, ou na estrita, como preceito comum, ou especial .


Já se não admitia em Roma que o juiz decidisse tendo em mira apenas uma parte da lei; cumpria examinar a norma em conjunto: Incivile est, nisi tota lege perspecta, una aliqua particula ejus proposita, judicare, vel respondere --- "é contra Direito julgar ou emitir parecer, tendo diante dos olhos, ao invés da lei em conjunto, só uma parte da mesma".

A hermenêutica cuida do estudo dos diversos métodos interpretativos, tais como o literal, o lógico-gramatical, o histórico, o teleológico etc. Não é o caso de se proceder aqui a um estudo de cada um desses métodos, destacando suas respectivas características. Basta assinalar a opção feita pelo uso do método sistemático, cujas características e virtudes são salientadas por JUAREZ FREITAS ("A Interpretação sistemática do Direito", Malheiros Editores, 1995, pág. 54) nos seguintes termos:

"Destarte, assumindo uma ótica ampliativa e mais bem equipada, a interpretação sistemática deve ser definida como uma operação que consiste em atribuir a melhor significação, dentre várias possíveis, aos princípios, às normas e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando antinomias, a partir da conformação teleológica, tendo em vista solucionar os casos concretos".

Além da opção pelo método sistemático, cabe também destacar uma segunda opção metodológica, qual seja aquela que dá maior relevância aos princípios jurídicos em relação às simples regras específicas de conduta.

Porém, no contexto da Constituição Federal, são, afirmados vários princípios jurídicos, de maior ou menor amplitude e hierarquia, sendo que alguns deles recebem do próprio texto constitucional a qualificação de fundamentais, enquanto outros, ainda que sejam apenas implícitos, têm sua importância decorrente do fato de se relacionarem a pontos estruturais da conformação do Estado Brasileiro.

Tudo isso deve ser sopesado, conforme ensina ROQUE CARRAZZA, na parte introdutória de seu "Curso de Direito Constitucional Tributário" (Malheiros, São Paulo, 6ª edição, 1994, pág. 30):

"Resulta do exposto que um princípio jurídico é inconcebível em estado de isolamento. Ele -- até por exigência do Direito (que forma um todo pleno, unitário e harmônico) -- se apresenta sempre relacionado com outros princípios e normas, que lhe dão equilíbrio e proporção e lhe reafirmam a importância.

O jurista, ao examinar o Direito, deve considerar as idéias que mais se aproximam da universalidade dos princípios maiores; com isto, formará proposições e terá verdades menos gerais. Em seguida, tomará as idéias que mais se aproximem, por sua universalidade, das descobertas que acabou de fazer, concebendo novas proposições e continuando, desta maneira, sempre sem deixar de aplicar os primeiros princípios a cada proposição que descobrir. Descerá, então, pouco a pouco, dos princípios gerais às normas jurídicas mais particulares, caminhando, na medida do possível, do conhecido para o desconhecido.

Realmente, mesmo sem detenças maiores, nota-se que o Direito, longe de ser um mero conglomerado de normas, é um conjunto bem estruturado de disposições que, interligando-se por coordenação e subordinação, ocupam, cada qual, um lugar próprio no ordenamento jurídico (Ferrara). É precisamente sob este imenso arcabouço, onde sobrelevam os princípios, que as normas jurídicas devem ser consideradas".

O princípio, por sua importância, serve exatamente para orientar a interpretação e a aplicação de toda e qualquer norma. Na ausência de norma específica, o princípio condiciona ou determina, diretamente, a atuação do agente da administração.

Seja permitido transcrever aqui alguns apontamentos feitos por GERALDO ATALIBA, em sua notável monografia sobre "República e Constituição" (RT, São Paulo, 1985, págs. 5 e segs.) a respeito do valor da noção de princípio:

"Os princípios são as linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos).


Eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. Por estas não podem ser contrariados; têm que ser prestigiados até as últimas conseqüências.


A relevância dos princípios constitucionais e sua supremacia, sobre as normas ordinárias ou até mesmo constitucionais foi admiravelmente apreendida e exposta por Agustin Gordillo, com as seguintes luminares palavras: "Diremos entonces que los princípios de derecho público contenidos en la Constitución son normas jurídicas, pero no sólo eso; mientras que la norma es un marco dentro del cual existe una cierta libertad, el princípio tiene sustancia integral.
La simples norma constitucional regula el procedimento por el que son producidas las demás normas inferiores (ley, reglamento, sentencia) y eventualmente su contenido: pero esa determinación nunca es completa, ya que la norma superior no puede ligar en todo sentido y en toda dirección el acto por el cual es ejecutada; el princípio, en cambio, determina en forma integral cual ha de ser la sustancia del acto por el cual se lo ejecuta. La norma es limite, el princípio es limite y contenido. La norma da a la ley facultad de interpretarla o aplicarla em más de um sentido, y el acto administrativo la facultad de interpretar la ley en más de un sentido: pero el princípio establece una dirección estimativa, un sentido axiológico, de valoración, de espíritu. El princípio, exige que tanto la ley como el acto administrativo respeten sus limites y además tengan su mismo contenido, sigan su misma dirección, realicen su mismo espiritu. Pero aún mas, esos contenidos básicos de la Constitución rigen toda la vida comunitaria y no sólo actos a que más directamente se refieren o a las situaciones que más expresamente contemplan" (Introducción al Derecho Administrativo, 2ª ed., Abeledo Perrot, 1966, pp. 176 e 177).


Daí o sublinhar Celso Antônio (RDP 15/283) que "qualquer disposição, qualquer regra jurídica... para ser constitucional, necessita estar afinada com o princípio... realizar seu espírito, atender à sua direção estimativa, coincidir com seu sentido axiológico, expressar seu conteúdo. Não se pode entender corretamente uma norma constitucional sem atenção aos princípios consagrados na Constituição e não se pode tolerar uma lei que fira um princípio adotado na Carta Magna. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. E' a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra".

Nem mesmo o legislador pode criar, extinguir ou modificar direitos (por lei) contrariando um princípio. Com muito maior razão os agentes públicos, no momento da aplicação da lei, mediante a produção de específicos atos administrativos, devem estar atentos para os valores contidos e, especialmente, para as finalidades apontadas nos princípios.

Isto também se aplica, obviamente, ao Ministério Público, no tocante à prerrogativa de instaurar o inquérito civil.

III - Deveres e limites inerentes à competência

Toda regra de competência estabelece poderes/deveres, mas, ao mesmo tempo, fixa limites. O inciso III, do art. 129 da Constituição Federal, supra transcrito, deixa claro que o Ministério Público tem o poder/dever de defender interesses difusos e coletivos, significando, também, que não lhe compete substituir-se ao cidadão defendendo interesses individuais disponíveis.

Igualmente, por força do princípio federativo e da imanente autonomia administrativa das pessoas jurídicas de capacidade política, não compete ao Ministério Público defender interesses patrimoniais da União, da Fazenda Nacional, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, pois, para isso existe a advocacia pública, que também tem "status" constitucional.

A defesa dos interesses patrimoniais da Administração Pública pelo Ministério Público, entretanto, pode e deve ser feita exatamente junto aos Tribunais de Contas, dentro dos quais a instituição (una e indivisível) tem seus representantes, cuja presença é assegurada pela própria Constituição Federal:

"Art. 130 - Aos membros do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas aplicam-se as disposições desta seção pertinentes a direitos, vedações e forma de investidura".

O conjunto dos dispositivos constitucionais acima transcritos circunscreve as atribuições do Ministério Público no tocante aos interesses patrimoniais da Administração Pública e às contas públicas. Nenhuma ampliação a esse extenso universo pode ser feito por lei ordinária, pois isso acarretaria invasão do espaço constitucionalmente reservado a outros órgãos ou entidades, quebrando a harmonia institucional.

Todavia, interpretações "data venia" indigentemente literais de fragmentos da legislação ordinária têm levado a conclusões inaceitáveis, no tocante à competência do Ministério Público com relação às atribuições mencionadas no acima transcrito inciso III do art. 129 da Constituição Federal.

O primeiro desses deslizes interpretativos diz respeito a uma suposta liberdade absoluta para a instauração, ou não, de inquérito civil, ao puro e insindicável arbítrio de qualquer membro do Ministério Público.

Conforme o magistério de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, ("Curso de Direito Administrativo", Malheiros Editores, 11ª edição, 1999, pág. 31 a 39), por força do princípio da obrigatoriedade do desempenho da atividade pública, toda competência conferida à Administração Pública acarreta sempre, necessariamente, o dever de exercê-la. Para isso, para exercitar suas competências em favor da coletividade, para satisfazer um interesse qualificado como público é que a Administração desfruta de prerrogativas:

"Quem exerce "função administrativa" está adscrito a satisfazer interesses públicos, ou seja, interesses de outrem: a coletividade. Por isso, o uso das prerrogativas da Administração é legítimo se, quando e na medida indispensável ao atendimento dos interesses públicos; vale dizer, do povo, porquanto nos Estados democráticos o poder emana do povo e em seu proveito terá de ser exercido.

Tendo em vista este caráter de assujeitamento do poder a uma finalidade instituída no interesse de todos -- e não da pessoa exercente do poder --, as prerrogativas da Administração não devem ser vistas ou denominadas como "poderes" ou como "poderes-deveres". Antes se qualificam e melhor se designam como "deveres-poderes", pois nisto se ressalta sua índole própria e se atrai atenção para o aspecto subordinado do poder em relação ao dever, sobressaindo, então, o aspecto finalístico que as informa, do que decorrerão suas inerentes limitações".

"Em suma, o necessário -- parece-nos -- é encarecer que na administração os bens e os interesses não se acham entregues à livre disposição da vontade do administrador. Antes, para este, coloca-se a obrigação, o dever de curá-los nos termos da finalidade a que estão adstritos. É a ordem legal que dispõe sobre ela".

"O princípio da obrigatoriedade do desempenho da atividade pública traduz a situação de "dever" em que se encontra a Administração -- direta ou indireta -- em face da lei.

O interesse público, fixado por via legal, não está à disposição da vontade do administrador, sujeito à vontade deste; pelo contrário, apresenta-se para ele sob a forma de um comando. Por isso mesmo a prossecução das finalidades assinaladas, longe de ser um "problema pessoal" da Administração, impõe-se como obrigação indiscutível".

Em síntese, dado o caráter instrumental da Administração Pública, em seu sentido mais amplo (excluídas apenas as atividades de natureza política; de formação da vontade do Poder Público), pode-se dizer que no exercício da função pública não existem prerrogativas puras.

Ressalvadas as decisões tipicamente políticas, toda e qualquer decisão de agente público deve ser devidamente motivada. Obviamente, o motivo não se confunde com a pura vontade do agente. O motivo sempre haverá de ser algo de ordem pública, algo ditado pelo dever atender ao interesse público, algo concreto, sindicável, aferível, controlável.

IV - O dever de instaurar inquérito civil


Aplicando-se tais ensinamentos à competência para a instauração de inquérito civil, fica espantosamente claro que isso não pode ser tomado como uma prerrogativa pura, como mera faculdade, como questão de foro íntimo, como matéria totalmente submetida ao puro arbítrio do membro do Ministério Público.

Felizmente, já existem insuspeitas e respeitáveis opiniões doutrinárias mais lúcidas a esse respeito:

"O inquérito civil não é em si uma função, e sim um instrumento, que legitima, implicitamente, o exercício da função investigatória.

Note-se que quando prevê o inquérito civil, para, em seguida, tratar de valores essenciais para a sociedade, ligando aquele à proteção desses valores, a Constituição Federal deixa claro que o inquérito civil é um instrumento para aquele fim, mesmo porque quem quer os fins quer, explícita ou implicitamente, os meios.

Então, claro está que a Carta Federal confere ao Ministério Público um poder investigatório voltado para a apuração de lesões ou ameaças de lesões àqueles valores.

Esse poder investigatório constitui função exclusiva do Ministério Público, pois a Constituição Federal ressalvou a legitimação concorrente apenas para a ação civil pública (art. 129, § 1º), não o fazendo relativamente ao inquérito civil. Além disso, a própria Lei 7.347/85, estabelece, como visto inicialmente, a exclusividade do inquérito civil para o Ministério Público, reafirmando a impossibilidade da competência concorrente para a função investigatória na matéria, por meio do inquérito civil.

Como todo poder, é um poder-dever e assim não pode deixar de ser exercido. Todavia, como é óbvio, em nome e na defesa desses mesmos valores, esse poder não deve transformar-se em instrumento de devassa, porém em instrumento para investigação e a apuração de elementos e fatos necessários para a promoção de ação pública, civil ou penal, para a proteção do patrimônio público e social e de interesses difusos e coletivos".

JOSÉ EMMANUEL BURLE FILHO, "Principais aspectos do inquérito civil, como função institucional do Ministério Público" in "Ação Civil Pública", coordenador: Édis Milaré , RT. 1995, pág. 321 e 322.

HELY LOPES MEIRELLES, ao discorrer sobre a prioritária legitimação do Ministério Público para a propositura da Ação Civil, faz uma importantíssima ressalva:

"Mas esses poderes atribuídos ao Ministério Público para, a propositura da ação civil publica não justificam o ajuizamento de lide temerária ou sem base legal, nem autorizam a concessão de liminar suspensiva de obras e serviços públicos ou particulares regularmente aprovados pelos órgãos técnicos e administrativos competentes, sob a simples alegação de dano ao meio ambiente" .

Hely Lopes Meirelles, "Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção e Habeas Data", 16ª edição, RT, p. 126.

Em abono de sua posição HELY LOPES MEIRELLES reproduz esta expressiva manifestação do hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, JOSÉ CELSO DE MELLO FILHO emitida quando no exercício do cargo de Assessor do Gabinete Civil da Presidência da República:

"O inquérito civil, em suma, configura um procedimento preparatório, destinado a viabilizar o exercício responsável da ação civil pública. Com ele, frustra-se a possibilidade, sempre eventual, de instauração de lides temerárias".

(Apud, Hely Lopes Meirelles, "Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil Pública, Mandado de Injunção e Habeas Data", 16ª edição, RT, p. 125, nota "3").

Não se pretende sustentar que a realização do inquérito civil seja condição indispensável para a propositura de toda e qualquer ação civil pública. O bom-senso não briga com o direito. Quando houver informações firmes e seguras no sentido da provável ocorrência de determinado dano a interesse supra-individual (coletivo ou difuso), é de admitir-se a propositura direta da ação judicial.

Quando, porém, as informações forem insuficientes para indicar a ocorrência de determinado dano ou de sua autoria, é de rigor a instauração do inquérito civil.


Fazendo-se uma comparação, no campo do direito administrativo, pode-se dizer que o inquérito civil está para a ação civil pública, assim como a sindicância está para o processo administrativo. Não é possível instaurar-se um processo administrativo disciplinar genérico, para que, no seu curso se apure se, eventualmente, alguém cometeu alguma falta funcional.

Não é dado à Administração Pública, nem ao Ministério Público, simplesmente molestar gratuitamente e imotivadamente qualquer cidadão, por alguma suposta eventual infração da qual ele, talvez, tenha participado.

Vale também aqui o princípio da proporcionalidade inerente ao poder de polícia, segundo o qual só é legítimo o constrangimento absolutamente necessário e na medida do necessário.

Repugna a consciência jurídica aceitar que alguém possa ser constrangido a figurar como réu numa ação civil pública perfeitamente evitável. Configura abuso de poder a propositura de ação civil temerária, despropositada, não precedida de cuidados mínimos quanto à sua viabilidade.

Não há razão alguma para que se deixe de aplicar, em relação ao Ministério Público, o preceito contido no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, que estabelece a responsabilidade patrimonial da Administração Pública por danos causados por seus agentes. Da mesma forma, conforme já tem reconhecido (timidamente) a jurisprudência, o Ministério Público enquanto atuar como parte na relação processual civil, deve suportar os ônus da sucumbência, pois o sistema republicano (conforme a magnífica lição de GERALDO ATALIBA) é incompatível com a irresponsabilidade de quem exerce prerrogativas públicas.

A realização ou não do inquérito civil, como providência preliminar à promoção da ação civil pública, pode ser um importantíssimo indicador do nível de correção da conduta do agente do Ministério Público, da sua maior ou menor diligência no exercício de suas funções.

A experiência prática tem revelado a ocorrência desagradavelmente freqüente de ações civis públicas totalmente despropositadas, que poderiam ter sido perfeitamente evitadas se o promotor público tivesse tido a mais mínima e elementar das cautelas, que é simplesmente ouvir o suposto infrator.

Por outro lado, é fora de qualquer dúvida que um inquérito civil pode fornecer elementos concretos e sólidos, levando à propositura de uma ação civil pública cuidadosamente estruturada e rigorosamente fundamentada, assegurando a efetiva punição dos causadores de danos a interesses difusos e coletivos.

V - Fundamentos constitucionais

A interpretação constitucional não pode ser avarenta. Não é correto extrair-se, especialmente das garantias constitucionais, apenas aquilo que aflora à superfície.

Por exemplo, quando a Constituição assegura o direito de petição, isso não pode ser entendido apenas como o direito de protocolar um pedido em uma repartição pública. Evidentemente, o direito de petição abrange, também, necessariamente, o direito a uma resposta conclusiva emitida em tempo razoável, devidamente fundamentada e motivada.

Da mesma forma, a garantia do devido processo legal deve ser entendida como protetora da liberdade em seu sentido mais amplo e dos bens não apenas materiais, mas também do patrimônio jurídico e do patrimônio moral das pessoas, que inclui o seu bem estar, sua tranqüilidade. Constranger alguém a figurar como réu em uma ação civil pública, sem um mínimo de plausibilidade, sem a menor preocupação em verificar se existe ou não motivo para tanto, sem se valer de cautela constitucionalmente prevista para evitar que isso ocorra, ofende, sim, a garantia do devido processo legal.

De maneira alguma se pode entender que qualquer pessoa pode ser acusada sem qualquer motivo ou propósito, desde que se lhe assegure o direito à ampla defesa. Ter que invocar, em juízo, essa garantia, imotivadamente, como resultado de uma acusação gratuita e desprovida de plausibilidade já é um constrangimento ilícito.

São coisas totalmente distintas uma acusação plausível, com relação à qual o acusado se revele, ao final, inocente, e uma acusação despropositada, fruto do puro descuido, da simples negligência no exercício de função pública, para não falar até mesmo de dolo.

O simples fato de figurar como réu em uma ação civil pública já produz efeitos deletérios para o acusado, podendo até mesmo corroer e destruir uma boa reputação, ofendendo seu direito à inviolabilidade da honra e da imagem, prescrita pelo inciso X, do art. 5º da Constituição Federal.

Desgraçadamente, é um dado da realidade o desvirtuamento da Ação Popular, que tem servido, acima de tudo, para alimentar desavenças políticas. O mesmo pode acontecer com a ação civil pública, se não se estabelecer uma diferença entre seu uso e seu abuso.

Não está expresso, mas está implícito no preceito contido no referido art. 129, III, da Constituição Federal, ao mencionar o inquérito civil e a ação civil pública, que o Ministério Público deve valer-se do meio menos gravoso para atingir seu objetivo de proteger o patrimônio da coletividade.

Convém não esquecer que o § 2º do art. 5º da Constituição Federal afirma que a enumeração de determinados direitos e garantias não significa a exclusão de outros decorrentes do regime e dos rincípios por ela adotados.

Entre esses princípios, figuram, com o qualificativo de fundamentais, o da cidadania e o da dignidade da pessoa humana. Tais princípios não podem ser espezinhados, para sustentar a existência de uma prerrogativa absurda, incompatível com o próprio conceito de direito e com características elementares do exercício da função pública.

Pode-se, portanto, afirmar, com segurança, que, em princípio, é obrigatória a realização de inquérito civil como procedimento preliminar à propositura de ação civil pública de responsabilidade. A instauração do inquérito civil pode ser dispensada se e quando da existência de elementos probatórios que indiquem, com segurança, a efetiva ocorrência de atos deletérios a interesses difusos ou coletivos, assim como de sua autoria, permitindo o exercício responsável do poder/dever de promover a ação civil pública.

São Paulo, fevereiro de 1999.