A MODERNA TEORIA DEMOCRÁTICA E O VOTO OBRIGATÓRIO

FABIO TÚLIO CORREIA RIBEIRO

Juiz do Trabalho na 20ª. Região (Sergipe) | Mestrando em Direito - UFC/UFS

ÍNDICE :

I - Apresentação
II - A Participação Popular na Grécia Antiga
III - As expressões Positiva e Negativa da Liberdade
IV - As Dimensões da Democracia
V - O Voto e a sua Evolução no Constitucionalismo Brasileiro
VI - O Voto no Direito Comparado
VII - A Natureza do Voto
VIII - O Voto Obrigatório e o Mito da Legitimidade
IX - Os Inconvenientes de Ordem Pragmática do Voto Obrigatório
X – Conclusão
XI – Bibliografia


I - APRESENTAÇÃO:

A democracia é um valor que se vem afirmando dia a dia, assim o demonstra a História. O seu conceito, no entanto, sofreu e anda a sofrer as mais diversas transformações, ora movidas pelo passar dos tempos, ora pela visão do povo que a pratica.

Como forma de governo, a democracia - ainda sob os auspícios da teoria aristotélica - pressupõe o governo de muitos. Nesse diapasão, opõe-se à monarquia, governo de um, e à aristocracia, governo de poucos. Seria, portanto, a melhor das formas de governo, por contemplar os interesses do maior número possível de cidadãos da pólis.

Na antigüidade clássica, a participação democrática dava-se sem a interseção de interlocutores que tivessem a incumbência de veicular outros interesses que não os seus próprios: a dita democracia direta. Nos dias correntes, todavia - dadas as dimensões geográficas e demográficas das cidades e graças, também, à complexidade dos assuntos a gerenciar, aliada a um progressivo redimensionamento axiológico da vida privada e à superação do modelo de produção escravocrata e servil - nos dias correntes a regra geral é a democracia indireta, procedimento através do qual o cidadão escolhe representantes, através do voto, para administrar a coisa pública.

A democracia representativa - ou indireta - não é incompatível com a democracia direta. Por essa, se complementa aquela. Países há, como a Suíça, por exemplo, que praticam fortemente a democracia direta em seus Cantões. No Brasil mesmo a ordem jurídico-constitucional admite a participação direta do cidadão na formação da vontade estatal, art. 114, inciso I, in verbis:

“A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular.”

O regime será tanto mais democrático quanto maior participação direta do cidadão possa existir. Ou, em outros termos, o poder estatal será exercido tanto mais democraticamente quanto mais intensa seja a atuação direta do cidadão na gerência do Estado.

O voto é o instrumento por excelência da democracia representativa. Para uns, um direito; para outros, um dever; para muitos, ao mesmo tempo que um direito de participação política, um dever cívico. Ele já foi restrito, censitário, já contemplou discriminações dos mais diversos matizes: de sexo, posição social, grau de instrução, etnia etc. Nos Estados Unidos da América, verbi gratia, o direito de voto só foi reconhecido às diversas categorias étnicas em 1870 (Emenda XV); às mulheres, em 1920 (Emenda XIX). Apenas em 1964, com a Emenda XXIV, proibiu-se a estipulação de pagamento de imposto eleitoral ou qualquer outro imposto como pressuposto do direito de voto, e em 1971 (Emenda XXVI) proibiu-se a discriminação aos menores de dezoito anos. A redação da referida última emenda é emblemática, verbo ad verbum:

“O direito de voto dos cidadãos dos Estados Unidos, de dezoito anos de idade ou mais, não será negado ou cerceado pelos Estados Unidos ou por qualquer dos Estados, por motivo de idade.”

As emendas à Constituição americana bem historiam a concepção do direito de voto, que sempre caminhou numa direção de universalização. É princípio lógico: se a democracia caracteriza-se pelo governo da maioria, é preciso que o maior número de pessoas da comunidade seja chamada a deliberar os destinos do Estado, o que só se perfaz mediante, entre outras garantias, a universalização do voto, que deve ser igual para todos, secreto e periódico. Igual para todos como decorrência do respeito ao princípio da isonomia, que veda as discriminações não calcadas em razão suficiente, não se tendo em tal conta aquelas firmadas com base no sexo, no grau de instrução, no patrimônio, na raça, no credo, na idade. Secreto, como penhor de espontaneidade na manifestação do eleitor, com vistas a evitarem-se as pressões da força. Periódico, porque apenas o exercício da soberania é delegado com o voto, não ela em si mesma. Desse modo, o cidadão deve estar sempre - a prazo razoável - voltando a manifestar-se e, com isso, renovando o poder.

Algumas perguntas se impõem a essa quadra: além de universal, igual, secreto e periódico, o voto também deve ser obrigatório? O voto obrigatório é compatível com princípio do governo democrático? A obrigatoriedade do voto traz alguma contribuição para o aperfeiçoamento da democracia?

São questões sumamente polêmicas.

No Brasil, particularmente, as duas correntes que se formaram em torno do tema desfiam os mais variegados argumentos, de ordem pragmática e principiológica, em defesa ora do voto obrigatório, ora do voto facultativo.

Os corifeus do voto obrigatório sustentam que o reconhecimento legal do direito de abstenção traz como resultado a menor representatividade do eleito, o desestímulo ao exercício da cidadania, fazendo com que o cidadão se alheie dos assuntos relativos à pública administração, o esvaziamento do processo eleitoral, tornando-o mais vulnerável às ingerências de pequenos grupos mais politizados e com maior poder de interferência, a preponderância dos interesses das minorias organizadas em detrimento dos interesses da imensa maioria, desorganizada. Afirma-se - com um certo tom escatológico - que candidatos a cargos majoritários, como o são os do executivo (Presidente da República, Governadores de Estado e Prefeitos Municipais), poderiam ser eleitos com uma parcela ínfima dos eleitores inscritos, a terça ou quarta parte deles. Nessa perspectiva, o fim do voto obrigatório representaria um retrocesso das instituições políticas, uma vez que a sociedade estaria abrindo mão de conquistas alcançadas a duras penas.

Do outro lado e em franca divergência, os adeptos da facultatividade do voto opõem o argumento da consciência: a participação política, pelo voto, dá-se por imposição de consciência, jamais por obrigação. A obrigação, aí, seria incompatível. Vota-se por espontânea e soberana decisão de votar, sem qualquer interferência ou pressão, porque outro qualquer motivo implica ofensa à liberdade individual e à livre disposição da razão. Ademais, diz-se amiúde, o direito de abstenção reduziria significativamente ou até eliminaria os votos brancos e nulos, conhecidos pela alcunha genérica de voto de protesto. (Pateticamente famoso é o caso, no Estado do Rio de Janeiro, nas eleições de 1982, em que dezenas de milhares de eleitores compareceram às urnas e sufragaram o nome do Macaco Tião, numa expressiva votação que lhe teria - se válida fosse - garantido uma cadeira no parlamento). A legitimidade dos eleitos seria tanto maior nesse sistema, haja vista que legitimidade é um conceito não apenas quantitativo, mas qualitativo igualmente. Se a participação democrática do indivíduo é algo tão vital para os destinos da nação, que se a deixe à mercê dos que votam responsavelmente, após detida e refletida ponderação das opções. Disso resultaria uma melhor qualidade do processo eleitoral, que não teria espaço para o voto dos irresponsáveis ou para o voto de deboche, uma vez que dificilmente pessoas se disporiam a comparecer às urnas com esse intuito.

É preciso superar os sofismas.

Penso que muito mais do que um problema pragmático, essa é uma discussão de princípio. A resposta à indagação (o voto deve ou não ser obrigatório?) passa pela concepção que se tenha do Estado e de sua inserção na vida do cidadão e, por outra, perpassa também pela idéia que se tenha da participação que deva assumir o cidadão na modelagem das feições estatais.

Ponha-se em novos termos a questão: o cidadão deve ser obrigado a participar dos embates eleitorais, ou deve ser incentivado a isso, através de uma prática democrática educativa, tida, no seio da sociedade, por valor impostergável? É equivocada a tendência de responder a essa pergunta com uma sempre retomada postura de relativização dos conceitos. Numa sociedade democrática é claro que pagar imposto deve ser uma obrigação; mas não parece tão óbvio que, numa sociedade democrática, o voto, tal qual o tributo, deva ser uma contingência inarredável. Essa, parece-me, é uma visão reducionista. A participação política não se exaure no voto, embora seja ele de alta relevância.

No caso brasileiro, a preferência do legislador constituinte sempre foi pelo voto compulsório. Interessante notar que tanto as Cartas Republicanas Democráticas de 1934 (art. 109), 1946 (art. 133), 1988 (art. 14, § 1º), quanto as Constituições oriundas dos regimes de exceção (1937, 1967 e Emenda Constitucional n. 1, de 1969), seguiram a mesma linha e referendaram a obrigatoriedade do voto.

Não se deve descurar o fato - de resto evidente - que os períodos de exceção por que passou a sociedade brasileira constituíram-se em fator de empeço para a benéfica atuação dos reflexos pedagógicos da luta política, forjada nos debates públicos, no livre câmbio das idéias, na pluralidade de ideologias, no voto. Se essa é uma inferência necessária, não se pode, no mesmo diapasão, olvidar que o voto obrigatório - uma constante na nossa ordem jurídica, como se viu - jamais foi veículo de estabilidade das instituições democráticas, da mantença de um cenário político desanuviado, nem, tampouco, pode ser apontado como viga de sustentação dos direitos políticos, dos direitos civis e da institucionalização dos direitos sociais.

Resta, portanto, adentrando a teoria democrática do exercício do poder, perquirir, ante os seus postulados, se se justifica ou não a permanência da obrigatoriedade do voto.


II - A PARTICIPAÇÃO POPULAR NA GRÉCIA ANTIGA:

A democracia grega sempre funcionou como paradigma e “menina dos olhos” dos estudiosos do Estado e de suas formas de governo, filiados à visão democrática. Não são poucos os autores, de todos os tempos, que decantaram as excelências da sociedade clássica, com os seus princípios democráticos fortemente arraigados.

Para os gregos - no que estavam em desacordo com Sócrates - a natureza da comunidade humana, ou pólis, não seria outra senão a de cidade livre, onde os cidadãos eram senhores dos destinos do Estado. Para aquele filósofo, entretanto, a comunidade humana não passava de um rebanho, que precisava ser conduzido rumo ao seu destino. Se a comunidade humana é um rebanho, necessita de um pastor; se uma pólis, deve ser governada pelos seus próprios cidadãos. A diferença de perspectiva é funda.

Nessa linha, enquanto a concepção grega que deixou raízes emprestava dignidade ao homem comum, a de Sócrates o inferiorizava.

Não foi sem razão que os gregos inventaram quatro palavras-chave para a democracia. A primeira delas, isotes - para designar a igualdade. A segunda, isonomia - que é a isonomia mesma, ou seja, a igualdade de todos perante as leis do país, não se admitindo discriminações não escoradas em razão suficiente. As terceira e quarta, respectivamente, isegoria e isologia - ambas significantes da livre expressão do pensamento.

Precisamente por causa da isegoria e da isologia todo cidadão grego tinha o direito de comparecer à Ágora e ali manifestar as suas idéias e posições.

Todo cidadão, assim, tinha o direito de participar da administração da coisa pública. A bem ver, mais que um direito, isso era considerado um dever moral, tanto que aquele que se recusasse a participar da vida pública, para Péricles e seus concidadãos, era considerado um inútil.

Lembre-se, porém, que a antigüidade clássica grega era uma sociedade escravocrata. A participação admitida era apenas a dos cidadãos, assim entendida pequena parcela da população que vivia ancorada no trabalho escravo. E mais: é fato histórico indiscutível que a democracia grega era meramente interna, tanto que se nutria do imperialismo em suas relações externas, como bem aponta Arnaldo Vasconcelos (In Direito, Humanismo e Democracia, Malheiros Editores, S. Paulo, 1998).

Se é verdade que, para os gregos, participar dos debates da assembléia era um dever moral - tanto que aquele que dela se abstivesse era tido na conta de inútil - não se tem notícia de que haja sido institucionalizada a obrigação de participar. Nem os historiadores nem os cientistas políticos mencionam a possibilidade de punição para o cidadão que se abstivesse dos debates.

Glotz, citado por Bobbio (In O Futuro da Democracia - Uma defesa das regras do jogo, Paz e Terra, 6ª edição, 1997), dá-nos conta de que no lugar estabelecido para as assembléias atenienses raramente viam-se mais de duas ou três mil pessoas, ainda quando o ambiente comportasse vinte e cinco mil pessoas em pé e dezoito mil pessoas sentadas. Ou seja, aproximadamente 4,65% dos cidadãos que poderiam comparecer à assembléia (e nem todos eram cidadãos, mas a minoria) faziam a vontade do Estado na democracia mais autêntica do mundo clássico!

Ir à assembléia, debater, argumentar, era exclusividade do cidadão ateniense (homem livre) e, portanto, uma clara afirmação de status. Através desse comportamento - a integração na vida da cidade - o cidadão se diferenciava do servo, de todos aqueles situados em patamares inferiores da hierarquia social.

Constate-se pelas palavras do já citado Arnaldo Vasconcelos:

“O adestramento do ateniense na arte de argumentar era necessidade imposta pelo exercício das liberdades públicas que se definia essencialmente por sua integração na vida da pólis. Ser cidadão era cuidar dos negócios da cidade, participando dos debates públicos nas diversas assembléias e conselhos e nas sessões dos muitos tribunais, discutindo, persuadindo e decidindo. Se a ‘a linguagem se tornara... a mais poderosa das armas nas grandes lutas políticas’ (Cassirer, A, 182), foi exatamente porque a democracia quase direta a transformara no mais eficiente instrumento de formação da vontade popular”. (Op. cit., p. 64/65).

Vontade popular, aí entendida, por certo, de forma restritiva, uma vez que a vontade popular se confundia com a do cidadão (homem livre), enquanto grande parcela da população era composta de escravos. Também as mulheres e os estrangeiros eram excluídos da política, com o que se revelam igualmente o traço patriarcal e xenófobo da sociedade grega de antanho.

Para os gregos, em última análise, a participação política do cidadão era de fato muito importante, mas não compulsória. O cidadão ele mesmo é que queria afirmar-se como tal, distinguindo-se, assim, dos demais e inferiores segmentos da comunidade.

E, por outro lado, é até facilmente explicável a atribuição do epíteto de inútil àquele que se abstivesse de participar da administração da coisa pública: como os cidadãos não precisavam trabalhar, já que eram sustentados pelo trabalho escravo, se eles igualmente não se dispusessem a gerir a coisa pública, nada mais lhes restava a fazer, senão o ócio.

Essa não é - dispensam-se comentários - a realidade dos dias que correm.

III - AS EXPRESSÕES POSITIVA E NEGATIVA DA LIBERDADE:

A liberdade não tem um conceito unívoco.

Entre as várias acepções da liberdade, existe aquela, predominante na tradição liberal, como informa Norberto Bobbio (In Liberalismo e Democracia, Editora Brasiliense, São Paulo, 1998), para a qual os termos “liberdade” e “poder” são rigorosamente contraditórios e antitéticos, realidades incompatíveis e inconciliáveis. O poder teria a natural propensão a invadir os espaços da liberdade, ao passo que essa - no afã de expandir-se - teria, por seu turno, a vocação de desafiar o poder. Nesse sentido, nas relações interpessoais, à medida que cresce o poder de uma pessoa, diminui a liberdade negativa da outra, e, à proporção que aumenta a liberdade negativa da segunda, decresce, quanto a ela, o poder da primeira.

Para a tradição liberal, portanto, a liberdade tem um caráter negativo, no sentido de que consiste ela na ausência de determinação. O cidadão tem o natural direito de autodeterminar-se em tudo aquilo que convenha aos seus fins enquanto pessoa. Segundo essa visão, a liberdade é em relação ao Estado. Curiosa a passagem citada por Bobbio, lembrando Thomas Paine:

“A sociedade é produzida por nossas carências e o governo por nossa perversidade; a primeira promove a nossa felicidade positivamente mantendo juntos os nossos afetos, o segundo negativamente mantendo sob freios os nossos vícios. Uma encoraja as relações, o outro cria as distinções. A primeira protege, o segundo pune. A sociedade é sob qualquer condição uma bênção; o governo, inclusive na sua melhor forma, nada mais é do que um mal necessário, e na sua pior forma é insuportável”. (Op. cit. p. 21, destaques no original).

O trecho transcrito - que denota uma maniqueísta perspectiva do problema da liberdade - bem poderia ser utilizado como carta de princípio dos liberais.

A liberdade, todavia, não o é apenas contra o poder. Ela também pode ser vislumbrada como liberdade de participar do poder. É precisamente a liberdade em sua acepção positiva, para a qual fecharam os olhos os arautos do liberalismo político.

A liberdade - enquanto componente da democracia - não pode ser pensada de forma simplista, unicamente como a limitação das ingerências do Estado na vida do homem.

Evitem-se os excessos dos liberais e dos utilitaristas. A liberdade - uma das dimensões, mas não a única, da democracia - é tanto a garantia de o cidadão não ser molestado em seu espaço privado, como o é a de integrar a vontade do Estado com a própria. Só assim o cidadão será livre.

A dificuldade para responder à indagação inicial - se o voto obrigatório se compadece com o princípio democrático - perdura. Distinguir as esferas positiva e negativa da liberdade, se por um lado me pareceu necessário, não é suficiente. Porque o grande imbróglio é identificar os limites da esfera privada do cidadão. Sem isso, patina-se no vazio.

Afirmar que o voto obrigatório é antidemocrático porque viola a liberdade negativa - como se toda imposição do Estado implicasse extravasamento de poder - é por demais insatisfatório. Seria antidemocrática a prática do Estado que constrangesse o cidadão, sob ameaça de sanção, a matricular os seus filhos menores em escola de ensino básico? Evidentemente que não.

Aquilo que concorre para a sobrevivência mesma do Estado é sempre colocado imperativamente, sem margem para opção. O imposto, de que já falei, é exemplo recorrente. Não se vai dizer, com possibilidade de êxito, que a cobrança compulsória de tributos viola a liberdade do cidadão. Seria absurdo.

A princípio, a compulsoriedade do voto, se entendido esse como primordial à sobrevivência da organização política, seria plenamente defensável. Do tema, sem arriscar um posicionamento pessoal, tratou Hans Kelsen, ipsis litteris:

“O fato de o sufrágio ser uma função pública por meio da qual se criam órgãos essenciais do Estado não é incompatível com a sua organização como direito no sentido técnico do termo; no entanto, pode surgir a questão de saber se é apropriado deixar o exercício dessa função vital ao livre-arbítrio do cidadão, que é a questão de saber se o sufrágio é um direito. Se a função eleitoral for considerada como sendo uma condição essencial na vida do Estado, é apenas coerente que se faça do sufrágio um dever do cidadão, um dever jurídico, e não simplesmente moral, e isso significa instituir uma sanção a ser executada contra o cidadão que não exerce a função de votar tal como prescrita pela lei. (In Teoria do Direito e do Estado, Martins Fontes, São Paulo, 1992, p. 286/287).

Combater o voto compulsório sob o exclusivo pálio argumentativo da ofensa à liberdade é procedimento improfícuo, que não conduz a resultados satisfatórios.

Resta indagar, no entanto, se a essencialidade da função eleitoral, de que fala Kelsen, pode ser atribuída ao voto em si, quer dizer, ao ato de o cidadão comparecer à sessão eleitoral e depositar o seu voto, ou se, por outra, mais importante para a vida do Estado, e portanto essencial, é a participação consciente do cidadão, forjada numa educação cívica democrática.

A mim me parece que a teoria da representação não se compadece com a manifestação do cidadão desprovida de intencionalidade, de volitividade.

Se por representante deve-se entender aquele que atua em nome do representado, na salvaguarda dos interesses gerais da coletividade, não há como admitir uma representação que fuja à íntima e soberana discrição do representado, inclusive quanto à sua oportunidade. Não estou discutindo aqui se o mandato deve ser imperativo ou não. Não é esse o ponto. A doutrina prevalecente enxerga no representante não um delegado, mas um fiduciário.

Argumentar que os eleitos também representam os que se abstêm, razão pela qual a objeção improcederia, não me impressiona. Ora, o alheamento também pode ser considerado uma atitude política. A omissão, de igual forma. Pode-se ou não concordar com eles, mas o que caracteriza a democracia não é precisamente a pluralidade, a convivência dos contrários? A tolerância não é uma viga mestra da teoria democrática?

É saber: será que a soberania popular, idéia chave no conceito democrático, não se reflete na madura e desejada participação omissiva no ato de votar?

Se a tolerância é conceito ínsito ao de democracia, não se admite a intolerância senão com o intolerante. Logo, deve-se tolerar o comportamento do cidadão que, numa postura política consciente, resolva-se por não participar do processo eletivo.

E mais: o que se abstém de votar concorre para que o resultado da votação seja aquele verificado e não outro. É, sem dúvida alguma, uma opção. Negativa. Mas não necessariamente niilista. Às vezes, densamente ideológica.

A representação, seguindo tais escólios, pode dar-se pela opção negativa diante do processo eleitoral, sem que com isso reste maculada - por ofensa à lógica - a sua construção teórica. Tal já não acontece quando há prévia e compulsória determinação de opção positiva, em que o eleitor está constrangido a indicar representante, ainda quando não o deseje.

Se se afirmar, todavia, que não existe a opção positiva, considerando que o cidadão não está, a bem da verdade, na iminência de escolher entre os vários candidatos, então só se pode pensar que o voto obrigatório é uma falácia, porque nunca existiu. O que sempre houve foi o comparecimento compulsório. E até nem isso.

Nessa última hipótese, então, se se entender que o voto é essencial à sobrevivência do Estado (e, portanto, de exercício compulsório, porque, diga-se mais, dele depende a superestrutura estatal), ter-se-á que concluir, em necessário paralelismo, que não seria possível e a lei deveria instituir meios de proibir e evitar os votos brancos e nulos, porque atentatórios à permanência do Estado.

Não me parece haja meios-termos: ou o voto é essencial, por si, à sobrevivência do Estado, e, pois, de exercício compulsório, ou, por outra, em si não é essencial, sendo essencial ao regime democrático apenas a garantia do exercício do voto para todo aquele que o queira exercer livre e conscientemente. Se se defende a primeira hipótese, fica-se em dificuldade de sustentar que o ordenamento admita e possibilite os votos branco e nulo.

Se se abraça a segunda corrente, explica-se com facilidade o fenômeno.

Há que fazer uma mais ponderação. Não cabe falar em essencialidade do voto para a sobrevivência do Estado porque sempre, em todas as épocas, houve e há, ainda hoje, Estados onde não prevalece a soberania popular. Só se pode falar em essencialidade do voto, quando muito, para a manutenção dos Estados democráticos.

A questão é, pois, de liberdade e também é de lógica.

IV - AS DIMENSÕES DA DEMOCRACIA:

A democracia não se define apenas pela participação popular na formação da vontade do Estado. Ela - como sustenta Alain Touraine (O que é a Democracia, Editora Vozes, Petrópolis, 2ª edição, 1996) - não prescinde de princípios que a resguardem do arbítrio no exercício do poder.

Um governo amplamente apoiado pelas massas populares pode ser um governo despótico e antidemocrático. A História dá-nos exemplos: a Alemanha nazista; a Itália fascista. Não se pode negar que os governos que ali se instalaram, resultado da má cicatrização das feridas do primeiro pós-guerra, contaram, a princípio, com o amplo consentimento da população.

Nem por isso, no entanto, foram governos democráticos. Isso prova que a participação popular no poder é essencial, mas não suficiente à causa democrática.

A democracia é mais do que a simples participação popular no poder.

Alain Touraine, no livro já citado, aponta três dimensões para a democracia - a limitação do poder do Estado, a cidadania e a representatividade dos dirigentes. A interdependência delas é que constituiria, para o mencionado autor, a democracia. Arriscar-me-ia a apontar uma quarta dimensão: a tolerância. Se para Touraine não há possibilidade de democracia sem a limitação do poder do Estado, sem uma cidadania conquistada e reafirmada a cada dia e sem a representatividade dos dirigentes, parece-me que descabe, de igual sorte, cogitar de regime democrático quando não há espaço para a tolerância, em todos os seus matizes, inclusive e sobretudo o político-ideológico.

Numa época como a nossa - que Bobbio definiu como de politeísmo de valores - o único templo aberto, segundo o mesmo autor, deveria ser o Panteão, onde cada qual pudesse adorar o seu próprio deus. Desde que - impõe apressar-se a completar - todos consentissem em jogar o jogo democrático, tanto os que participam ativa como os que participam passivamente do processo social (o eleitoral, inclusive) e até aqueles que dele se negam - por motivos diversos que descabe considerar aqui - a participar.

A democracia não é o resultado da adição dos princípios elencados por Touraine. Tampouco qualquer dos anteditos princípios (limitação do poder do Estado, representatividade dos dirigentes políticos e cidadania) deve sobrepujar-se ao outro, mas conviver em justa e equilibrada harmonia.

Parece-me de bom alvitre superar, por isso, o fetiche da cidadania, ou seja, aquela postura que o próprio Touraine chamou de “obsessão da identidade comunitária” (Op. cit., p. 102). Não se reduza o homem ao cidadão. Aquele é anterior a esse. Em simetria, não se reduza a sociedade civil ao Estado, porque aquela é anterior e superior a esse. Tanto é assim que se falou em limitação dos poderes do Estado. Em nome de quê? Em nome dos direitos fundamentais.

Diz-se, amiúde, que o homem é ator social. A metáfora não me agrada muito.

Se por ator se entender aquele que desempenha um papel previamente escrito, cujas falas e atos lhe são ensinados prematuramente e de cujo script não pode fugir, recuso-me a admitir a propriedade da expressão. O homem, mais do que ator, é autor social, porque é ele quem deve escrever o seu próprio papel, compor o seu próprio personagem, construir o seu próprio enredo. Cada homem e cada povo é co-autor e ator de sua própria história.

O maior sustentáculo da democracia e aquilo que lhe empresta mais viril fulgor, portanto, é a vontade do cidadão de participar, responsavelmente, da coisa pública. Essa é a conclusão de Touraine, com a qual estou em linha de convergência.

V - O VOTO E A SUA EVOLUÇÃO NO CONSTITUCIONALISMO BRASILEIRO:

Como se disse em linhas transatas, a tradição constitucional brasileira sempre foi pelo voto compulsório.

A Constituição do Império cuidava dos direitos políticos - sufrágio e elegibilidade - em seus capítulos 90 a 97, nos quais estabelecia os requisitos indispensáveis para o exercício do voto pelos cidadãos. Ei-los:

“Art. 90. As nomeações dos deputados e senadores para a Assembléia Geral, e dos membros dos Conselhos Gerais das Províncias, serão feitas por eleições indiretas, elegendo a massa dos cidadãos ativos em Assembléias Paroquiais os eleitores de Província, e estes os Representantes da Nação, e Província.
Art. 91. Têm voto nestas eleições primárias:
I - Os cidadãos brasileiros, que estão no gozo de seus direitos políticos.
II - Os estrangeiros naturalizados.
Art. 92. São excluídos de votar nas Assembléias Paroquiais:
I - Os menores de vinte e cinco anos, nos quais se não compreendem os casados, e Oficiais Militares, que forem maiores de vinte e um anos, os bacharéis formados e clérigos de Ordens Sacras.
II - Os filhos famílias, que estiverem na companhia de seus pais, salvo se servirem ofícios públicos.
III - Os criados de servir, em cuja classe não entram os guarda-livros, e primeiros-caixeiros das casas de comércio, os criados da Casa Imperial, que não forem de galão branco, e os administradores das fazendas rurais e fábricas.
IV - Os religiosos, e quaisquer, que vivam em comunidade claustral.
V - Os que não tiverem de renda líquida anual cem mil réis por bens de raiz, indústria, comércio, ou empregos.
Art. 93. Os que não podem votar nas Assembléias Primárias de Paróquia, não podem ser membros, nem votar na nomeação de alguma autoridade eletiva nacional, ou local.
Art. 94. Podem ser eleitores, e votar na eleição dos deputados, senadores, e membros dos Conselhos de Província todos os que podem votar na Assembléia Paroquial. Excetuam-se:
I - Os que não tiverem de renda anual duzentos mil réis por bens de raiz, indústria, comércio, ou emprego.
II - Os libertos.
III - Os criminosos pronunciados em querela, ou devassa.
Art. 95. Todos os que podem ser eleitores, são hábeis para serem nomeados deputados. Excetuam-se:
I - Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda líquida, na forma dos arts. 92 a 94.
II - Os estrangeiros naturalizados.
III - Os que não professarem a religião do Estado.
Art. 96. Os cidadãos brasileiros em qualquer parte, que existam, são elegíveis em cada Distrito eleitoral para deputados, ou senadores, ainda quando aí não sejam nascidos, residentes, ou domiciliados.
Art. 97. Uma Lei regulamentar marcará o modo prático das eleições, e o número dos deputados relativamente à população do Império.”

A transcrição bem demonstra que o voto no Brasil imperial era censitário, estando muito longe do princípio da universalização. Uma mais acurada análise mostrará que não só para o exercício do voto era necessária a posse de bens, como isso era exigido também dos candidatos aos cargos eletivos - condição de elegibilidade - conforme inciso I, art. 95.

As restrições impostas pela Carta de 1824 ao direito de sufrágio eram tantas que a massa eleitoral brasileira, à época, era extremamente pequena. Para ter-se uma idéia, basta dizer que em 1881, quando a população brasileira era de doze milhões de habitantes, o número de eleitores inscritos alcançava o inexpressivo número de cento e cinqüenta mil pessoas, como informa o Professor Octaciano Nogueira, citando Afonso Arinos (In A Constituição de 1824. Centro de Ensino à Distância, UnB, Brasília, 1987). É dizer: 1,25% da população decidia como viveria a inteira nação.

Não se deve, todavia, atribuir as restrições impostas à universalidade do sufrágio a uma infeliz característica da legislação brasileira. De efeito, o princípio da universalização do voto só tomou corpo bem recentemente, já neste século XX.

Perceba-se que o constituinte da Carta Imperial não separava nitidamente as questões temporais e espirituais, tanto que negava capacidade eleitoral passiva aos que não professassem a religião do Estado (inciso III, art. 95).

Diferentemente do que acontece hoje, o número de parlamentares deputados à Câmara era matéria de lei ordinária, portanto, infraconstitucional (art. 97 supra).

Advirta-se que já em sua primeira Constituição o Brasil adotou - para não mais largar - o bicameralismo.

Proclamada a República, sobrevém a primeira Constituição republicana, de 1881, que, por sua vez, tratava dos direitos políticos no Título IV, “Dos Cidadãos Brasileiros”. Prescrevia o seu artigo 70:

“São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei.

§ 1º Não podem alistar-se eleitores para as eleições federais, ou para as dos estados:
1º Os mendigos;
2º Os analfabetos;
3º As praças de pré, excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior;
4º Os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações, ou comunidades de qualquer denominação, sujeitas a voto de obediência, regra, ou estatuto, que importe a renúncia da liberdade individual.
§ 2º São inelegíveis os cidadãos não-alistáveis”.

Um primeiro avanço que se verifica na Carta de 1881 é o abaixamento da idade mínima para o exercício do voto, postura essa que agregou um contingente de eleitores significativo ao corpo eleitoral do país, predominantemente uma nação de jovens àquela época e por muito tempo.

Não há referências expressas igualmente à renda anual como condição da capacidade eleitoral ativa, embora o direito ao sufrágio fosse excetuado aos mendigos e analfabetos. Com isso, continuava-se por excluir da vida política os menos abastados, com o que se pode dizer predominava o voto censitário.

Persistia-se na atitude de negar ao militar e ao religioso o direito ao sufrágio, como se a farda e o hábito ofuscassem a condição de cidadão.

Desnecessário dizer como se processavam as eleições brasileiras sob a vigência da sua primeira Constituição Republicana: corrupção, fraude, eleições simuladas, predomínio dos coronéis. As atas eleitorais eram falsificadas e sequer o eleitorado comparecia às urnas.

Os coronéis - di-lo a história dos bons autores nacionais - eram os donos dos votos e dos eleitores.

A Carta de 1934 é a primeira a referir-se, expressamente, à obrigatoriedade do voto. A capacidade eleitoral ativa era tratada no artigo 108, que dizia:

“São eleitores os brasileiros de um ou de outro sexo, maiores de 18 anos, que se alistarem na forma da lei”
Parágrafo Único. Não se podem alistar eleitores:
a) os que não saibam ler e escrever;
b) os praças de pré, salvo os sargentos do Exército e da Armada e das forças auxiliares do Exército, bem como os alunos das escolas militares de ensino superior e os aspirantes a oficial;
c) os mendigos;
d) os que estiverem, temporária ou definitivamente, privados dos direitos políticos”.

Conquanto a Carta de 34 aludisse, pela vez primeira, ao direito de sufrágio da mulher, esse direito, na verdade, já houvera sido reconhecido desde o Código Eleitoral de 1932. Em boa parte da Europa e nos Estados Unidos da América a conquista se fez antes.

Interessante notar, a esse propósito, que no berço da democracia moderna - a Inglaterra - o direito ao sufrágio feminino só surgiu em 1928, quando, na antiga colônia inglesa na América, ele já perdurava desde 1919.

A segunda Constituição Republicana prosseguiu com a tendência de abaixar a idade mínima para o exercício do voto, de vinte e um para dezoito anos. Merece aplausos por isso.

Rezava o artigo 109, que inaugurou a nossa tradição de expressa referência à obrigatoriedade do voto:

“O alistamento e o voto são obrigatórios para os homens, e para as mulheres, quando estas exerçam função pública remunerada, sob as sanções e salvas as exceções que a lei determinar”.

Enquanto o alistamento e o voto eram obrigatórios para os homens, sem outras condições senão aquelas gerais previstas (art. 108), no caso das mulheres o voto só era compulsório para aquelas que exercessem função pública remunerada, como se vê textualmente no dispositivo transcrito.

A diferença de tratamento era, como é, de difícil compreensão. Na verdade, traduzia o sistema patriarcal e machista em que vivíamos: a mulher precisava de algo mais para ser considerada cidadã. Se se entender que o voto é função pública impostergável e título de cidadania, não se o pode cassar por motivo de sexo. O tratamento dado à mulher era indiscutivelmente inferiorizante.

Não estou a afirmar que a institucionalização da obrigação do voto é título de cidadania - bem longe estou disso. O que afirmo é que, se se pensa que o voto é dever cívico irrecusável, não se podem erigir condições para o seu exercício diferentes para homens e mulheres.

Conquanto a Carta de 1934 houvesse abraçado o sufrágio universal, direto e igual (art. 23), a realidade histórica foi um pouco diferente. Com efeito, o Presidente da República foi eleito pela Assembléia Constituinte, assim como os Governadores foram eleitos pelas respectivas Assembléias Constituintes de seus Estados, tudo por força do que dispunha o artigo 3º das Disposições Constitucionais Transitórias.

O artigo 117 da Constituição de 1937 - Constituição do Estado Novo - reproduzia o artigo 108 da Carta de 1934 e suscitou muitos debates acerca da maioridade civil. Questionava-se, desde 34, se o abaixamento da idade para a aquisição da capacidade política implicava a revogação do Código Civil, no que concernia à capacidade civil. Posicionou-se a doutrina, de forma acertada, pela solução negativa.

O parágrafo único do artigo 117 da Carta de 37 dispunha sobre aqueles que não podiam alistar-se eleitores. Eram eles: os analfabetos; os militares em serviço ativo; os mendigos e os que estivessem privados, temporária ou definitivamente, dos direitos políticos. Como se vê, nenhuma particular inovação em relação a tudo quanto já dispunham as ordens constitucionais pretéritas, no que diz respeito à capacidade eleitoral ativa.

Uma evolução significativa, porém, é que não se exigia nenhuma condição especial de elegibilidade para os candidatos à Câmara dos Deputados. Bastava-lhes ser eleitor.

A Carta de 1937 foi - no geral - omissa quanto ao sistema eleitoral, instituído com o Código de 32 e aprimorado com a Carta de 34, o que representou um enorme retrocesso para as instituições democráticas do país. De efeito, o sistema eleitoral precedente criara uma Justiça Eleitoral a quem fora atribuído o alistamento dos eleitores, o exame das argüições de inelegibilidade e incompatibilidade, a apuração dos votos, a proclamação dos eleitos (art. 83). Tudo isso - o que não é de causar espécie, visto tratar-se de um período de exceção, autoritário - sequer foi mencionado pela Carta de 37.

A Constituição de 1946 - baluarte da redemocratização do país - representou a retomada da garantias dos direitos políticos da sociedade brasileira.

Trouxe ela significativos avanços para o sistema eleitoral, entre eles a garantia do voto secreto (já referendado pelo Código Eleitoral de 32), indispensável à livre escolha de representantes pelo corpo eleitoral.

Dizia o seu artigo 134:

“O sufrágio é universal e direto; o voto é secreto; e fica assegurada a representação proporcional dos partidos políticos nacionais, na forma que a lei estabelecer”.

Não obstante o seu caráter libertário - natural após um regime ditatorial - a Constituição de 46 manteve a proibição do voto dos analfabetos (art. 132), aos quais era defeso o alistamento, muito embora o artigo 133 prescrevesse que “o alistamento e o voto são obrigatórios para os brasileiros de ambos os sexos, salvo as exceções previstas em lei”.

Com a insistência na negativa de atribuir-se capacidade eleitoral ativa ao analfabeto, o princípio da universalização do voto era por demais mitigado e não chegou, a bem da verdade, a ser aplicado em toda a sua inteireza. Ora, historicamente o índice de analfabetismo no Brasil nunca esteve abaixo da casa dos 20%, o que representa um contingente humano muito superior a populações inteiras de diversos países latino-americanos, por exemplo. E como, então, falar-se em democracia representativa diante de tal cenário? Como falar-se, pois, no voto como função e essencial à sobrevivência do Estado? Não seria um contra-senso instituir-se a obrigatoriedade do voto para, ao depois, estabelecerem-se discriminações fundadas no grau de instrução? As respostas que busco devem ser encontradas no campo principiológico, não meramente no pragmático.

Com o golpe militar de 1964 - que alguns historiadores pouco sérios insistem em cognominar, num eufemismo ridículo, de Revolução - são cassados os direitos da cidadania brasileira. A Constituição Formal era exemplar, palreando um rosário de “direitos políticos” (arts. 147 a 151), enquanto a Constituição Material era bem diversa, pela prática de arbitrariedades contra a vontade popular e os direitos fundamentais.

Suprimiram-se a liberdade de imprensa, o livre curso do pensamento, o livre trânsito da manifestação artística e científica. Tudo passou a ser tratado pela ótica míope da ideologia dos generais. Mas, contraditoriamente, o voto continuou a ser obrigatório.

Foram inúmeros os casuísmos e farta a legislação espúria, cujo único propósito era anular a soberania popular. Vejam-se os exemplos: Código Eleitoral (Lei n.º 4.737, de 15.07.65 e suas alterações); Lei das Inelegibilidades (Lei Complementar n.º 5, de 29.04.70 e suas alterações); Lei Orgânica dos Partidos Políticos (Lei n.º 5.682, de 21.08.74 e suas alterações); Lei de Transporte e Alimentação (Lei n.º 6.091, de 15.08.74).

Apesar disso, o voto continuava sendo compulsório, a pretexto de integrar a população na vida democrática. Vida democrática de um país que só podia ter dois partidos políticos (Arena e MDB); cujas manifestações artísticas sofriam com a intolerância da censura; cujos intelectuais foram mandados embora; cujas universidades foram esvaziadas e perderam referência como centro de saber; cuja literatura passou a ser pouco mais do que um panfleto do poder dominante; cujas escolas primárias (e eu tive essa experiência) ensinavam aos incautos garotos que “esse é um país que vai para a frente, de um povo unido, de grande valor, um país que canta, trabalha e se agiganta, um país do nosso amor”, numa espécie de patriotismo pueril e gasto, tão estéril quanto a senilidade... Mas o voto ainda era obrigatório.

O voto era obrigatório, mas as consciências não eram livres.

Votava-se compulsoriamente, mas nem sempre se sabia em quem se votava e por que se votava.

Na vigência da Constituição de 1967, com a Emenda Constitucional n.º 1, de 69, foram banidas as eleições diretas para Presidente, Governador e Prefeito.

E o voto era compulsório. Talvez para fingir à comunidade internacional que nós tínhamos uma “autêntica” democracia. Talvez para iludir o público interno de que nós vivíamos efetivamente uma democracia, “num país que trabalha e se agiganta”.

O período de exceção pós-64 representou a ausência do Estado de Direito.

Quem quer que aspirasse aos princípios democráticos era tido na conta de “subversivo” e contrário aos ideais libertários do regime de força que se instalara. Nunca, em nossa história republicana - nem mesmo na era Vargas - o presidente teve tanto poder quanto os presidentes-generais. Citem-se dois exemplos, apenas: o poder de restrição a emendas nos projetos de sua iniciativa; o famigerado decreto-lei (esse com uma nova roupagem nos dias que correm: a medida provisória, uma boa idéia que vem tendo manejo autoritário).

Com a Constituição Federal de 1988, redemocratizou-se a sociedade brasileira. Sobreveio a liberdade de expressão do pensamento, de criação e atuação dos partidos políticos. Sepultou-se a censura. Respirou-se.

Mas não conseguimos superar o mito do voto obrigatório.

Diz o § 1º, do art. 14, da Lex Legum em vigor:

“O alistamento eleitoral e o voto são:
I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos;
II - facultativo para:
a)os analfabetos;
b)os maiores de setenta anos;
c)os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos.

A nova Carta Política representou, sem dúvida alguma, um avanço expressivo para a construção da nossa democracia. Facultou o voto para os analfabetos, assim como para os maiores de setenta anos e maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. Poderia ter ido mais longe. Poderia ter instituído o voto facultativo como regra. Não o fez, porém.

A atual ordem constitucional permitiu - quebrando uma tradição brasileira de há muito estabelecida - o voto dos militares. Manteve, todavia, a proibição de alistamento eleitoral aos conscritos, ou seja, aqueles recrutados anualmente para o treinamento obrigatório nas Forças Armadas. Não vejo nenhuma razão para a restrição, que de maneira alguma se justifica. Os conscritos são cidadãos e não perdem essa condição por estarem a serviço obrigatório da pátria. O exercício do voto de modo algum se incompatibiliza com a prestação do serviço militar. Portanto, os conscritos devem ter direito ao sufrágio.

A nossa história republicana - marcada, é bem verdade, por longos períodos de exceção - demonstra cabalmente que a instituição do voto obrigatório não oferece contribuição significativa para a construção de uma democracia plena. Precisa ser repensada.

VI - O VOTO NO DIREITO COMPARADO:

Hoje, a grande maioria dos países do mundo pratica o voto facultativo e não há notícias de que vivam, por isso, em crise institucional ou de legitimidade do poder.

O argumento de que o voto facultativo transformar-se-ia em fator desestabilizador da sociedade, à medida que promoveria o desinteresse pela cidadania e pelas questões do Estado, não encontra respaldo, portanto, na prática de centenas de países que não adotam o voto obrigatório e que - coincidência ou não - são exemplos de democracia em todo o mundo. Citem-se, para ficar em dois, os Estados Unidos da América e a Suíça.

Caminhando por outras searas, se o voto compulsório fosse garantia de estabilidade das instituições democráticas não teria havido golpe militar no Brasil nem na maior parte dos países ao sul do Equador. O que se tem é, portanto, uma tese que se contrapõe ao fenômeno e, não satisfeita com o desmentido categórico e reiterado dos seus postulados, tenta provar que o fenômeno é que está errado...

Nos dias presentes, o voto continua sendo obrigatório em aproximadamente trinta países do mundo, metade dos quais está na América Latina. Isso não quer dizer que países desenvolvidos, como a França, verbi gratia, não pratiquem o voto obrigatório.

A pesquisa que empreendi permitiu-me traçar um esboço demonstrativo de como as legislações estrangeiras tratam a matéria. A seguir, elenco alguns países, primeiro onde o voto é compulsório, depois onde o voto é facultativo, indicando, para cada um deles, o dispositivo constitucional que versa sobre o assunto.

O voto é obrigatório nos seguintes países:

1 - Nação Argentina - art. 37. “Esta Constitución garantiza el pleno ejercicio de los derechos políticos, com arreglo ao principio de la soberanía popular y de las leys que se dicten em consecuencia. El sufragio es universal, igual, secreto y obligatorio”.

2 - República do Chile - art. 15. “En las votaciones populares, el sufragio será personal, igualitario y secreto. Para los cuidadanos será, además, obligatorio.”

3 - República Popular de Angola - art. 20. “Todos os cidadãos maiores de 18 anos, com exceção dos legalmente privados dos direitos políticos, têm o direito e o dever de participar ativamente na vida pública, votando e sendo eleitos ou nomeados para qualquer órgão do Estado e desempenhando os seus mandatos com inteira devoção à causa da Pátria e do Povo Angolano.”

É interessante notar que Angola constitui-se num Estado socialista, onde o poder é exercido pelo MPLA - Partido do Trabalho, de inspiração marxista-leninista, conforme expressamente vai dito no artigo 2º de sua Carta Fundamental. Pois bem. O paradoxo é inevitável: o voto é obrigatório onde o partido é único e o cidadão nem tem opção. Para que, então, o voto?

4 - Estados Unidos Mexicanos - art. 35. “São prerrogativas do cidadão: I - votar nas eleições populares”. Art. 36. “São deveres do cidadão da República: III - votar nas eleições populares, no respectivo distrito.”

Curioso verificar que, apesar dos termos imperativos do dispositivo acima transcrito, não se vem aplicando sanção alguma àquele que deixar de votar. Leiam-se as palavras de José Woldenberg, expressas no artigo “El Voto”, in verbis

“Los derechos y las prerrogativas de los ciudadanos se suspendem por falta de cumplimiento, sin causa justificada, de cualquiera de las obligaciones que impone el artículo 36.

Dicha suspensión - según el dictado Constitucional - ‘durará un año y se impondrá además de las otras penas que por el mismo hecho señalare la ley’. No obstante, como todos sabemos, si uno no vota o deja de registrarse en el padrón no se le impone ningún castigo. De tal suerte que en nuestro pais el derecho a votar es eso, una prerrogativa que si no se ejerce no acarrea pena legal alguna.” (In Serie Derechos Políticos, Academia Maxicana de Derechos Humanos, Filosofia y Letras, n.º. 88, Copilco Universidad, México-DF, 1997).

5 - República Portuguesa - art. 49. 1. “Têm direito de sufrágio todos os cidadãos maiores de dezoito anos, ressalvadas as incapacidades previstas na lei geral. 2. O exercício do direito de sufrágio é pessoal e constitui um dever cívico.”

6 - República da Venezuela - art. 110. “O voto é um direito e uma função pública. O seu exercício será obrigatório, nos limites e condições que a lei estabelecer.”

7 - República Popular de Moçambique - art. 27. “Na República Popular de Moçambique todos os cidadãos têm o direito e o dever de, no quadro da Constituição, participar no processo de criação e consolidação da democracia, em todos os níveis da sociedade e do Estado.” Art. 28. “Todos os cidadãos da República Popular de Moçambique maiores de 18 anos têm o direito de votar e ser eleitos, com exceção dos legalmente privados deste direito.”

Assim como Angola, Moçambique é um Estado socialista, onde o poder é exercido pelo FRELIMO, partido único, de orientação marxista-leninista. É o que prescreve em claras linhas o artigo 3º da Constituição Federal.

8. Itália - art. 48. “São eleitores todos os cidadãos, homens e mulheres, que tenham atingido a maioridade. O voto é pessoal e igual, livre e secreto. O seu exercício constitui dever cívico. O direito de voto não pode ser limitado senão por incapacidade civil ou por efeito de sentença penal irrevogável ou nos casos de indignidade moral cominados na lei.”

9. França - art. 3º. “A soberania nacional pertence ao povo, que a exerce através dos seus representantes e através de referendos.
Nenhuma secção do povo e nenhum indivíduo se podem arrogar o seu exercício.

O sufrágio pode ser direto ou indireto nos termos previstos pela Constituição. É sempre universal, igual e secreto.

São eleitores, nas condições determinadas pela lei, todos os nacionais franceses, maiores, de ambos os sexos, no gozo dos direitos civis e políticos.”

Em França, são eleitos por votação direta o Presidente e os Deputados (arts. 6º e 24, 1, CF). O senado, por sua vez, é eleito por votação indireta (art. 24, 2).

10. República Oriental do Uruguai - art. 77: “Todo ciudadano es miembro de la soberanía de la Nación; como tal es elector y elegible en los casos y formas que se designarán.

El sufragio se ejercerá en la forma que determine la Ley, pero sobre las bases siguientes:

1º. Inscripción obligatoria en el Registro Cívico;

2º. Voto secreto y obligatorio. La ley, por mayoria absoluta del total de componentes de cada Cámara, reglamentará el cumplimiento de esta obligación.”

Eis algumas ordens constitucionais onde o voto é facultativo:

11 - República Federal da Alemanha - art. 38. “Os deputados ao Parlamento Federal Alemão são eleitos por sufrágio universal, direto, livre, igual e secreto. São representantes de todo o povo, independentes de mandato imperativo e instruções e subordinados unicamente à sua consciência.

12 - Confederação Suíça - art. 43. “Todo o cidadão de um cantão é cidadão suíço. 2. A esse título, pode participar, no lugar onde tiver o seu domicílio, em todas as eleições e votações federais, desde que justifique devidamente a qualidade de eleitor.”

13 - Estados Unidos da América - XV Emenda (1870): 1. “O direito de voto dos cidadãos dos Estados Unidos não poderá ser negado ou cerceado pelos Estados Unidos, nem por qualquer Estado, por motivo de raça, cor ou de prévio estado de servidão.” XIX Emenda (1920): “O direito de voto dos cidadãos dos Estados Unidos não será negado ou cerceado em nenhum Estado em razão do sexo.” XXIV Emenda (1964): “Não pode ser negado ou cerceado pelos Estados Unidos ou qualquer dos Estados o direito dos cidadãos dos Estados Unidos de votar em qualquer eleição primária para Presidente ou Vice-Presidente, para eleitores do colégio eleitoral do Presidente ou Vice-Presidente, ou para Senador ou Representante do Congresso, em razão de não haver pago qualquer imposto eleitoral, ou algum outro imposto.” XXVI Emenda (1971): “O direito de voto dos cidadãos dos Estados Unidos, de dezoito anos de idade ou mais, não será negado ou cerceado pelos Estados Unidos ou por qualquer dos Estados, por motivo de idade.”

14 - Espanha - art. 69. “O Senado é a Câmara de representação territorial.

2. Em cada província serão eleitos quatro Senadores por sufrágio universal, livre, igual, direto e secreto pelos eleitos nela inscritos, nos termos a fixar por lei orgânica.”

A Espanha é um Estado social e democrático, de monarquia parlamentar (arts. 1º c/c 56 e 66 CF).

15 - Japão - art. 15. “O povo possui o direito inalienável de escolher os titulares de cargos públicos e de os demitir. Os titulares de cargos públicos são servidores de toda a comunidade e não de qualquer grupo. É garantido o sufrágio universal dos adultos. O voto é secreto. Ninguém será obrigado a responder pela escolha que fizer.”

16 - Cabo Verde - art. 48. “Os deputados são eleitos pelos círculos eleitorais por sufrágio livre, universal, igual, direto e secreto. São eleitores todos os cidadãos nacionais maiores de 18 anos, ressalvadas as incapacidades estabelecidas na lei.”

Observação: Estado onde o poder é exercido pelo PAICV (Partido Africano de Independência de Cabo Verde), de inspiração marxista-leninista, art. 4º c/c 10, CF.

17 - Argélia - art. 58. “Todo o cidadão que preencha as condições legais é eleitor e elegível.” Art. 80. “Todo o cidadão é obrigado a dar provas de disciplina cívica e a respeitar os direitos, as liberdades e a dignidade dos outros.” Art. 105. “O Presidente da República é eleito por sufrágio universal, direto e secreto da maioria absoluta dos eleitores inscritos.” Art. 128. “Os membros da Assembléia Popular Nacional são eleitos por sufrágio universal, direto e secreto, sob proposta da direção do Partido.”

A nação argelina é um Estado socialista (art. 10, CF), teocrático (art. 2º, CF), sendo o islã a religião oficial. É, também, um estado de partido único.

Mesmo em países governados por ditaduras proletárias, como se viu da breve pesquisa esboçada, admite-se a facultatividade do voto. Estão eles, os ditos países, sendo menos hipócritas do que aqueloutros que, não obstante vivam sob a ditadura do partido único, instituem o voto obrigatório, certamente na tentativa de legitimar o poder pelo consentimento popular, esboçado numa artificiosa participação popular no processo eleitoral. Mero engodo.

A experiência dos países que adotaram o voto facultativo joga uma pá de cal nos argumentos fundamentalistas daqueles que - valendo-se do discurso embasado no catastrofismo, tão ao gosto nos dias de hoje, proclamam que o fim do voto obrigatório implicaria a perda de soberania do povo e o predomínio de aristocracias organizadas. Tudo isso não passa de terrorismo de opinião. Países extremamente desenvolvidos como os Estados Unidos, a Suíça, a Alemanha, o Japão e até países pobres, como ficou visto, desmentem categoricamente essa falácia.

Poder-se-ia objetar: ora, o voto pode ser facultativo nesses países porque o seu povo é educado e o nível de vida da população dá-lhe a oportunidade de informar-se e esse não é o caso do Brasil.

Essa linha de raciocínio prova, apenas, quanto o seu mentor está dissociado de uma visão ampla da democracia. Essa construção teórica eqüivaleria àquela de dizer que a democracia só poderia ser praticada nos países desenvolvidos, sem grandes diferenças sociais, não assim quando se tratasse de nação pobre, com forte concentração de renda. Esquecem os apologistas de tais “verdades” que a democracia é fator indispensável de progresso econômico e social. Nesse sentido, os termos da equação devem ser invertidos. Antes eram: desenvolva-se um país e depois dê-se-lhe democracia. Agora deve ser: dê democracia ao país para que ele possa desenvolver-se de forma sustentada e equânime.

É claro que as decisões são mais difíceis num regime democrático, mas tendem a produzir melhores frutos.

Não se nega que, num primeiro momento, possa haver, por parte de setores descrentes da população, um sentimento de alívio por não ter mais de votar.

Mas isso seria logo superado, pela percepção de que a integração no jogo democrático é decisiva para o progresso nacional e a cristalização dos interesses em âmbito mais dilatado. De qualquer sorte, esses setores já demonstram a sua descrença hoje, votando em branco, anulando o seu voto, ou mesmo se abstendo de votar. A obrigatoriedade não tem o condão de cooptá-los; a persuasão racional, talvez.

O voto deixaria de ser “o fardo da cidadania” para ser a consciente e estudada expressão da vontade.

Mas não se romantize: a democracia não é fácil.

VII - A NATUREZA DO VOTO:

José Afonso da Silva (In Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editores, 12ª Edição, São Paulo, 1996), ao tratar a matéria, formula uma distinção pertinente, que às vezes passa despercebida a alguns. Diz o mencionado autor que a Constituição Federal distingue os conceitos de sufrágio, voto e escrutínio. Conquanto os três termos refiram-se ao processo de participação do povo no governo, o primeiro termo expressa, na verdade, o direito (sufrágio); o segundo termo expressa o exercício do aludido direito, ou seja, o voto seria o exercício do direito de sufrágio; já o escrutínio expressa o modo por que se exerce o voto. Sem dúvida, válida a lição.

Num primeiro lance de vista, percebe-se que é totalmente descabido falar-se em dever de sufrágio, na legislação brasileira. Até porque, como se disse a passos já dados, o cidadão não está na iminência de votar em qualquer nome, sendo-lhe possível, já que o escrutínio é secreto, votar em branco ou mesmo votar nulo. Esqueça-se, porque imprópria, qualquer alusão à obrigatoriedade do sufrágio. Ele é um direito público subjetivo democrático.

Posição essa defendida não só pelo autor de que se vem de falar como também pelo consenso razoável da doutrina brasileira.

Mas cabe já agora perguntar: e o voto, qual a sua natureza?

Dê-se a palavra a José Afonso da Silva:

“Daí se conclui que o voto é um direito público subjetivo, uma função (função da soberania popular na democracia representativa) e um dever, ao mesmo tempo. Dever jurídico ou dever social. Não resta dúvida de que é um dever social, dever político, pois, ‘sendo necessário que haja governantes designados pelo voto dos cidadãos, como é da essência do regime representativo, o indivíduo tem o dever de manifestar sua vontade pelo voto’. Esse dever sócio-político do voto independe de sua obrigatoriedade jurídica. Ocorre também onde o voto seja facultativo. Mas, como simples dever social e político, seu descumprimento não gera sanção jurídica, evidentemente.” (Op. cit., p. 342 - destaques no original).

Como reconhece o próprio autor epigrafado, da circunstância - de resto plenamente aceitável no campo teórico - de que, num regime representativo, é necessário que haja governantes indicados pelos cidadãos, razão por que o voto constituiria um dever político, não se segue que seja igualmente o voto um dever jurídico. Quem quer que defenda o contrário está, a bem dizer, fazendo uma clara opção axiológica. A premissa maior (num regime representativo os governantes devem ser indicados pelos cidadãos) associada à premissa menor (o voto é um dever político) não permite a conclusão de que seja compulsório o voto. Não é, pois, como pretendem alguns, um mero exercício de raciocínio lógico-dedutivo. É uma clara opção feita a partir de uma pauta valorativa.

Ora, é lícito inferir que o voto não é obrigatório, apenas o comparecimento do eleitor à seção eleitoral o é. Mas, sendo assim, aquele cidadão que comparece à seção eleitoral e vota em branco ou nulo terá cumprido o seu dever jurídico, mas não terá, com certeza, cumprido o seu dever social e político. E então? Então nada, porque o dever social e político é de índole moral, sem sanção externa organizada. Apenas o não comparecimento injustificado à seção eleitoral é que é legalmente sancionável.

Percebe-se, do que ficou exposto, que o mais - o cumprimento do dever social e político - está na soberana discrição do eleitor; enquanto o menos - o comparecimento à seção eleitoral no dia da votação - é imposto pela lei com todas as pompas e circunstâncias. Causa espécie!

Aqueles que afirmam que o voto deve ser obrigatório uma vez que essencial à sobrevivência do Estado deveriam, por imposição de coerência, esposar a tese de que o cidadão está na contingência de escolher um nome. O voto válido é que seria a obrigação do eleitor. O não-voto - o voto branco ou nulo - seria, portanto, a expressão de violação do dever de votar, jamais uma opção política, consciente ou não, consentida pela lei.

Difícil encontrar tese mais fascista ou alguém que se sinta em boa sombra para ventilá-la.

Se se entender, como imagino que deva ser, que o ato de votar não significa o simples depósito da cédula eleitoral na urna de votação e a assinatura da respectiva ata, mas a efetiva escolha de um representante, dentre os candidatos registrados, penso que o exercício do direito de sufrágio (o voto), se obrigatório, é incompatível com o escrutínio secreto.

O voto é sim um dever, mas um dever social e político. E ponto. No nosso meio, historicamente, o comparecimento do eleitor à sessão eleitoral no dia da votação, esse sim, sempre foi um dever jurídico.

É de perguntar: a que serve o dever jurídico de comparecimento à seção eleitoral, o depósito da cédula e a subscrição da ata de votação?

VIII - O VOTO OBRIGATÓRIO E O MITO DA LEGITIMIDADE:

Afirmarei sem rodeios: é falsa a idéia de que o voto compulsório empresta maior legitimidade ao poder constituído.

Aliás, a minha percepção do processo eleitoral diz-me exatamente o contrário, ou seja, que o governante terá tanto maior legitimidade quanto mais espontâneo houver sido o processo de sua escolha.

Pense-se em duas eleições. Na primeira, em que o voto é obrigatório, 80% dos eleitores comparecem e votam, sendo válidos 62% dos votos proferidos. Na segunda, em que o voto é facultativo, 50% dos eleitores comparecem e votam, sendo desprezível o número de votos inválidos. Onde estaria a maior legitimidade do poder, no primeiro ou no segundo caso?

Não tenho dúvidas em responder que no segundo caso. E por quê? Porque a legitimidade do poder democrático é mais do que quantidade, é qualidade também. É inegável que aquele cidadão que - não tendo a obrigação legal de fazê-lo - vai à seção eleitoral e vota validamente concorre muito mais para o aperfeiçoamento da democracia do que aquele que comete o mesmo ato compelido apenas pelo receio da sanção e nada mais. O primeiro debate, em casa, na escola, com a família, com os amigos, na comunidade, as melhores opções, o rumo a seguir. O segundo reverbera contra o sistema e amaldiçoa os infelizes que o fizeram perder um dia de praia e sol, que bem poderia ser aproveitado num feriado ocasional.

Pode ser que se imagine de forma diversa: que a quantidade é o único dado praticamente importante numa democracia (visão míope, mas possível!).

Ainda assim, resta saber se a instituição do voto obrigatório traz alguma garantia de participação popular.

Vejamos - em rápidas referências - os números das últimas eleições brasileiras, ocorridas no final do ano transato. Os apresentados a seguir foram colhidos na página do Tribunal Superior Eleitoral - TSE na Internet, no seguinte endereço: http://www.tse.gov.br/ele/divulgacao/pres-html.

Havia no Brasil, aptos a votar nas últimas eleições, 106.101.067 (cento e seis milhões, cento e um mil e sessenta e sete) eleitores. Desses, 21,49% (vinte e um vírgula quarenta e nove por cento) se abstiveram na eleição presidencial, ou, em números absolutos, 22.798.922 (vinte e dois milhões, setecentos e noventa e oito mil, novecentos e vinte e dois) eleitores não compareceram às urnas. Dos votos apurados, 8,03% (oito vírgula zero três por cento) foram em branco, ou 6.688.610 (seis milhões, seiscentos e oitenta e oito mil, seiscentos e dez) eleitores que compareceram votaram em branco; e 10,67% (dez vírgula sessenta e sete por cento) foram de votos nulos, ou 8.884.430 (oito milhões, oitocentos e oitenta e quatro mil, quatrocentos e trinta) eleitores compareceram às urnas simplesmente para anular o voto. O candidato vitorioso em primeiro turno, ressalve-se, obteve 53,06% (cinqüenta e três vírgula zero seis por cento) dos votos válidos, ou 35.936.916 (trinta e cinco milhões, novecentos e trinta e seis mil, novecentos e dezesseis) votos. Esse universo corresponde a apenas 33,8% (trinta e três vírgula oito por cento) do eleitorado. Ou seja, o Presidente eleito, em primeiro turno, governará escudado na aprovação de apenas um terço do eleitorado. Não mais que isso! Mas a democracia não é o governo da maioria?!

Se os dados a serem considerados forem regionalizados, a situação fica ainda mais dramática. Nos estados federados menos politizados e mais atrasados econômica e culturalmente, o fosso é mais abissal. Em Sergipe, por exemplo, onde a abstenção na eleição presidencial foi de 21,66% (vinte e um vírgula sessenta e seis por cento), os votos em branco alcançaram o patamar de 13,17% (treze vírgula dezessete por cento) e os votos nulos atingiram o escore 12,74% (doze vírgula setenta e quatro por cento), o candidato mais votado obteve 47,37% (quarenta e sete vírgula trinta e sete por cento) dos votos válidos. Esse dado pode impressionar num primeiro momento, mas, se olhado com mais acuidade, revelará uma outra realidade, menos alvissareira: o candidato vitorioso teve apenas 27,5% (vinte e sete vírgula cinco por cento) dos votos daqueles que detinham capacidade eleitoral ativa no estado. E onde fica - uma vez mais - a regra da maioria?!

É claro que eu não ataco o resultado da eleição, ou afirmo que o Presidente eleito não tenha legitimidade para governar. Não é esse o ponto. Desmascaro simplesmente o argumento falso dos que afirmam que o voto facultativo afugentaria o eleitor. Ora, acima vão transcritos os dados das últimas eleições presidenciais; mas quem quer que se dê ao trabalho verá que os elevados índices de abstenção, votos brancos e nulos são uma constante na história eleitoral brasileira. E por quê? São muitos os fatores, razão pela qual me limito a apontar dois. Primeiro, pelas deficiências do próprio sistema: é ingênuo imaginar que num regime democrático todos participam e votam, porquanto sempre haverá os dissidentes, de quaisquer ideologias, de quaisquer idéias, de qualquer coisa. Depois, pela incapacidade da classe política brasileira de empreender um discurso que persuada a sociedade, atolada até o pescoço na descrença e na desesperança.

O fenômeno observado na eleição presidencial repetiu-se nas eleições para governadores. Na Paraíba, minha terra natal, o governador reeleito obteve a espantosa marca de 80,72% (oitenta vírgula setenta e dois por cento) dos votos válidos, reelegendo-se em primeiro turno. Esse número, no entanto, mascara outros, igualmente gigantescos: um quarto dos eleitores não votaram, ou seja, 24,63% (vinte e quatro vírgula sessenta e três por cento) dos eleitores não compareceram às urnas; 22,34% (vinte e dois vírgula trinta e quatro por cento) votaram em branco e 12,76% (doze vírgula setenta e seis por cento) votaram nulo (In http://www.tse.gov.br/ele/divulgacao/gov-pb.html). A eleição para o governo da Paraíba pode ser lida sob duas óticas, igualmente superlativas. Pela primeira, o governador reeleito estaria amplamente apoiado na opinião pública, já que obteve mais de oitenta por cento dos votos válidos. Pela segunda, o governador só teria o beneplácito de 39,48% (trinta e nove vírgula quarenta e oito por cento) do eleitorado e não teria, assim, consentimento popular. Mas não se cometa o maior de todos os crimes contra a lógica: a generalização banal.

O resultado das eleições proporcionais - deputado federal e deputado estadual - foi ainda mais dramático.

O que isso prova? Prova que o voto obrigatório não funciona como instrumento de legitimação do poder. Prova que a crítica lançada ao voto facultativo pelos fautores do voto compulsório, segundo a qual a legalização da abstenção levaria ao descaso do cidadão pela coisa pública, é uma teoria catastrofista que esquece - ou omite propositadamente - uma realidade palpável, que o comparecimento obrigatório não se mostrou capaz de mudar.

Prova que, numa democracia, é inútil forçar o cidadão a tomar decisões políticas quando ele não esteja convencido de que o deva, da sua oportunidade ou da viabilidade das opções que lhe são oferecidas.

Mas poder-se-ia objetar: se o voto não fosse obrigatório, a situação seria ainda pior do que aquela que ficou descrita. Logo, melhor que se preserve o modelo. A objeção pecaria, outrossim, por diversas razões. A uma, é conjectura pura, porquanto nunca houve experiência no Brasil que apontasse o acerto da idéia. A duas, prefere insistir num equívoco histórico a investir em novas concepções que revolucionem as instituições democráticas.

A três, pela sua postura conservadora e misoneísta, que rejeita a mudança apenas porque altera o estabelecido. A quatro, fecha os olhos para a experiência internacional, na qual o voto facultativo vem sendo empregado com bons resultados e sem comprometimento da ordem democrática. A cinco, esquece que a participação popular deve ser incentivada através de uma política de educação cívica, fortemente apoiada em princípios democráticos, de limitação do poder do Estado, respeito aos direitos fundamentais e proteção da cidadania.

IX - OS INCONVENIENTES DE ORDEM PRAGMÁTICA DO VOTO OBRIGATÓRIO:

Adoto o voto facultativo por princípio, na linha de tudo o quanto restou dito atrás. Todavia, muitas são as razões de ordem prática que também socorrem essa posição.

A representação política não ganha absolutamente nada com a instituição do voto compulsório, mas corre sérios riscos de perda. Efetivamente, na medida que o ato de votar deve traduzir minimamente algum interesse do cidadão em participar dos assuntos da vida social, o que esperar daquele que - pelos mais diversos motivos - não se sente inclinado a qualquer manifestação?

Por outro lado, não me parece desacertada a alegação de quantos afirmam que o voto compulsório é aliado do poder econômico no processo eleitoral. E por quê? Porque todo aquele que vota de forma consciente e após estudada análise das opções está em condições muito mais difíceis de ser cooptado do que aquele que não tem nenhum compromisso com o voto que profere. O primeiro comparece às urnas espontaneamente; o segundo, pressionado pelo receio da sanção. Aquele que vota sem qualquer interesse verdadeiro - e só o faz porque tem medo da sanção - desde logo deixa muito claro o seu total descompromisso com o voto, ao qual atribui pouca ou nenhuma importância, razão por que lhe é fácil dele dispor, fazer dele objeto de mercância, sem qualquer constrangimento.

E mais. Como verbera com acerto Celso Antônio Bandeira de Melo (In Direito Eleitoral, Coordenadores Cármen Lúcia Antunes Rocha e Carlos Mário da Silva Velloso, Livraria Del Rey, Belo Horizonte, 1996, p. 43), o voto compulsório favorece a eleição de oportunistas e demagogos, haja vista que, sem dúvida alguma, o indiferente é com muito maior facilidade manipulável do que aquele que vota movido pela convicção. O indiferente - aquele que se jacta de desinteressar-se da política e votar apenas porque está a isso compelido - tenderá muito mais facilmente a sufragar o nome de qualquer pessoa que tenha notoriedade, no campo esportivo ou artístico, sem perquirir, superficialmente que seja, as idéias políticas que essa pessoa professa.

Perceba-se que a participação do cidadão no processo eleitoral é utilizada como argumento a favor da legitimação do processo em si. Ou seja, quanto maior a participação popular, mais legítimos o processo eleitoral e o resultado do pleito. Esquecem-se de dizer - os que assim pensam - que o cidadão pode questionar o próprio processo eleitoral, não o legitimando. E essa postura pode ter forte conotação política, de engajamento. Veja-se o caso da emenda constitucional que permitiu a reeleição. Não são poucas as pessoas que a ela ficaram contrárias, quer por motivo de princípio, quer porque não admitem a mudança das regras do jogo para benefício do príncipe do momento. Pois bem. Essas pessoas não tiveram o direito de abster-se, antes foram compelidas a “legitimar” um processo eleitoral com o qual não estavam de acordo - e tinham motivos políticos para isso. Aqui não cabe dizer que a essas pessoas restava o caminho do voto em branco ou nulo, porque estes, ainda que inválidos, de alguma forma legitimam o processo. O que se pretendia era patentear a não-legitimidade do processo eleitoral em si mesmo.

Além de tudo, o voto obrigatório é uma ficção. O que é obrigatório mesmo é o comparecimento do eleitor à seção eleitoral. Por outro lado, de 1947 até hoje foram vinte os projetos de anistia dos faltosos; e de 1992 a esta data, todos os faltosos das eleições foram anistiados. O que estamos fazendo, então?

Extremamente interessante é o testemunho dado, em sessão realizada em 03.04.97, da Comissão Provisória do Senado Federal pelo Senador José Fogaça, do Rio Grande do Sul, a propósito de proposta de emenda à Constituição que visava a adotar o voto facultativo no Brasil. Diz-nos S. Exa., com a experiência de quem vive o processo político em todos os seus matizes, que, após longo período como adepto do voto obrigatório, mudou de idéia radicalmente após o plebiscito que ratificou o presidencialismo entre nós. Para o parlamentar, 95% (noventa e cinco por cento) das pessoas que compareciam aos locais de votação não tinham clara idéia do que estavam votando. E - ainda segundo o senador - se um cidadão não tem uma idéia muito bem definida do que está sendo votado, ele prefere manter o conhecido, mesmo quando isso seja ruim, a votar no desconhecido. O voto obrigatório, por essa linha de raciocínio desenvolvida pelo ilustre parlamentar, embora ele não o diga, teria, como tem, um forte componente conservador.

Nas pegadas do senador citado, diria, em abono e com o propósito de ratificação, que o voto compulsório é uma tendência ao atraso, porque teoricamente por ele se obriga o cidadão a votar mas não se pode obrigá-lo a estudar, a deter-se sobre o assunto em pauta, a analisar, com percuciência, matérias complexas, como é o caso do sistema de governo.

Certas pessoas interessam-se por um ou outro assunto e terão sempre melhores condições de se pronunciarem sobre aquilo por que têm vivo interesse.

Com a palavra S. Exa., que falará melhor:

“Digo isso, Sr. Presidente, Sr. Relator, porque entendo que o voto facultativo tem outra qualidade que deveria ser ressaltada: quando houver voto facultativo, estados, municípios e o próprio país poderão fazer com muito maior liberalidade, em número muito maior, plebiscitos e referendos. Há países, como a Suíça, que fazem plebiscito para tudo - para criar um imposto há plebiscito, para entrar ou não na União Econômica Européia há plebiscito, ou seja, há plebiscito para tudo na Suíça -, mas o voto não é obrigatório.
Então se pode fazer até dois plebiscitos em um dia porque votarão as pessoas interessadas, as pessoas que estudaram o assunto. Da mesma forma, a experiência vale nos Estados Unidos e em outros países europeus. De modo que o voto facultativo vai aperfeiçoar essa democracia participativa popular, vai permitir que ela seja mais ampla, mais abrangente do que é hoje”. (In http:www.senado.gov.br/web/HPRSINAL/Relat.htm).

Derrube-se - por fim - um dos recorrentes mitos que cercam o voto obrigatório: ser ele foi instrumento de educação das massas. Não existe nenhuma correlação entre a compulsoriedade do voto e a educação política do eleitor. O voto é obrigatório no Brasil há muito tempo e nem por isso se pode dizer que temos aqui um eleitorado satisfatoriamente educado politicamente.

X - CONCLUSÃO:

O voto é meio de exercício da democracia, não o seu fim. É, portanto, equivocado tomar a nuvem por Juno.

Compulse-se a história e verificar-se-á que a forma de governo dos gregos foi a maior expressão da democracia do mundo antigo. Depois dela, o maior penhor de democracia sobreveio após séculos, entre os XVIII e XX, nos Estados Unidos da América. Tanto ali como aqui não havia obrigatoriedade de o cidadão participar, quer da assembléia do povo, quer das eleições, através do voto. Poder-se-á criticar tais democracias por isso? Não me parece.

Os filósofos gregos Heráclito e Platão eram metafísicos, absolutistas e, por conta disso, autocráticos. Os sofistas, por seu turno, prezavam a experiência, eram relativistas e, pois, democráticos. Enquanto na autocracia campeia o pessimismo e a descrença no homem, as formas democráticas prezam a liberdade e crêem no homem. É preciso crer no homem e na democracia. O homem expande melhor as suas potencialidades quando vive em ambiente democrático; a democracia funciona melhor onde o homem é levado a práticas democráticas pela persuasão racional, não pela força ou coação.

A democracia ideal existe apenas na esfera das idéias humanas, não como realidade concreta. É claro, por isso, que os sistemas representativos nos quais o voto é facultativo possuem inconvenientes, que são, no entanto, amplamente superados pelos seus aspectos positivos, se comparados àqueles em que o voto é obrigatório. Desarrazoada, nessa perspectiva, a tese que rejeita o voto facultativo porque ele implicaria a não integração do eleitor na decisão de gerência da coisa pública. Pensar assim é creditar ao processo democrático o erro que seria do homem e, mais do que isso, é descrer do homem e fechar os olhos para os exemplos da história contemporânea.

O voto dado compulsoriamente, sem compromisso, contribui em nada para o aperfeiçoamento democrático, já o dizia, valendo-se de outros termos, José de Alencar. São suas palavras:

“A verdadeira democracia, o governo de todos por todos, requer, para sua realidade, não somente uma eleição em que vote a universalidade dos cidadãos, mas principalmente uma eleição na qual cada cidadão tenha plena consciência do seu voto.
...

Não se extirpa esse mal porém com paliativos ineficazes, qual o das multas por não comparecimento e o da intransmissibilidade do voto. De melhor conselho é deixar que o povo sinta por si mesmo o perigo da inércia e abstenção nos negócios públicos.
Garanta-se o voto na maior plenitude com todas as condições favoráveis ao seu uso. O abandono dessa faculdade primordial corre por conta da consciência e dignidade do cidadão”. (In Systema Representativo, Edição Fac-Similar, Senado Federal, Brasília, 1997, p. 104 e 128).

Desnecessário dizer que o aperfeiçoamento do sistema democrático no Brasil não está na dependência apenas do voto facultativo. Com ele muitas reformas políticas precisam ser implementadas, a partir de um amplo debate com a sociedade civil. Mas é imperioso começar a apontar os pontos de estrangulamento. E o voto obrigatório, do ponto de vista teórico e prático, é, ao meu sentir, um deles.

O voto é essencial à democracia. Mas a democracia não se resume ao voto. Ela é mais. É respeito aos direitos humanos, aos direitos fundamentais. É liberdade, negativa e positiva. É limitação do poder do Estado. É tolerância. É representação legítima dos interesses sociais. É convivência dos contrários.

É respeito pelas minorias. É pluralidade. É a conformação da comunidade em uma estrutura social que rejeite as desigualdades extremas, impeditivas de que significativa parcela da população atenda as suas necessidades básicas, aquelas que são do homem, enquanto tal. A dito projeto democrático, nada tem a oferecer o voto obrigatório.

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