DA
POSSIBILIDADE E IMPORTÂNCIA DE ELABORAÇÃO PELOS MUNICÍPIOS DE SUAS RESPECTIVAS
LEIS DE PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
CLARISSA
SAMPAIO SILVA
Advogada
da União | Mestra em Direito pela Universidade Federal do Ceará
INTRODUÇÃO
A edição, de há muito esperada, da Lei Federal no 9784, de 29 janeiro de 1999,
que regula o processo administrativo no âmbito Administração Pública Federal
vem reforçando o debate acerca importância de uma visão processual da atividade
administrativa, ao mesmo tempo em que, não sendo aplicável aos Estados e
Municípios, por razões autonomia legislativa de tais entidades federadas,
suscita a necessidade que elas também elaborem, com base na principiologia
constitucional, suas próprias regras procedimentais, tal como o fez o Estado de
São Paulo com a edição da Lei nº 10.177/98.
1. O PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO: A REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DE PODER NA
ESFERA
ADMINISTRATIVA.
Os doutrinadores pátrios de Direito
Administrativo vêm atualmente voltando atenção para uma figura por muito tempo
negligenciada: o procedimento administrativo.
Com efeito, a atuação administrativa é tradicionalmente analisada apenas sob o
aspecto de seu resultado final, como o ato e o contrato administrativo,
desprezando-se o "iter" de formação, sempre existente, das decisões
estatais, ou seja, a série concatenada de atos intermediários que levam a uma
decisão final, o procedimento administrativo.
Os caminhos que o administrador seguiu para adotar uma determinada medida e não
outra, aparecem, dentro de uma concepção clássica como desprovidos de maior
interesse, referindo-se inclusive Hely Lopes Meireles a eles como atos de
"operatividade caseira."
Entretanto, atualmente já não mais se aceita que as decisões do Poder Público
surjam do nada, sem que tenha havido qualquer atividade administrativa a
dar-lhe sustentação. Isto é, antes do ato definitivo é preciso que se tenham
sucedido, inevitavelmente, uma série de etapas e providências, sem as quais o
resultado final não seria galgado.
Dai a importância, destacada por Vasco Manuel Dias
Pereira da Silva, ilustre autor português " da necessidade de se olhar
para a atuação administrativa na sua integralidade, considerando o seu
desenvolvimento progressivo ao longo do tempo, tal como ela se manifesta no
procedimento, não bastando assim o momento final e estático do ato."1
O fenômeno do procedimento, entendido como uma série concatenada de atos
intermediários que levam a um ato final, por sua vez, sempre esteve ligado ao
exercício da função jurisdicional, sendo que a partir da década de vinte, pelos
administrativistas, e a partir da década de quarenta pelos processualistas,
passou a ser compreendido como instrumento de exercício de poder, estando
presente nas três funções estatais e gerando as respectivas manifestações
típicas de cada uma delas: a lei, a sentença e o ato administrativo.
Regulando pois o procedimento a forma de exercício do poder, não seria possível
admitir que a atuação administrativa poderia dele ficar imune. Observe-se
adotar-se no presente trabalho a expressão procedimento administrativo, ao
invés de processo, por ser a expressão preferida pela maioria dos autores de
Direito Administrativo, de modo a diferenciá-lo do processo judicial. De fato,
consoante esclarece Germana de Oliveira Moraes:
“as noções de
processo e procedimento aplicam-se a todas as funções do Estado, embora sejam
de referência mais corrente Pio exercício da função jurisdicional. Prefere-se
assim reservar a esta última terminologia processo judicial, já consagrada,e adotar as expressões
procedimento administrativo e procedimento legislativo Pios desempenhos
funcionais da Administração Pública e do Poder Legislativo.”2
A figura do procedimento administrativo
assume importância ainda maior em toda e qualquer situação onde haja
contraposição de interesses entre particulares e a Administração, tendo em
vista que a própria Constituição Federal indica o caminho mediante o qual toda
situação conflituosa deve ser resolvida: a via processual, ou procedimental 3, nos termos de seu art.5. LV "aos litigantes em processo
judicial ou administrativo serão assegurados o contraditório e a ampla defesa,
com todos os meios e recursos a ela inerentes."
Desempenha o procedimento administrativo a dupla função de defesa do particular
perante o Estado, uma vez que, no caso de medidas restritivas de direitos, terá
ele oportunidade de se insurgir antes da implementação delas, e de legitimação
da atuação estatal, por restar assegurada a participação do administrado na
formação da vontade da Administração.
Para José Alfredo de Oliveira Baracho, o procedimento administrativo,
funcionando como regulação do exercício das prerrogativas públicas e direitos
subjetivos e liberdades públicas proporciona uma interação entre Cidadania e
Administração, da qual pode-se destacar os seguintes pontos: a) participação
individual e coletiva dos interessados, titulares de situações subjetivas, na
preparação da vontade administrativa; b) proteção ampla dos administrados
mediante vários instrumentos processuais, como petições, recursos, reclamações
e outros meios de impugnação; c) colaboração do administrado na preparação e
execução da vontade administrativa mesmo nas hipóteses em que este não seja
litigante; d) execução eficaz da atividade administrativa, que reclama pautas
de racionalização, operatividade, ordenação,
probidade e moralidade; e) sistematização, simplificação dos meios consagrados
para a defesa da autoridade, com presunção de legitimidade, autoexecutoriedade;
f) judicialização da Administração Pública, que ocorre por meio da submissão
das partes, Administração e Administrado às regras de Direito que garantam a
regularidade e a racionalidade do poder estatal e do dever do
particular4.
Existem diversos tipos de procedimentos administrativos, classificados de
acordo com a medida a ser tomada, se restritiva de direitos ou ampliativas. No
primeiro caso, cite-se os disciplinares, os que cancelam algum benefício ou
vantagem do administrado. No segundo, aqueles cujo resultado final irá conferir
algum direito ou vantagem ao administrado, como concessões, permissões, dentre
os quais elenca também Celso Antônio Bandeira de Mello os “concorrenciais”,
como licitações, concurso para provimento de cargo público ou promoção.5
Procedimentos disciplinares, via de regra, contemplados pelos Estatutos dos
Servidores Público dos Estados e Municípios. A ausência de regulação é
detectada no tocante à normas gerais que sejam aplicáveis demais procedimentos
restritivos e aos ampliativos de direitos, acarretando assim impossibilidade de
previsão do comportamento do administrador, e da efetiva tutela dos direitos
dos administrados.
No âmbito da elaboração legislativa da União, a Lei 8112/90 em seus arts.143 a
182 disciplina o procedimento administrativo sancionatório de seus servidores;
a Lei 8666/93 disciplina as vária etapas e modalidades de procedimentos
licitatórios, aplicáveis, por força do art.22, inciso XXVII da Constituição
Federal e Estados e Municípios, tratando-se portanto de Lei Nacional; o Decreto
nº 70.235/72 regula o processo administrativo fiscal perante a Receita Federal.
Além destas legislações específicas, aos 29.01.99 foi editada a Lei 9784, que
regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal,
funcionando como verdadeira “lei geral” de procedimento administrativo,
constituindo, na palavras de Carlos Ari Sudfeld:
“Um conjunto de norma objetivando, de um lado, limitar os poderes dos
administradores públicos, desde os Chefes do Executivo e seus auxiliares
diretos até as autoridades de menor escalão, com a fixação de prazos e
condições adjetivas para o exercício de todas as suas competências; e de outro
proteger os indivíduos e entidades contra o poder arbitrário exercido por
autoridades, ao dar-lhes instrumentos legais para que apresentem à
Administração, suas defesas, impugnações, recursos, e mais amplamente,
peticionem com suas reivindicações, denúncias, sugestões, críticas, e daí por
diante”6
2. DISTRIBUIÇÃO CONSTITUCIONAL DE COMPETÊNCIAS LEGISLATIVAS
Explicitada a importância das leis
reguladoras do procedimento administrativo, analisa-se agora a possibilidade de
os Municípios elaborarem suas próprias leis de procedimento, mais
especificamente, uma lei de caráter geral disciplinadora da conduta
administrativa.
Em primeiro lugar, cumpre de logo afastar a aplicação aos Municípios da Lei
9784/99. Trata-se de norma federal, e não de norma nacional, portanto cogente
apenas para a Administração Pública Federal Direta e Indireta, consoante, aliás,
enunciado pela própria lei em seu art. 1º: "Esta Lei estabelece normas
básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal
Direta e Indireta, visando, e especial à proteção dos direitos dos
administrados e ao melhor desempenho dos fins da Administração.”
Por outro lado, a competência da União para legislar em matéria administrativa
está definida na própria Constituição de maneira expressa no art.22,7 de modo que, as demais questões que não sejam de competência
legislativa privativa de tal entidade são de atribuição dos Estados, em razão
ora de seus poderes remanescentes (CF, art.25 2º), ora de sua competência
concorrente ( CF, art.24) e dos Municípios.
No tocante aos Municípios, suas competências legislativas são disciplinadas
pelo art.30 da Constituição Federal, abrangendo a legislação sobre assuntos de
interesse local ( inciso I ) e a suplementação da legislação federal e
estadual, quando couber.
Por interesse local deve-se compreender, nas palavras de Celso Antônio Bandeira
de Mello:
"aqueles que se encartam, apenas na
órbita própria das circunscrições menores e em quaisquer delas,
indistintamente, por dizerem respeito a assuntos tipologicamente
concernentes ao menor dos âmbitos geográficos em que se repartem as
competências normativas. Bem, por isso, são pertinentes a todo e qualquer
Município, já que atinam a uma categoria de interesses que é, em sua
generalidade, de interesse local.”8
Já no tocante à competência supletiva
municipal, pressupõe essa a exist6encia de legislação federal ou estadual que
necessite ser complementada para atender às necessidades de determinado
Município, sem, obviamente, contrariar as normas elaboradas pelas demais
entidades federadas, sendo essa a interpretação que deve ser atribuída à
expressão “no que couber “constante dor art.30, II da Constituição Federal.
A legislação sobre procedimento administrativo, não se inserindo, conforme
visto, nas competências privativas da União sobre Direito Administrativo, pode
perfeitamente ser exercida pelos Municípios dentro da moldura estabelecida pelo
art.30, I da Constituição Federal, ou seja legislação sobre interesse local.
Constitui, de fato, questão que interessa diretamente à Administração Municipal
e aos munícipes o disciplinamento de suas relações e o condicionamento do
exercício do poder. Por sua vez, tal matéria constitui interesse de todos os
Municípios, não se cogitando ainda de suplementação de legislação federal ou
estadual, que sequer seriam aplicáveis a essas entidades.
3. POSSÍVEL CONTEÚDO DA LEI MUNICIPAL INSTITUIDORA DE SEU PROCEDIMENTO
ADMINISTRATIVO
Situada a legislação municipal sobre
procedimento administrativo no art. 30, I da CF, resta analisar seu possível
conteúdo.
Regularia tal Lei o exercício da função administrativa contemplando o
encaminhamento e processamento dos pleitos dos administrados perante a
Administração, as, impugnações dos atos administrativos, as regras processuais
para resolução das controvérsias, a definição dos direitos e deveres dos
administrados, o sistema recursal com seus prazos e efeitos, as competências
dos órgão administrativos, os prazos para pronunciamento dos agentes públicos
municipais sobre as questões que lhes forem submetidas.
Poderia ainda tal legislação disciplinar, assim como o faz a Lei 9784/ 99, a
invalidação, revogação e convalidação dos atos administrativos, estabelecendo
as condições dentro das quais as formas de desfazimento e recomposição dos atos
administrativos devam ser feitas.
Nada obstante a autonomia municipal, referidas legislações não poderão
apartar-se da principiologia constitucional, das normas gerais sobre
Administração Pública contidas nos art.37 a 41 da CF e dos direitos e garantias
fundamentais.
Assim, o procedimento administrativo municipal, necessariamente há de pautar-se
pelos princípios do art.37 da Constituição Federal, ou seja, legalidade,
moralidade, impessoalidade, publicidade e eficiência, pelos princípios
constitucionais implícitos, como a razoabilidade e a proporcionalidade, não
podendo ainda olvidar a obrigatoriedade de motivação dos atos administrativos.(
CF, art.93, X).
4 CONCLUSÃO
A elaboração pelos Municípios de suas
respectivas leis de procedimento administrativo, inserida na competência
outorgada pela CF em seu art.30, I sem dúvidas representa significativo avanço
nas relações entre o Poder Público e os munícipes, por ensejar atuação
administrativa participativa, como aliás reclama o art. 37 § 3º da Carta
Política, e por servir de importante instrumento de proteção dos direitos dos
administrados e de controle do próprio exercício das prerrogativas públicas,
podando arbítrios e caprichos.
5 BIBLIOGRAFIA
BARACHO, José Alfredo de Oliveira.
Teoria Geral dos procedimentos de exercício da cidadania perante a
Administração Pública. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n.
207, jan/mar. 1997.
DROMI, José Roberto. El
Procedimiento administrativo. Buenos Aires: Editora Ciudad Argentina, 1996.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito
Administrativo. São Paulo: Malheiros, 1999.
_ _ _. Discriminação constitucional de competências legislativas: a
competência municipal, in: MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Direito
Administrativo e Constitucional: estudos em homenagem a Geraldo Ataliba. São
Paulo: Malheiros, 1999.
MORAES, Germana de Oliveira. O Controle jurisdicional constitucionalidade do
processo legislativo. São Paulo: Dialéticat, 1998.
SILVA, Vasco Manuel Dias Pereira. Em Busca do ato administrativo perdido
Coimbra: Almedina, 1996.
SUNDFELD, Carlos Ari. As Leis do processo administrativo. São Paulo: Malheiros,
2000.
1SILVA, Vasco Manuel Dias Pereira. Em Busca do ato administrativo
perdido. Coimbra: Almedina, 1996. p.305.
2 MORAES, Germana de Olveira. O Controle
jurisdicional da constitucionalidade do processo legislativo. São Paulo:
Dialética 1998. p.23
3 Cumpre não confundir via processual com via judicial, pelas multimencionadas razões.
4 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria Geral dos procedimentos
de exercício da cidadania perante a Administração Pública. Revista de Direito
Administrativo, Rio de janeiro, n. 207, p. 39-78, jan/mar.
1997.
5 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo.
São Paulo: Malheiros, 1999. p. 359.
6 SUNDFELD, Carlos Ari. As Leis do processo administrativo. São
Paulo: Malheiros, 2000. p.18.
7 Entre as matérias de Direito Administrativo cuja competência
legislativa é privativa da União tem-se: desapropriação (inciso II),
requisições civis e militares (inciso III), normas gerais de licitação e
contratação em todas as modalidades (inciso XXVII).
8 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discriminação constitucional de
competências legislativas: a competência municipal, in: MELLO, Celso Antônio
Bandeira de (Coord.), Direito Administrativo e Constitucional: estudos em
homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo: Malheiros, 1999. p.277.