ALGUMAS CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ESCUTA TELEFÔNICA

INESSA DA MOTA LINHARES VASCONCELOS

Acadêmica de Direito | Estagiária da PGM

1. Introdução

Nesse século, os progressos técnicos conseguidos pela humanidade tornaram capaz a gravação de sons emitidos por meio das comunicações telefônicas. Esse novo fato social fez surgir a necessidade de proteção desse tipo de comunicação pelos Estados, erigindo-se o sigilo das comunicações à categoria dos direitos fundamentais. Contudo, não se poderia cogitar da possibilidade de privar o Estado por completo do acesso a esses tão importantes meios de provas para o combate e repressão aos crimes que são as interceptações telefônicas. Desta forma, passou-se a disciplinar o emprego dos meios eletrônicos de captação de provas.

No Brasil, o assunto foi primordialmente tratado pelo Código Brasileiro das Telecomunicações (Lei 4.117/62). No entanto, somente após a Constituição de 1988, é que o assunto passou a ser melhor explicitado, dispondo nossa Magna Carta sobre o sigilo das comunicações telefônicas, autorizando a sua quebra somente nas hipóteses previstas em lei.

Contudo, a lei regulamentadora da quebra do sigilo telefônico, a qual pôs fim à polêmica gerada sobre a ilicitude ou não das provas obtidas por meio de interceptação telefônica, só foi publicada em 24 de julho de 1996 (Lei nº 9.296), disciplinando a interceptação das comunicações telefônicas para prova em investigação criminal e em instrução processual penal. No entanto, referida norma não disciplinou a respeito da escuta telefônica, a qual não se confunde com interceptação.

2 - A diferença entre interceptação e escuta telefônica.

É de extrema importância fazer uma distinção que nem sempre se apresenta, qual seja, a diferença entre a gravação feita por um dos interlocutores da conversação telefônica, ou com autorização deste, e a interceptação. Ocorre a interceptação (de inter capio), quando um terceiro escuta e/ou grava uma conversa enquanto essa está ocorrendo, sem que nenhum dos interlocutores saiba deste fato. Ao contrário, a escuta telefônica tem lugar quando um terceiro ou um dos interlocutores grava a conversa, sem que o outro tome conhecimento de que isso está ocorrendo. Desse assunto trata o ilustre Vicente Greco Filho, quando diz que "a interceptação telefônica, em sentido estrito, é a realizada por alguém sem autorização de qualquer dos interlocutores para a escuta e, eventualmente gravação, de sua conversa, e no desconhecimento deles. Esta é que caracterizará o crime do art. 10 se realizada fora dos casos legais; a gravação unilateral feita por um dos interlocutores com o desconhecimento do outro, chamada por alguns de gravação clandestina ou ambiental (não no sentido de meio ambiente, mas no ambiente), não é interceptação nem está disciplinada pela lei comentada e, também, inexiste tipo penal que a incrimine".

Assim, para distinguir a hipótese de interceptação quando um dos interlocutores grava a sua própria conversa, telefônica ou entre presentes, denominamos escuta ou gravação clandestina, enquanto que a outra denominamos interceptação telefônica strictu sensu.

3 - A escuta telefônica e os direitos fundamentais.

A escuta telefônica não está abrangida pela Lei 9.296/96, conforme assevera Grinover, Scarance e Magalhães Filho. Segundo eles, "não se enquadra, igualmente na garantia do art. 5º, XII, da CF a gravação clandestina de uma conversa feita por um dos interlocutores, quer se trate de comunicação telefônica, quer se trate de comunicação entre presentes" , pois que a citada lei trata de interceptação srictu sensu, onde sempre existirá a figura de um terceiro que, conforme dito supra, escuta e/ou grava a conversa sem a anuência de nenhum dos interlocutores, o que não ocorre nos casos da escuta telefônica.

No entanto, podemos afirmar que a escuta telefônica viola um direito igualmente ou até mais importante do que o direito ao sigilo das comunicações telefônicas - o direito à intimidade.

A doutrina e a jurisprudência dividem-se quanto à licitude da prova conseguida por intermédio de gravação clandestina ou escuta telefônica, alegando ferir o direito à intimidade, consagrado pelo art. 5º, X, da Constituição Federal de 1988. Como garantia a esse direito, nossa Carta Magna alberga em seu texto o princípio de serem, no processo, inadmissíveis as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI). O dispositivo relaciona-se com a intimidade, um direito fundamental do homem presente em nossa Carta Política.

Ressalte-se, porém, que a escuta telefônica em si não se constitui fato ilícito, no entanto, o ato de tornar pública a conversa telefônica é que infringe o direito à intimidade, podendo tipificar o crime capitulado no art. 153 do Código Penal - divulgação de segredo - que consiste na revelação de fatos, sem justa causa, que possam causar danos a terceiros. Assim, essa divulgação será considerada prova ilícita. No entanto, quando houver justa causa, a ilicitude estará afastada, consoante lição de Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance e Magalhães Filho "...a justa causa pode descaracterizar a ilicitude quando a prova for usada em defesa dos direitos violados ou ameaçados de quem gravou e divulgou a conversa". Desta forma, resta ao julgador caracterizar ou não a ilicitude da prova ao interpretar o que seria a justa causa.

4 - A prova obtida por meio de escuta telefônica é ilícita?

Alguns doutrinadores, bem como uma pequena parcela da jurisprudência, entendem que a prova obtida através de interceptação telefônica é plenamente lícita, uma vez que não feriria nenhum preceito fundamental.

Essa é a opinião do Min. Carlos Velloso, do STF (em voto vencido na ação penal nº 307-3/ DF), pois, segundo aquele ilustre julgador "(...) não há, na ordem jurídica brasileira, nenhuma lei que impeça a gravação feita por um dos interlocutores de uma conversa, inclusive para documentar o texto dessa conversa, futuramente".

A contrario sensu, diversos outros doutrinadores e grande parte da jurisprudência consideram ilícita a prova produzida por meio de escuta telefônica. Como evidenciou o Ministro Celso de Mello, do STF, "a gravação de conversação com terceiros, feita através de fita magnética, sem o conhecimento de um dos sujeitos da relação dialógica, não pode ser contra este utilizada pelo Estado em juízo, uma vez que esse procedimento - precisamente por realizar-se de modo sub-reptício - envolve quebra evidente de privacidade, sendo, em conseqüência, nula a eficácia jurídica da prova coligida por esse meio".

A prova ilícita é aquela colhida com infringência de normas ou princípios, insculpidos na Constituição Federal de 1988, para proteção das liberdades públicas e dos direitos da personalidade. Constituem, assim, provas ilícitas as obtidas com violação do domicílio (art. 5º, XI, da CF) ou das comunicações (art. 5º, XII, da CF), as conseguidas mediante torturas ou maus-tratos (art. 5º, III, da CF), das colhidas com infringência à intimidade (art. 5º, X, da CF) etc. Por conseguinte, a gravação ou escuta telefônica não é meio legal nem moralmente legítimo de produção de prova no processo, visto que essa enquadra-se no conceito de prova ilícita, pois é obtida violando direito tido como fundamental, qual seja, a intimidade. No entanto, em alguns casos, poderia até ser admitida, cabendo ao juiz, em falta de norma que regulamente o assunto, aplicar o princípio da proporcionalidade. Nesse sentido, é a escorreita lição de Fernando Capez, segundo o qual "... a interceptação em sentido estrito, a gravação clandestina e a escuta telefônica, quando feitas fora das hipóteses legais ou sem autorização judicial, não devem ser admitidas, por afronta ao direito à privacidade. No entanto, excepcionalmente, mesmo quando colhidas ilegalmente, tais evidências poderão ser aceitas em atenção ao princípio da proporcionalidade". Parece ser a opinião mais acertada.

5 - O princípio da razoabilidade e da proporcionalidade aplicados aos casos de escuta telefônica.

O que a norma constitucional almeja, ao determinar a inadmissibilidade das provas ilícitas no processo, é que não se atente contra os direitos fundamentais individuais, contudo, essa proibição não pode ser por demais rígida, visto que "... a sua observância intransigente levaria à lesão de um direito fundamental ainda mais valorado" . Isso ocorre pois nos sistemas constitucionais modernos não existem liberdades absolutas, visto que dever haver uma harmonização entre os diversos direitos e garantias fundamentais. Não existem, verdadeiramente, garantias constitucionais conflitantes, pois há, em casos de contrastes, um sistema que deixa de lado um princípio geral (in casu a intimidade) para atender a uma finalidade excepcional (que pode ser a liberdade, a vida etc). Portanto, esse sistema deverá ser posto em prática sempre que uma liberdade pública estiver sendo utilizada como escudo de proteção para que se cometam atos ilícitos.

Muito acertada, a nosso ver, a decisão do STJ segundo a qual "está muito em voga, hodiernamente, a utilização ad argumentandum tantum, por aqueles que perpetram delitos bárbaros e hediondos, dos indigitados direitos humanos. Pasmem, ceifam vidas, estupram, seqüestram, destroem lares e trazem a dor a quem quer que seja, por nada, mas depois, buscam guarida nos direitos fundamentais. É verdade que esses direitos devem ser observados, mas por todos, principalmente, por aqueles que impensadamente, cometem os censurados delitos trazendo a dor aos familiares das vítimas".

Essa intromissão do Estado na esfera individual do cidadão ocorre quando se sobrepõe o interesse público em detrimento do interesse do particular. É a aplicação do princípio da proporcionalidade, desenvolvido pela escola alemã, que visa a medir as desvantagens do meio em relação às vantagens do fim, sendo que esse supera as desvantagens quando o princípio é bem utilizado, e da razoabilidade (rasonableness), o qual consiste em verificar se os atos do Poder Público estão permeados pelos valores da justiça, que são supremos em todos os ordenamentos jurídicos. Razoável, na concepção de Rafael Bielsa, é "o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia" .

Assim, quando aplicado aos direitos fundamentais contrastantes, busca-se uma forma de conciliação entre eles, de sorte que o princípio de maior valor social, por exemplo, a vida, eleva-se em relação ao interesse individual, in casu, a intimidade.

Esses princípios também são utilizados nos casos de escuta telefônica, considerada meio de prova ilícita, mas que, no entanto, poderá ser aproveitada quando o interesse social for preponderante em relação ao interesse individual em questão. Igual posição é partilhada por Rogério Schietti Machado Cruz, segundo o qual "à falta de texto expresso, continuará a disputa doutrinário-jurisprudencial acerca da ilicitude do comportamento e do valor probatório da gravação assim obtida, havendo de vencer (...) a posição que se vale do critério da proporcionalidade oriundo do direito alemão, pelo qual, em situações excepcionais, deve prevalecer, na balança dos interesses em jogo, o valor da liberdade, em detrimento do valor da intimidade".

No entanto, a aplicação do princípio em tela deve ser restrita, pois se houver a sua larga utilização, o Estado, com o pretexto de coibir a criminalidade, passará a invadir demasiadamente a privacidade e a alma dos cidadãos. É exatamente por isso que grande parte da doutrina e da jurisprudência só aceita a utilização da proporcionalidade pro reo, ou seja, em benefício da defesa (Súmula 50 das Mesas de Processo Penal da USP). Essa é a opinião de Grinover, Scarance e Magalhães, ao afirmarem "a possibilidade de utilização, no processo penal, da prova favorável ao acusado, ainda que colhida com infringência a direitos fundamentais seus ou e terceiros" (grifo nosso). Continuam adiante dizendo que se a prova considerada ilícita for colhida pelo acusado, há de se entender que a ilicitude é suprimida, por exemplo, pela legítima defesa, excludente da antijuridicidade.

Embora o entendimento dominante seja pela aplicação da proporcionalidade somente pro reo, a 6ª Turma do STJ, em decisão polêmica e isolada, decidiu que o princípio poderia ser aplicado também pro societate.

É necessário que a lei processual penal fixe as balizas da regra constitucional de exclusão das provas ilícitas, conceituando-as e tomando posição quanto à sua admissibilidade e proibição de utilização, mesmo quando se trate da denominada prova ilícita por derivação, ou seja, da prova que não é ilícita por si mesma, mas obtida por intermédio de informações coligidas por provas ilicitamente colhidas, a que denominamos "teoria dos frutos da árvore envenenada" (fruits of poisonous tree), do direito norte-americano, segundo a qual o vício da planta transmite-se a todos os seus frutos. Nesse caso, poder-se-ia, por exemplo, utilizar uma prova advinda de escuta telefônica por intermédio da qual a autoridade policial descobre uma testemunha? O depoimento prestado por ela será válido? O entendimento majoritário do STF é pela inadmissibilidade da prova ilícita por derivação.

Contudo, a melhor opinião é aquela que dispõe sobre a aplicação da teoria da proporcionalidade também às provas ilícitas por derivação, pois a Constituição Federal não refuta radicalmente as duas correntes. Assim entendem Grinover, Scarance e Magalhães.

6 - Conclusão

Em suma, dada a diversidade de opiniões a respeito do tema, e a inexistência de norma regulamentadora, cabe ao juiz, no seu prudente arbítrio, examinar caso a caso as possibilidades em que possa considerar determinada prova obtida por meio de escuta telefônica ilícita ou não, temperando-a, quando necessário, com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, regras basilares para que se interprete harmoniosa e equilibradamente a Constituição Federal, refreando, pois, o ímpeto arbitrário que, muitas vezes, caracteriza o Estado brasileiro, para que esse não destrua, ainda mais, a nossa tão frágil e devassada intimidade.

BIBLIOGRAFIA

AVOLIO, Luiz Torquato. Provas Ilícitas. São Paulo : Rt, 1995.

BASTOS, Celso Ribeiro e MARTINS, Ives granda. Comentários à Constituição do Brasil, Vol.2, São Paulo : Saraiva, 1988.

BIELSA, Rafael. Estúdios de Derecho Público: I, Derecho Administrativo, apud Luiz Roberto Barroso, in O Princípio da Razoabilidade e da Proporcionalidade no Derecho Constitucional. Caderno de Direito constitucional e Ciências Política, nº 23, junho de 1998.

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 3ª edição, rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 1999.

CRUZ, Rogério Schietti Machado. Breve análise da Lei 9296/96. Revista Enfoque Jurídico, nº 01, 1998.