CIÊNCIA E VALORES: O PROBLEMA DO FUNDAMENTO DO DIREITO

CIENCY AND VALUES: THE PROBLEM OF THE FOUNDATION OF LAW

Marcelo Sampaio Siqueira

Procurador-Chefe da Procuradoria de Desenvolvimento e Pesquisa da Procuradoria-Geral do Município de Fortaleza. Professor Titular da UNI7. Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Resumo: Este artigo aborda assunto epistemológico, pois apresenta discussão acerca da Ciência Jurídica e dos valores, visando refletir sobre a relevância da razão e do justo para a fundamentação do Direito. Foi produzido mediante o desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa, do tipo bibliográfica, com enfoque filosófico, destinado a considerar o problema no seu aspecto universal. Evidenciou-se que o valor jurídico não é opinião isolada de um indivíduo, mas constitui uma série de fatores ou fatos qualificados e consagrados como justos pela sociedade, estando, sim, num plano metajurídico, que serve de base para os princípios que constam na Constituição. Conclui-se, fundamentalmente, que o Direito não está e não pode estar destituído de valor.

Palavras-chave: Epistemologia. Ciência jurídica. Teoria dos valores. Justo.

Abstract: This article discusses the epistemology of legal science and values in order to answer to the problem of the Right fundament. Developed a qualitative research, bibliographic type, philosophical approach, intended to consider the problem in its universal aspect. It was evidenced that the legal value covers factors or qualified facts that society considers fair, subscribing to a meta-juridical plan, that reinforces the principles set out in the Constitution. It was basic concluded that the Right no longer is and cannot be emptied of value.

Keywords: Epistemology. Legal science. Theory of values. Fair.

1.  Introdução

A principal ambição de uma pesquisa, no âmbito de qualquer ciência, consiste em obter respostas, que podem ser de natureza explicativa ou normativa, para os diversos problemas que inquietam a comunidade.

Neste trabalho, cujo tema se enquadra na questão dos valores para a Ciência do Direito, tenciona-se analisar a questão do fundamento racional do Direito, que, segundo Del Vecchio (1972), seria o justo, indagando-se o seguinte: pode o direito ser desprovido de razão e a norma jurídica estar dissociada do valor de justiça?

Não constitui objetivo do artigo contraditar as conclusões oferecidas por Del Vecchio (1972), mas, à luz dos seus ensinamentos e dos de Kelsen, buscar explicar a importância da razão e do justo, como valores jurídicos, na fundamentação da Ciência Jurídica. Como desdobramentos desse objetivo geral, elegeram-se os seguintes objetivos específicos: discorrer sobre o conhecimento no âmbito jurídico, com ênfase no aspecto valorativo do Direito; apresentar o direito positivo e o direito natural, promovendo um confronto entre os ensinamentos de Kelsen e Del Vecchio; e estudar a aplicação dos valores da razão e do justo na Ciência do Direito.

A análise do assunto acontecerá mediante a realização de uma pesquisa de cunho qualitativo, eminentemente bibliográfica, que seguirá um enfoque filosófico (REALE, 1998), já que o problema levantado será considerado no seu aspecto universal, e servirá de fundamento para legitimar uma série de outros juízos integrados em um sistema de compreensão total.

Hessen (2003, p. 12) leciona que “a filosofia é antes de mais nada auto-reflexão do espírito sobre seu comportamento valorativo teórico e prático. Enquanto reflexão sobre o comportamento teórico, sobre aquilo que chamamos de ciência, a filosofia é teoria do conhecimento científico, teoria da ciência”.

Em aula ministrada na disciplina Epistemologia jurídica, do programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional/Mestrado e Doutorado da Universidade de Fortaleza, o professor Arnaldo Vasconcelos defendia que o Direito é válido quando é jurídico, positivo, eficaz e vigente. Especificando-se cada uma dessas características, afirma-se que é jurídico porque apresenta a capacidade de estabelecer um vínculo bilateral atributivo, cujo aspecto seria a intersubjetividade; positivo porquanto tem que estar posto na lei e na doutrina; eficaz na medida em que a norma está sendo realmente aplicada naquele período da história; e vigente visto sua disponibilidade temporária, que o torna disponível para aplicação (VASCONCELOS, 2003).

Já a questão do valor não pode ser confundida com a da validade. Esta (juridicidade, positividade, vigência e eficácia) encontra-se no campo positivo da realidade sensível (campo epistemológico do positivo), enquanto aquela (justiça e legitimidade) insere-se no âmbito do inteligível ou espiritual.

Para o alcance dos objetivos, reflete-se preliminarmente acerca da teoria do conhecimento jurídico e a questão dos valores, tema que se insere no âmbito da epistemologia jurídica. Torna-se impossível falar de direito e do valor de justiça sem se apresentar alguns pressupostos lógicos que condicionam e legitimam o conhecimento jurídico, visto que, conforme concluído por Del Vecchio (1972), as teorias do cepticismo e do realismo empírico[1], do historicismo[2], do teologismo[3] e do utilitarismo[4] são insuficientes para apresentar uma resposta satisfatória ao problema do fundamento intrínseco do Direito, que não constitui uma simples conexão de fatos desprovidos de valor. Por outro lado, é um erro identificar justiça como legalidade ou como ideia de divindade.  

Num segundo momento observa-se a relação entre o direito positivo e o direito natural, em um confronto entre Kelsen (1976) e Del Vecchio (1972).

Num terceiro momento discorre-se sobre o valor jurídico, a aplicação do justo e o respeito à legalidade.

2.  O conhecimento jurídico e a questão dos valores

A epistemologia jurídica constitui um instrumental do pensamento que busca promover uma reflexão sistemática sobre a teoria da Ciência do Direito, isto é, busca o conhecimento da ciência jurídica. Reale (1998, p. 306) define epistemologia jurídica como sendo:

A doutrina dos valores lógicos da realidade social do Direito, ou, por outras palavras, dos pressupostos lógicos que condicionam e legitimam o conhecimento jurídico, desde a teoria geral do direito – que é a sua projeção imediata no plano empírico-positivo – até às distintas disciplinas em que se desdobra a jurisprudência.

Inicialmente é interessante tratar da Epistemologia no sistema da Filosofia e distinguir aquela de ciência. As questões tratadas são bastante delicadas, mas, em poucas palavras, pode-se sentenciar que apresentam essências completamente diferentes, visto que a Epistemologia seria uma das disciplinas da Filosofia, que busca o conhecimento do todo, enquanto a ciência toma por objeto uma parte da realidade.[5]

Segundo os ensinamentos de Del Vecchio (1972, p. 8), “a diferença entre filosofia e a ciência do direito reside, pois, no modo pelo qual cada uma delas considera o Direito: a primeira, no seu aspecto universal; a segunda, no seu aspecto particular”.

A busca do saber sempre se constituiu em um dos grandes desafios da humanidade, cujo objeto é ilimitado. A observação das coisas e a elaboração de teorias constituem funções da Filosofia, sendo a teoria do conhecimento uma disciplina filosófica.

Buscando-se refletir sobre o problema do fundamento racional da Ciência do Direito e identificar se o justo constitui valor intrínseco da norma jurídica, inicia-se a abordagem com uma exposição dos posicionamentos defendidos por Del Vecchio (1972, p. 331):

Entre as investigações que à filosofia do direito cabe efectuar, está a de se propor estabelecer o fundamento racional do direito. Não nos podemos limitar ao reconhecimento da existência de um direito positivo; cumpre-nos, além disso, averiguar se ele, sobre ser positivo é justo. Ou seja: se se afirma como direito positivo dotado de razão intrínseca.

Esse primeiro item busca fixar o problema apresentado no âmbito da epistemologia jurídica (REALE, 1998), já que uma de suas tarefas consistiria na obtenção do conhecimento, na determinação do objeto da Ciência jurídica e na delimitação do campo de pesquisa científica do Direito, em suas conexões com outras ciências humanas.

Acerca da posição sistemática da Filosofia do Direito Kaufmann (2004, p. 11) afirma que:

[...] se a dogmática jurídica é a ciência do sentido normativo do direito positivo vigente e a sociologia do direito a ciência das regularidades do direito e da vida jurídica, a filosofia do direito tem a ver com o direito “correcto”, “justo”: ela é a doutrina da justiça. Enquanto a ciência jurídica dogmática não ultrapassa o direito existente e, portanto, apenas critica na iminência do sistema, a filosofia do direito orientada de forma transistemática interessa-se pelo direito existente apenas na perspectiva do seu valor ou desvalor. Nos últimos tempos, tornou-se comum distinguir a filosofia do direito em sentido próprio da teoria do direito, mas até agora não se conseguiu traçar uma linha nítida de separação entre as duas.

Ora, se o tema consiste no fundamento racional do Direito e do justo como valor, pode-se concluir também estar-se diante de um problema pertinente à Deontologia Jurídica, que, segundo Reale (1998), estuda a teoria da justiça e dos valores fundantes do Direito. No entanto, a Deontologia constitui um complemento da Epistemologia, não desvirtuando a conclusão de que o assunto tratado é de natureza epistemológica.

Porém não constitui objeto do artigo discutir a origem do conhecimento, tampouco do Direito, mas apreender um objeto, no caso o próprio Direito e a importância da valoração na eficácia da norma.

O artigo não tem a pretensão de conceituar Direito e muito menos de descrever as teorias sobre o valor, limitando-se a tecer comentários introdutórios sobre o conhecimento jurídico e a existência de valoração da norma jurídica.

O Direito é um fato social que regula condutas dentro de uma sociedade e o estudo desses fatos, em particular, cabe à Ciência do Direito e, no geral, à Filosofia, disciplinas cuja diferença já foi apresentada. Ao produto desses estudos dá-se o nome de conhecimento jurídico.

Ao tratar sobre Direito Vasconcelos (1986, p. 3) afirma:

O Direito é, pois, uma ordem normativa. Um sistema hierárquico de normas, para empregar a expressão de Kelsen. Suas partes se integram na formação de um todo harmônico, com interdependência de funções. Cada norma ocupa posição intersistemática, única para a espécie. A essa ordem, assim estruturada, denomina-se ordenamento jurídico.

Seguindo-se essa linha de raciocínio, no âmbito da qual o Direito não é só um fato social, mas também um sistema hierárquico de normas, conclui-se que a Ciência do Direito se ocupa do estudo do direito posto, da norma jurídica positivada.

Em sua abordagem a respeito da norma jurídica Vasconcelos (1986, p. 4) defende:

A lição pauliana é exemplar: a regra nasce do Direito. Trata-se de um juízo de realidade que, nada obstante incontestável por sua própria natureza, não tem sido, contudo, levado em conta com o necessário destaque. O certo é que o Direito antecede à sua expressão formal, que é a norma jurídica, devendo, só por esse motivo, prevalecer sobre ela. Exige-se que a lei tenha Direito, a saber, que seja justa. Se deve ser justa é porque, evidentemente pode ser injusta. A norma enuncia e veicula o direito.

Mas será que o estudo da norma jurídica se encontra dissociado de valores? Que deverá acontecer exclusivamente no âmbito hierárquico do sistema?

Jansen (2008), em trabalho intitulado “Um breve ensaio sobre o valor”, faz importante referência histórica, etimológica e filosófica ao termo valor e informa que surgiu na Idade Média com sentido nitidamente econômico, visando

[...] tentar explicar o que era intrínseco e o que era extrínseco às peças monetárias de metal. O intrínseco era o valor, expresso por um número, que espelhava o preço internacional de mercado dos metais em que eram cunhadas as peças monetárias. Ele já representava uma evolução relativamente à tese primitiva, de que a peça monetária seria uma coisa. Quanto ao valor extrínseco ele aparece no século XIII e encontra suas raízes em norma relativa à cunhagem que fora estatuída por CARLOS MAGNO (742-814), e prescrevia as seguintes equivalências: 1 libra = 20 solidi = 240 denarii.

A partir desse marco a noção de valor ganhou relevância na Idade Moderna, deixando de ser estudada no aspecto nitidamente monetário/econômico para abranger valores religiosos, morais, éticos, políticos e jurídicos.

O valor jurídico constituiria uma medida de justiça, como se evidencia nas palavras de Del Vecchio (1972, p. 384): “O direito natural é, pois, o critério que permite valorar o direito positivo e medir a sua intrínseca Justiça”. Em outra passagem o citado filósofo afirma: “Além do reino dos factos, há o reino dos valores. A esse último pertence essencialmente o direito.” (p. 340).

As teorias sobre o valor, expostas por Reale (1998), procuram explicar a questão da natureza do valor no sentido subjetivo e no sentido objetivo.

A primeira teoria relaciona-se ao psicologismo ligado a uma base sentimental-volitiva que trata o valor como algo desejado, vinculado ao sentimento de prazer ou que é correto. Reale (1998, p. 196) ensina:

As coisas valem em razão de algo que em nós mesmos se põe como desejável ou apetecível, ou capaz de dar-nos prazer; porque existe, em suma, como fenômeno de consciência e como “vivência estimativa”, algo que marca a razão da preferência exteriorizada. Os valores seriam, assim, uma ordem de preferências psicologicamente explicável, como ocorre, por exemplo, na conhecida fórmula de Ehrenfels: “A grandeza do valor é proporcional à sua desiderabilidade”.

A segunda teoria é a que obtém maior aceitação diante da dificuldade de se mensurar o prazer e de se ater ao individualismo, características existentes na teoria subjetiva. As explicações objetivistas levam em conta a realidade da consciência coletiva e histórica, ao que Reale (1998) conclui que a razão pela qual os valores se impõem aos indivíduos muitas vezes contraria frontalmente seus desejos. A realizabilidade é essencial à caracterização dos valores e só a consciência histórica e coletiva pode exprimir a medida justa, se determinada norma tem valor jurídico.

Logo se conclui que a questão do valor se encontra nitidamente ligada ao Direito, o que a torna objeto da Ciência do Direito.

Superada a questão preliminar acerca do conhecimento jurídico e da importância dos valores para a formação e análise das normas jurídicas, passa-se a discorrer sobre a questão da norma jurídica.

3.  O direito positivo e o direito natural: confronto entre Kelsen e Del Vecchio

Já que se está a tratar da questão do valor como fundamento do Direito, torna-se necessário discutir a eterna contradição entre Direito Positivo e Direito Natural, se é que realmente existe.

Para o artigo atingir seu objetivo, escolheu-se discorrer sobre a posição de dois importantes jusfilósofos do século passado, Kelsen (Praga, 11 de outubro de 1881Berkeley, 19 de abril de 1973) e Del Vecchio (Bolonha, 1878 - Genova, 1970), cujas ideias dissonantes atestam a dificuldade de sua conciliação.

Iniciando-se o confronto com os ensinamentos de Kelsen apontam-se as seguintes características:

a)  Ao abordar o objeto do Direito Kelsen (1976, p. 109) leciona que

[...] na afirmação evidente de que o objecto da ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação – menos evidente – de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressuposto ou conseqüência, ou – por outras palavras – na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas.

Em síntese, para Kelsen (1976), a essência do Direito seria a norma ou o dever ser.

b)  O Direito positivo se apresenta como ordens de conduta humana, formando um sistema de normas hierarquizadas, tendo como fundamento de validade uma norma fundamental;

c)  O Direito natural, segundo Kelsen (1963, p. 94), é uma “doutrina idealista-dualista do direito. Ela distingue, ao lado do direito real, isto é, do direito positivo, posto pelos homens e, portanto, mutável, um direito ideal, natural imutável, que identifica com a justiça. É, portanto, uma doutrina jurídica idealista.” Além de idealista a teoria do direito natural é também racionalista, pois é da razão que se deduzem as normas de um direito justo.[6]

d) Kelsen (1976) nega o direito natural e dá ênfase à teoria pura do direito, de caráter monista, fundamentada na norma fundamental e desprovida de valor.

Em trabalho exaustivo, Vasconcelos (2003, p. 79-80), ao repassar criticamente a Teoria Pura do Direito, evidencia cinco teses de Kelsen:

1ª. tese: A teoria pura ocupa-se exclusivamente do direito positivo.

2ª. tese: é uma teoria do direito positivo, considerado este sob o ponto de vista espacial da doutrina do positivismo jurídico, que se define de modo liminar como excludente do jusnaturalismo e da idéia de justiça, a este vinculada.

3ª. tese: Por ser positivista, assim restringindo-se ao Direito que é, o Direito real, em oposição do Direito que deve ser, o Direito ideal, a teoria pura é realista.

4ª. tese: Como o real, para legitimar-se, necessita da confirmação da experiência, a teoria pura também se proclama empirista.

5ª. tese: Ainda na condição de realista, arremata Kelsen, “recusa-se a valorar o direito positivo” (1974, p. 161). Por importar neutralidade axiológica, pois, o realismo afasta da teoria pura, desde logo, as idéias de justiça e de legitimidade. Satisfaz-se com o mero conceito positivista de validade, que elege como critério máximo do direito positivo. Este, por si, “regula a sua própria criação (1939, p. 66)”, o que lhe assegura plena autonomia.

Ainda sobre a Teoria Pura do Direito Bobbio (2007, p. 50) afirma:

Ao contrário, a Teoria Pura do Direito, como vimos, é uma ciência objetiva, indiferente aos valores, neutra. Seu problema central certamente não é o de determinar qual ordenamento jurídico é politicamente mais oportuno ou idealmente mais justo, mas sim o descrever a estrutura formal do ordenamento jurídico enquanto tal.

Ao contrário do primeiro jusfilósofo, Del Vecchio procura fundamentar sua teoria no fim a que o Direito tende, alocando sua atenção no problema da justiça. Tal posição por si só contrapõe em parte a Teoria Pura do direito de Kelsen, pois, segundo Del Vecchio (1972, p. 331), “não nos podemos limitar ao reconhecimento da existência de um direito positivo; cumpre-nos, além disso, averiguar se ele, sobre ser positivo, é justo.”      

Observa-se que a teoria de Del Vecchio se encontra impregnada de valor. Comprovando-se o exposto e traçando-se um segundo paralelo em confronto com a teoria de Kelsen, apresentam-se as seguintes características da doutrina do italiano:

a)  Del Vecchio (1972, p. 333) não comunga com a ideia de que o objeto da Ciência jurídica seja tão somente o direito posto, pois “é certo que, na maior parte dos casos, o direito positivo está conforme com a nossa consciência; mas esta correspondência pode faltar, e é então que, em contraste com o direito vigente, se manifesta a inesgotabilidade da consciência jurídica própria do homem”. Mais adiante conclui: “Deve admitir-se portanto que o sentimento jurídico, inerente à nossa própria natureza, é uma força viva, originária e autônoma, e a fonte primária da evolução do direito.”.

b)  O direito positivo é um dado da experiência e pode ser considerado como um fato que possui caráter de juridicidade, apesar de seu caráter formal. Del Vecchio (1972, p. 375) afirma que

[...] o direito positivo pode ser compreendido e explicado como fenômeno natural, coerentemente inserto na série dos outros factos da natureza. Mas isto não implica que o Direito seja sempre natural, no campo deontológico, isto é, que corresponda sempre à exigência categórica do sujeito, fundada no seu ser absoluto (natureza em sentido eminente).

c)  O direito natural, segundo Del Vecchio (1972, p. 384), é “o critério que permite valorar o direito positivo e medir a sua intrínseca justiça”.

d) Del Vecchio não nega o direito natural, que sempre orientará o ideal jurídico. O fato de o direito positivo e o direito natural estarem em campos diferentes - o primeiro no campo da realidade (física) e o segundo no campo da ideia (metafísica) -não implica dizer que o ideal sempre se imponha aos fatos. Ressalta-se que existem inúmeras normas formais desprovidas da ideia do Direito, a exemplo do instituto da escravatura. Sobre esse fato jurídico e as normas que o regulam, Del Vecchio (1972, p. 377) conclui que é amparado pelo conceito do Direito, embora lhe seja ausente a idealização do direito. Nesse sentido, o fato de ser jurídico não o torna justo, e ser positivo não o alinha ao direito natural, “[...] pois contraria as exigências do próprio ser do sujeito.” Em síntese, o Direito natural tem esfera própria e como principal função orientar o ideal jurídico ou de justiça, estando no reino dos valores. Apesar de formalmente dissociado do direito natural, o direito positivo não pode permanentemente estar separado daquele, tendo em vista a questão da legitimidade, essencial à eficácia da norma.

No volume II da obra “Lições de filosofia do Direito” Del Vecchio (1972b) apresenta conclusões, cujo teor passa-se a transcrever:

1ª. Tese – Neste particular erraram, por conseguinte, os escritores antigos, quando ao direito natural atribuíram uma realidade fenomênica, identificando, assim, o conceito metafísico com o conceito físico de natureza;

2ª. Tese - Por sua vez, caíram no exagero oposto os modernos positivistas, quando negaram a existência do direito natural como critério ideal do direito positivo, e reduziram a este todo o direito.

3ª. Tese - já, porém, mostramos quão errado é querer concluir pela inexistência do direito natural ou ideal só porque este não se manifesta na ordem fenomênica, ou nem sempre é consagrado pelos factos. Com efeito, não basta a observação dos factos para atestar a existência ou inexistência de um direito; como não basta, por outro lado, aduzir um direito, para se provar que tal ou tal facto aconteceu ou não.

4ª. Tese – O direito natural pode ser acolhido explicitamente pelo direito positivo, como também pode funcionar como fonte suplementar ou subsidiária.

5ª. Tese - Deve, porém, observar-se que, mesmo quando o direito positivo se afasta nas suas fórmulas dos princípios do direito natural, ou deste diverge por motivos técnicos ou substanciais, nem por isso os exclui inteiramente, não deixando de lhes reconhecer uma certa validade parcial e subordinada dentro do sistema. (p. 378-388).

Outro aspecto relevante das conclusões oferecidas por Del Vecchio é o fato de ser impossível um direito positivo estritamente formal e desvalorado, partindo do pressuposto de que a norma posta sempre exprime as aspirações da chamada consciência jurídica, pois isso traria a estagnação do Direito em razão da ausência do estímulo necessário ao progresso deste.

Logo, a valoração da norma não pode ser abandonada, como defende Kelsen, tampouco substituída por um aspecto hipotético - Norma Hipotética Fundamental -, sob pena de o Direito ficar sem fundamento de valor, o que seria um absurdo.

A dicotomia do Direito em natural e positivo sempre vai suscitar embates, mas uma conclusão aceitável, segundo Del Vecchio (1972), é que o Direito natural pode ser considerado como critério que permite valorar o direito positivo e medir a sua intrínseca justiça, podendo contrastá-lo, caso a norma seja injusta.[7]

4.  O valor jurídico, a aplicação do justo e o respeito à legalidade

No plano epistemológico, o objeto de valoração em análise é o próprio Direito, tendo o item anterior procurado demonstrar ser complicado defender a existência de um direito positivo completamente desprovido de valor.

A dificuldade já se evidencia quando se analisa o problema do fundamento racional do Direito, aqui considerado a questão da justiça, visto que a distinção entre o fato de uma norma ser justa ou injusta requer um critério de natureza valorativa.

Reale (1998, p. 206), ao tratar da teoria histórico-cultural dos valores, leciona:

O valor, portanto, não é projeção da consciência individual, empírica e isolada, mas do espírito mesmo, em sua universalidade, enquanto se realiza e se projeta para fora, como consciência histórica, no processo dialógico da história que traduz a interação das consciências individuais, em um todo de superações sucessivas.

Logo, o valor jurídico não é uma opinião única de um membro político, mas abrange uma série de fatores ou fatos qualificados e consagrados como justos pela sociedade, estando, sim, num plano metajurídico, que serve de base para os princípios que constam na Constituição.

A discussão em torno da temática aqui abordada sempre será atual, já que as relações jurídicas ficam cada vez mais complexas, requerendo do aplicador do Direito que esteja atento não só ao dever-ser, mas que se indague se esse dever-ser é justo (âmbito do axiológico). A análise dos valores na Ciência do Direito não é e nunca foi descabida, não significando perda de nível científico. Ao contrário, muitas das decisões judiciais são tomadas com base em hierarquia de valores.

A teoria dos valores, segundo Alexy (2008), mostrou-se na sua essência estruturalmente igual à teoria dos princípios, que se situa no âmbito deontológico (no âmbito do dever-ser). Sobre essa questão Alexy (2008, p. 144) afirma:

Duas considerações fazem com que seja facilmente perceptível que princípios e valores estão intimamente relacionados: de um lado, é possível falar tanto de uma colisão e de um sopesamento entre princípios quanto de uma colisão e de um sopesamento entre valores; de um lado, a realização gradual dos princípios corresponde à realização gradual dos valores. Diante disso é possível transformar os enunciados sobre valores do Tribunal Constitucional Federal em enunciados sobre princípios, e enunciados sobre princípios ou máximas em enunciados sobre valores, sem que, com isso, haja perda de conteúdo.

Alguns dos princípios gerais do direito encontram-se positivados na Constituição, que resta, portanto, impregnada de valores, justos ou não, não sendo, no entanto, essa caracterização o fundamento deste artigo.

É importante acrescentar ainda que os valores também estão presentes nas normas que não constituam princípios. Canotilho (2009) sugeriu o abandono da teoria da metodologia jurídica tradicional, que distinguia norma de princípio, passando a defender a tese de que princípios e regras são duas espécies de norma.[8]

O que interessa é que todo tipo de norma, conforme exposto no terceiro tópico deste artigo, não é desprovido de valor, e que os valores contidos nos princípios devem ser os fundamentos das regras, que seriam inconstitucionais se não tivessem conformidade com os princípios.

Sobre essa questão, Canotilho (2009, p. 1160) apresenta didática compreensão ao falar que os princípios, como espécie de norma, possuem um caráter de fundamentalidade e de proximidade da ideia de Direito:

[...] c) Carácter de fundamentalidade no sistema das fontes de direito: os princípios são normas de natureza estruturante ou com um papel fundamental no ordenamento jurídico devido à sua posição hierárquica no sistema das fontes (ex: princípios constitucionais) ou à sua importância estruturante dentro do sistema jurídico (ex: princípio do Estado de Direito)

d) Proximidade da ideia de direito: os princípios são “standards” juridicamente vinculantes radicados nas exigências de justiça (Dworkin) ou na idéia de direito (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo meramente funcional.

O básico é que o Direito não está e não pode estar destituído de valor, sendo importante a atividade de análise dos valores e da suposta hierarquia entre eles, sempre na busca da situação mais justa para o fato que se apresenta.

Partindo-se da proposição de que o fundamento racional do Direito é a justiça e de que a resposta ao problema central abordado neste artigo encontra-se na conclusão, já externada, de que o Direito não pode ser desprovido de razão, de valor, portanto, de que a norma jurídica não pode estar dissociada do valor de justiça, passa-se, agora, a analisar o objetivo geral do artigo - a questão da aplicação do justo e do respeito à legalidade.

Vedar a instância do valor da norma jurídica e relegar sua fundamentação a uma hipótese jurídica (Norma Hipotética Fundamental) mostra-se uma teoria de difícil aceitação, pois não se sabe o valor dessa hipótese jurídica.

Nada pode ser analisado pela Ciência do Direito ou criado sem a investigação das instâncias de valor, as quais não se confundem com as instâncias de validade[9]. Ao contrário do afirmado por Kelsen (1976), é essencial que a norma válida seja justa, que tenha implicação na instância da eficácia, que diga respeito à questão da aplicação da norma.

A história mostra que normas, mesmo que baixadas por governos ilegítimos, podem ser e serão aplicadas (eficácia) se forem justas (boas). Por outro lado, existem no ordenamento jurídico de qualquer país normas derivadas de um poder legítimo, mas que são completamente injustas.

A questão da legitimidade é política, isto é, ligada a uma aceitação pela sociedade do poder político dos governantes que chegaram ao poder em conformidade com a ordem constitucional, que, por outro lado, deve originar-se também de um poder legítimo.

A legitimidade, no entanto, pode ser também utilizada no sentido de justo. O cientista do Direito não deve, no entanto, confundir legitimidade com legitimação, tendo Canotilho (2009, p. 1439) afirmado que:

O esforço de constituir uma ordem política segundo princípios justos consagrados na constituição confere a esta ordem uma indispensável bondade material (legitimidade) e ao vincular juridicamente os titulares do poder justifica o poder de “mando”, de “governo”, de “autoridade” destes titulares (legitimação).

Apesar de a legitimidade ser uma instância de valor, não pode ser confundida com a questão do justo. A norma jurídica deve ser justa e legítima, mas é possível existir norma justa e ilegítima, assim como norma legítima e injusta.

Como exemplo, pode-se citar a Lei brasileira nº 8.024, de 12 de abril de 1990, que limitou os saques dos proprietários de cadernetas de poupança em instituição financeira e bloqueou os saldos remanescentes. Ao se fazer uma análise dessa norma observam-se as seguintes premissas: a lei indicada constitui uma norma jurídica; e o governo (Collor) que a propôs e a sancionou era legítimo na época. No entanto, será que se pode concluir que ela é justa, devendo ser aplicada?

Apesar de não se poder confundir a instância de validade da norma com a de valor, essa última, tendo em vista o espírito qualitativo, influencia, sim, a questão da validade ao ter o poder de tornar a norma ineficaz, caso injusta.

A aplicação da norma em comento é nitidamente contrária ao princípio de justiça (justo) consagrado na Constituição brasileira de 1988, que tem como fundamento o respeito à propriedade privada. Por mais que a medida seja justificada pela necessidade de se estabilizar a moeda nacional e combater a inflação, não é capaz de modificar a caracterização da regra, de triste memória, nefasta e contrária aos princípios fundamentais da Constituição (direito positivo) e aos valores da sociedade (direito natural) - o respeito à propriedade privada, condicionado pela função social.

A tudo isso se acrescenta o fato de ser objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, positivado no artigo 3º da Constituição Federal de 1988, a construção de uma sociedade justa. Logo, para a sociedade brasileira a norma em questão não é justa, porque não é justo o confisco de ativos particulares, constituindo uma contradição a sua validade diante do valor máximo da Norma Constitucional. Ou seja, a citada norma deve ser considerada inconstitucional pelos motivos e fundamentos expostos.

Kaufmann (2004, p. 227), ao tratar da ideia de direito, conclui que o mais elevado valor do Direito é a justiça, que tem três vertentes:

[...] a igualdade (justiça em sentido estrito), a adequação (segundo outra terminologia: justiça social ou do bem comum) e a segurança jurídica (paz jurídica). Na igualdade está em causa a forma da justiça, na adequação, o conteúdo da justiça, e, na segurança jurídica, a função da justiça.

A vertente que interessa ao tema em análise é a da adequação, cuja causa é o conteúdo da justiça. Mas o que é justo?

A resposta a esse questionamento não é fácil de se precisar por ser variável e mutável, em razão do tempo e dos aspectos culturais de cada povo. Na verdade, crê-se que a ideia de justo é um valor ideal, em cujo teor sempre estará implícita a ideia de igualdade, conjugada com o bem comum e a paz jurídica.[10]

É certo que o valor de justiça, segundo Radbruch (apud KAUFMANN, 2004), pertence à Filosofia do direito, mas a ideia-fim existente no conteúdo de justiça deve ser procurada na ética (o fim do Direito tanto pode estar referido aos bens éticos como aos deveres éticos a serem seguidos).

Sobre esse tema, conclui-se que o fundamento do Direito se encontra nos valores do justo, sendo o direito natural, apesar de não existir um direito absolutamente justo, o fornecedor do seu conteúdo.[11]

5.  Considerações finais

A análise dos questionamentos acerca da importância da razão e do justo como valor jurídico na fundamentação do Direito permitiu evidenciar inicialmente, a título de conclusão obtida com a pesquisa, que a epistemologia jurídica constitui um instrumental do pensamento destinado a promover a reflexão sistemática sobre a teoria da Ciência do Direito, buscando conhecer sua natureza e definir o que é justo.

Nesse sentido, o fato de o aspecto valorativo da conduta humana estar nitidamente ligado ao Direito o torna, portanto, objeto da Ciência jurídica. Isso significa que a valoração da norma não pode ser abandonada, como defende Kelsen, tampouco substituída por um aspecto hipotético - a Norma Hipotética Fundamental -, sob pena de o Direito ficar sem fundamento de valor, o que seria um absurdo.

Considera-se, por conseguinte, que os objetivos estabelecidos foram plenamente alcançados, visto que se comprovou que o problema do fundamento racional do Direito, aqui considerado a questão da justiça, requer um critério de natureza valorativa, o que confirma a importância da razão e do justo, como valores jurídicos, na fundamentação da Ciência Jurídica.

Afinal, o valor jurídico não é uma opinião única de um membro político, mas constitui uma série de fatores ou fatos qualificados e consagrados como justos pela sociedade, inscrevendo-se num plano metajurídico, que serve de base para os princípios que constam na Constituição.

O básico é que o Direito não está e não pode estar destituído de valor, sendo importante a atividade de análise dos valores e da suposta hierarquia entre eles, sempre na busca da situação mais justa para o fato que se apresenta.

Isso porque é essencial que a norma válida seja justa, que tenha implicação na instância da eficácia, que diga respeito à questão da aplicação da norma.

Conclui-se, com base no entendimento de que o fundamento do Direito se encontra nos valores de justiça, sendo o direito natural fornecedor do seu conteúdo, que, apesar de a legitimidade ser uma instância de valor, não pode ser confundida com a questão do justo, porquanto é possível existir norma justa e ilegítima, assim como norma legítima e injusta, embora a essência da norma jurídica seja a justiça.

Referências

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Submetido em: 16 fev. 2017.

Aceito em: 2 mar. 2017.



[1] Teoria do cepticismo e do realismo empírico: o Direito não tem qualquer fundamento intrínseco, identificando justiça como legalidade (DEL VECCHIO, 1972).

[2] Teoria do historicismo: “para o historicismo o direito tem por único fundamento a conexão dos factos que o determinam”. (DEL VECCHIO, 1972, p. 339).

[3] Teoria do teologismo: tentou resolver o problema do fundamento intrínseco do Direito recorrendo à ideia de divindade, da qual derivariam imediatamente os princípios do bom e do justo (DEL VECCHIO, 1972).

[4] Teoria do utilitarismo: “O sistema utilitário nega que o Direito tenha um fundamento próprio e absoluto, dado que considera o justo idêntico ao útil; isto é, reduz o direito à utilidade” (DEL VECCHIO, 1972, p. 345).       

[5] Sobre distinção entre ciência e valor ver Hessen (2003).

[6] Kelsen (1963) observa que para o direito natural as normas são imanentes à razão. Vide: Habermas (1982).

[7] Contrariando essa conclusão, Kelsen (apud VASCONCELOS, 2003, p. 140) observa que “O princípio da intransitividade também serve de obstáculo à afirmação da existência de um Direito natural que, na sua condição de ser, determinaria o que deveria ser, ou seja, ditaria regras para a conformação do Direito positivo. Admitir tal entendimento, diz Kelsen, importaria, sob outro prisma, tomar a natureza como uma autoridade normativa, como uma espécie de legislador.”.

[8] É digna de nota a teoria que afirma que princípio não é norma, por não conter o elemento sanção de forma expressa.

[9] Reiterando o informado na introdução, Vasconcelos (2003, p. 201) afirma: “Quanto ao ponto inicial, observa-se que Kelsen confunde as instâncias de validade do Direito com suas instâncias de valor. As primeiras, da ordem da iminência, referem-se à juridicidade, positividade, vigência e eficácia. A norma jurídica que satisfaz a essas quatro instâncias de cunho técnico é, seguramente, uma norma válida. As segundas, da ordem da transcendência, dizem respeito à justiça e à legitimidade. A norma que perfaça essas duas instâncias de cunho axiológico é, sem dúvida, uma norma valiosa. Por princípio, o Direito positivo da teoria pura satisfaz-se somente com ser válido, recusando, em razão de sua ‘pronunciada tendência antiideológica, [...] a valorar o direito positivo’ (1974:161), quer dizer, a percorrer as instâncias de valor. Não tem procedência, portanto, falar em fundamento de validade”.

[10] Sobre segurança jurídica e justiça ver Kaufmann (1994, p. 66): por razões de segurança jurídica é necessário estabelecer autoritariamente o conteúdo do Direito. Mais uma vez a doutrina de Radbruch não é positivista, porque também inclui os valores, pagando, contudo, o preço de relativismo; e não é jusnaturalista, porque não deduz um direito absolutamente justo a partir da ideia de direito.

[11] Vasconcelos (1986, p. 324) afirma: “A justiça não deixará, jamais, de ser um ideal apenas parcialmente alcançado. Se o real (Direito positivo) é forçosamente imperfeito e incompleto, urge aperfeiçoá-lo e completá-lo de acordo com os parâmetros do modelo ideal (Direito Natural), que fornece o conteúdo da justiça.”