O DIREITO ALTERNATIVO E A ESCOLA DO DIREITO LIVRE

GUSTAVO TAVARES CAVALCANTI LIBERATO

Mestrando em Direito - UNIFOR | Bolsista da FUNCAP

“Vê-se todos os dias a sociedade reformar a lei; nunca se viu a lei reformar a sociedade" (Jean Cruel. “A VIDA DO DIREITO E A INUTILIDADE DAS LEIS". 1 a Edição, Salvador, Editora Livraria Progresso, 1956).

Tendo, hodiernamente, ganho algum espaço nos meios acadêmicos, o autodenominado "movimento do Direito Alternativo”, parece não ser extemporânea uma análise - perfunctória que seja - das sensíveis semelhanças deste movimento com a chamada Escola do Direito Livre.

A causa da devoção a esta tarefa provém das discussões ocorridas nas aulas de Epistemologia Jurídica, do Curso de Mestrado em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza, aulas estas regidas pelo eminente professor Arnaldo Vasconcelos.

Com efeito, se a inquietação é um dos primeiros motores do raciocínio (senão da filosofia 1), esta compraz-se de encontrar em eras tão distintas, preocupações tão presentes ao homem enquanto tal. A correlação entre um e outro objetos desta singela análise, entremostra-se assaz peculiar, nada obstante possa surpreender o espírito dos que crêem piamente na calcificação irredutível (senão fossilização) das escolas hermenêuticas.

Deste modo, muito proveitoso será caracterizar os objetos que se há de ter em conta, de sorte a distinguí-los, sem grandes dificuldades, quando do momento comparativo.

Inicie-se então pelo chamado Direito Alternativo.

O Uso Alternativo do Direito surgiu na Itália, entre o fim da década de sessenta e o começo da década de setenta, como um processo de crítica ao Direito desenvolvido até então.

A carência de resultados concretos das oposições até então levantadas desencadeou a idealização de um movimento teórico-prático, o qual propugnasse a utilização do ordenamento jurídico vigente e de suas instituições ("Direito Burguês Capitalista") para a consolidação de uma prática judicial emancipadora2, eminentemente voltada às classes ou setores sociais menos favorecidos3, valendo-se para tanto do uso da chamada guerra de posição, ou seja, a busca efetiva de saídas e opções concretas ao regime vigente.

O movimento nega o intento de substituição da ciência jurídica positivista, e busca, apenas, uma aplicação diferente da dogmática dominante, explorando para tanto as contradições e crises que lhe são inerentes4, de sorte a obter formas mais democráticas que venham superar e substituir a ordem burguesa.

Antônio Carlos Wolkmer aponta que, para os adeptos do modelo alternativo do Direito, duas. notas tem singular importância. Eis a passagem: "Apoiando-se em pressupostos do pensamento neomarxista contemporâneo, que explora as fissuras, as antinomias e as contradições da ordem jurídica burguesa, os adeptos do modelo alternativo do Direito consideram a relevância de dois aspectos: a) a estreita relação entre a função política do direito enquanto instrumento de dominação e as determinações socioeconômicas do modo de produção capitalista; b) o Poder Judiciário, que assegura o status quo estabelecido, agindo não só como aparelho ideológico do Estado, mas também como instrumento de repressão e controle institucionalizado" (1995:46).

Observando os pontos assinalados, percebe-se que busca o Uso Alternativo do Direito desmascarar certos postulados da cultura jurídica burguesa, tais como a apoliticidade, a imparcialidade e a independência dos juízes, visto que o Poder Judiciário é instituição de natureza política, puro reflexo da peculiar dinâmica de poder no Estado capitalista.

Assim, partindo de um melhor uso desta função política do Direito, o Uso Alternativo do Direito conclama a magistratura a ampliar os espaços democráticos, devendo o ápice do Poder Judiciário limitar-se a ser mero homologador e unificador (reduzindo a um sistema) dos critérios utilizados pelas instâncias inferiores, as quais gozariam de um alargamento do processo hermenêutico para atender às reivindicações dos setores populares, notadamente os mais carentes.

Muito embora ainda hoje não exista uma definição mais precisa do que vem a ser o Direito Alternativo, em terras brasileiras já existia, ao final da década de oitenta, uma disciplina sob esta rubrica, disciplina esta ministrada na Escola da Magistratura do Rio Grande do Sul, tendo por coordenador o juiz Amilton Bueno de Carvalho. Juntamente com Edmundo Lima Arruda Júnior (ambos tidos por "fundadores" e principais representantes nacionais do movimento alternativo) buscaram tais expoentes estruturar cientificamente o movimento - ou, ao menos, dar-lhe uma definição genérica.

Amilton Bueno de Carvalho, citado por Antônio Carlos Wolkmer propõe que o movimento do Direito Alternativo, em seu lato sensu, compreenda as seguintes facetas de atuações combativas: "1. USO Alternativo do Direito: utilização, via interpretação diferenciada, 'das contradições, ambigüidades e lacunas do direito legislado numa ótica democratizante'. 2. Positivismo de Combate: uso e reconhecimento do direito positivo como arma de combate, é a Juta para a efetivação concreta dos direitos que já estão nos textos jurídicos mas que não estão sendo aplicados. 3. Direito Alternativo em sentido estrito: 'direito paralelo, emergente, insurgente, acha- do na rua, não oficial, que coexiste com aquele emergente do Estado. É um direito vivo, atuante, que está em permanente formação/transformação'" (1995:143-144).

Para Edmundo Lima de Arruda Júnior, igualmente citado por Antônio Carlos Wolkmer, a Teoria dos Usos dos Direitos desdobrar-se-ia em: "1. Dimensão do instituído-sonegado: legalidade sonegada. É a nível da cobrança pela efetividade de normas jurídicas já abarcadas no sistema jurídico, a começar pela Constituição Federal. 2. Dimensão do instituído-relido: legalidade relida.

É o nível da releitura hermenêutica, a polissemia, a legislação infraconstitucional. 3. Dimensão do instituinte-negado: legalidade negada. É o nível das lutas e conflitos não institucionalizados, como o dos movimentos dos sem-terra. Trata-se do Direito alternativo por excelência, sendo também o lugar do pluralismo jurídico" (1995:144)5.

Destarte, culminando esta breve caracterização do ideário alternativo, elabora Antônio Carlos Wolkmer um rol de critérios politico-axiológicos essenciais ao objeto analisado: "a) o Direito é um instrumento de luta a favor da emancipação dos menos favorecidos e injustiçados, numa sociedade de classe como a brasileira; consequentemente, descarta-se o caráter de apoliticidade, imparcialidade e neutralidade dos operadores e das instâncias de jurisdição; b) um dos principais objetivos do 'movimento' é a construção de uma sociedade caracterizada como socialista6 e democrática; c) a escolha metodológica de grande parte de seus adeptos é pelo método histórico-social dialético, utilizando-o numa interpretação jurídico-progressista, cujo objetivo é explorar as contradições, omissões e incoerências da legalidade vigente; d) os 'alternativos' privilegiam como parâmetro nuclear, a efetivação da legitimidade das maiorias e a implementação da justiça social" (1995:145).

Cumpre ainda observar que, para João Baptista Herkenhoff, o Direito Alternativo, muito embora possua uma dimensão hermenêutica considerável, não é contido pelas raias da Hermenêutica, transbordando-as por ser, antes que uma Escola, um movimento. Para o autor em comentário, caso viesse o Direito Alternativo a consolidar-se como Escola, perderia ele seu traço essencial, qual seja, a sua imanente atualidade, resultante esta de sua posição dialética. Diz o respeitável professor da Universidade Federal do Espírito Santo que "virar escola significa 'estabilizar-se', perder o conteúdo dialético. Como Escola, o Direito Alternativo veria esvaziada sua dinâmica de contestação, crítica, questionamento, tudo isso que dá vigor ao 'Movimento"'(1997:79).

Guardando o devido respeito ao professor da UFES, não pode prevalecer o seu ponto de vista. Que o Direito Alternativo não constitui Escola, não se questiona. Entretanto, atribuir à condição de Escola a inamovibilidade evolutiva, verdadeira fossilização do raciocínio nela contido, não parece ser a melhor postura. De fato, a condição de desenvolvimento do pensamento humano é, precisamente, o fato de haver algo a ser desenvolvido: um rudimento de idéia que seja. Assim, o pensamento originado em dada época, conquanto não mais seja hoje apreciável, serve de contraste limitativo (verdadeiro linde de racionalidade) à evolução dos raciocínios que, ainda hoje, se tem por válidos. O espírito que animou diversas escolas de antanho foi, sem dúvida, marco inicial para a gestação de várias teorias contemporâneas (surgidas, não raro, por um procedimento dialético de tese e antítese, na busca da síntese harmonizadora7). Negar a possibilidade de evolução das escolas é, em suma, negar a capacidade do pensamento humano de desenvolver-se a partir de idéias preexistentes.

Como o divino sopro vivificador do Gênesis, o pensamento humano vale-se, incessantemente, de idéias preexistentes e, na medida em que as usa, atualiza e completa, dá-lhes nova conformação com a realidade. Ora, não há óbice à ocorrência disto em se tratando de algumas Escolas mais atuais (as quais, muitas vezes, são evolução dialética das que as precederam).

Assim, feita esta breve digressão, é chegado o momento da análise da alcunhada Escola do Direito Livre.

De forma a melhor compreender a gênese da escola em referência, é de observar-se, por primeiro, a época em que a mesma se desenvolveu e quais foram seus antecedentes teóricos.

Com efeito, superando (não sem dura luta) a velha escolástica, consolidou-se o sistema histórico-evolutivo, propugnando não só a busca pela vontade do legislador quando da edição da norma, mas também a presumível vontade deste, caso vivesse no meio atual e fosse confrontado com a questão a ser dirimida (ou, ainda, caso lhe fosse dado antever a realidade e as necessidades hodiernas quando da elaboração da norma). Destaca-se então, desde já, a nota social caracterizadora deste sistema. Empresta-se, dessarte, ductilidade ao Direito, de forma a garantir-se, tanto quanto possível, a sua adaptação às exigências sociais imprevistas. Como assevera Carlos Maximiliano: "Compete à exegese construtora 'fecundar a letra da lei na sua imobilidade, de maneira que se torne esta a expressão real da vida do Direito'. Mergulhe, profundamente, nas ondas do objetivo, participando da realidade" (1998:47).

Movida por ideais mesológicos, de verdadeira adequação das normas à realidade, saiu-se vitoriosa a Escola. Histórico-Evolutiva. Cingia-se esta, contudo, à constatação e adequação do influxo da evolução social sobre o Direito estatal e contentava-se com a contemplação da amplitude do mundo exterior às normas codificadas (v. França, 1998:37).

Entretanto, se era facultado ao julgador plasmar com elastério social a norma regente dos casos concretos que se lhe fossem cometidos, não lhe era permitido afastar-se da norma positivada, mesmo em casos imprevistos (lacunosos), devendo assim, para apresentar resposta ao caso concreto, valer-se de métodos vários, mas sempre fundamentados no Direito positivo.
Na última década do século XIX eclodiu uma nova teoria de aplicação do direito Mais arrojada do que sua antecessora, por não se contentar apenas com interpretar amplamente os textos normativos, esta nova teoria vem a demarcar novos e vastos horizontes, na medida em que criava direito novo, conduzindo ao limite máximo a capacidade humana de iniciar e colaborar no evolver das idéias.

No que diz respeito à nomenclatura que designou a novel escola, deve-se anotar que, como esclarece Carlos Maximiliano: "A corrente ultra-adiantada tomou em França por divisa, ou lema, a Livre Indagação (Libre Recherche); na Suíça, Áustria e Alemanha, Direito Justo (Richtiges Recht), ou Livre Pesquisa do Direito (Freie Rechtsfindung). Chamavam-lhe Escola do Direito Livre (Freies Recht) os adversários; e alguns adeptos repetiam, tolerantes, a denominação" (1998:66).

Deve-se aditar que a última nomenclatura, Escola do Direito Livre, foi utilizada indistintamente, quer para designar, de forma abrangente, a teoria em questão, quer para designar, especificamente, um segundo momento desta, em que sobressai o gênio de Kantorowicz8. Assim, de sorte dar uma melhor consistência metodológica à presente exposição cuidar-se-á de adotar a nomenclatura Escola do Direito Livre para denotar a visão global da teoria, dividindo-a em extremada (Escola do Direito Justo, Contra Legem) e moderada (Escola da Livre Indagação Científica, Livre Investigação do Direito, Livre Pesquisa do Direito)9.

Pois bem, François Gény (apud Magalhães, 1989:72) distingue apuradamente três fases, caracterizadas pela maior ou menor liberdade de atuação do juiz. A primeira (1840-1900) compreende o prelúdio do movimento, fase ainda sem grande apuro sistemático, nada obstante rica em idéias e ações isoladas 10. A segunda (1900-1906) cuida, preponderantemente, da organização das idéias e da colmatação de algumas lacunas teóricas 11. Por fim, a terceira é marcada indelevelmente pelo gênio impetuoso e arrebatado de Kantorowicz, e inicia-se com o opúsculo" A Luta pela Ciência do Direito".

No que diz com a primeira fase desta teoria, é registro que não pode passar despercebido o condizente ao lendário "Bom Juiz Magnaud" e sua Jurisprudência Sentimental. Aparentemente um precursor das linhas ,gerais da Escola do Direito Livre (tanto de suas vertentes extremada e moderada) - anterior, até, a sistematização desta - encontram-se nos julgamentos do modesto Tribunal de primeira instância de Château- Thierry, presididos (e dominados) pelo juiz Paul Magnaud, no período entre 1889 e 1904. Repleto de idéias humanistas avançadas e dominado por um peculiar sentido de solidariedade, o magistrado francês prolatou decisões incomuns tanto pelo modo escorreito e lapidar empregado em sua confecção como pelas idéias vanguardistas defendidas. Propenso à clemência e à misericórdia para com os humildes, entremostrava-se severo e enérgico para com os opulentos e poderosos. Em seus julgamentos, fatores vários (de cunho pessoal das partes) concorriam para moldar-lhe o entendimento.

Movido pelo intuito de concretizar na realidade a igualdade que a natureza e o individualismo subtraem à maioria dos homens, afastava a punição de pequenos furtos, amparava a viúva e os menores e fustigava inclementemente os erros administrativos sem ocupar-se da hermenêutica nem tampouco dos textos legais ou doutrinários: Valia-se de argumentos humanos e sociais, sempre embebidos em fortíssima oratória. Como magistrado de consistente ideologia pessoal, chegou a adotar posturas que causavam espécie mesmo aos mais vanguardistas de sua época. Para muitos, não possuía consistência teórica alguma, sendo nada mais, nada menos do que exteriorização de uma arraigada ideologia pessoal, ideologia esta motivada apenas pelo anelo de realizar uma melhor justiça, nada obstante ser necessário, de quando em vez, insurgir-se contra o Direito Positivo.

Um tal arrebatamento não podia ser contido pela toga. Por fim alcançou a Câmara dos Deputados. Convém anotar ainda que contava Paul Magnaud com a admiração irrestrita dos anarquistas, e com a observação cautelosa (um tanto reservada, é certo) dos socialistas daqueles tempos.

O contributo deste magistrado, se não pode ser expresso com força teorética, toma-se indelével pelo simples fato de fazer evidentes as injustiças contidas nos critérios de certas leis. Se não é possível uma sistematização teórica acerca das soluções por ele adotadas, muito se lhe deve por haver trazido à lume as reais dimensões de um problema que, por vezes, era minimizado em sua abrangência.

Expressamente, parece que a Escola do Direito Livre tenha se iniciado com François Gény, na França, e Eugen Ehrlich, na Alemanha (sendo tarefa difícil determinar quem foi o primeiro a dela cuidar entre os dois - ainda mais quando se vê em Büllow um possível predecessor de ambos). Inicialmente respeitavam-se a lei escrita e o Direito Consuetudinário. Cindida em duas correntes, a primeira, liderada por Ehrlich, desconsiderava a hermenêutica, tendo-a por mero elemento secundário. Para esta corrente, se do exame dos textos não se pudesse, de logo, apreender inequivocamente a solução para o caso em concreto (aplicação do brocardo In claris cessat interpretatio), dar-se-ia o espaço para que o juiz criasse uma norma específica para solucioná-lo. A outra corrente, na qual despontavam Gény, Gmür, Hompell e Brutt) facultava tal expediente apenas se exauridos, improdutivamente, os mecanismos tradicionais da interpretação.

Realizando uma análise geral da postura de François Gény, João Baptista Herkenhoff traça, em linhas gerais, a razão de ser da vertente moderada da Escola do Direito Livre: "Gény combateu o espírito legalista do positivismo jurídico, o abuso das construções sistemáticas da hermenêutica tradicional, o fetichismo da lei e a concepção de sua plenitude lógica, demonstrando que a lei é insuficiente para cobrir todos os fatos sociais. A aplicação de métodos puramente racionais, no campo do direito, tinha conduzido à falsificação da realidade, cuja compreensão global só é possível através de uma operação complementar, de natureza intuitiva. A Escola da Livre Pesquisa Científica surgiu para superar as deficiências da interpretação segundo os métodos da Escola Histórico-Evolutiva” (1997:48).

Esta segunda corrente logrou importante vitória, tendo sido, inclusive, acolhida pelo Código Civil suíço, de 10 de dezembro de 1907, tal como registra Carlos Maximiliano: "Esta corrente obteve ruidosa vitória com a solene consagração dos seus ensinamentos em um repositório legislativo muito apreciado na Europa: o Código Civil suíço, obra do jurisconsulto Huber. Reza o art. 1 °: 'Aplica-se a lei a todas as questões de Direito para as quais ela, segundo a sua letra ou interpretação, contém um dispositivo específico. Deve o juiz, quando se lhe não depara preceito legal apropriado, decidir de acordo com o Direito ConsuetUdinário, e, na falta deste, segundo a regra que ele próprio estabeleceria se fora legislador. Inspira-se na doutrina e jurisprudência consagradas'" (1998:67).

Destarte, primeiramente buscar-se-ia a solução para o caso in concreto nos textos positivos, aos quais deveriam ser aplicados os métodos hermenêuticos disponíveis (inclusive o propugnado pela escola histórico- evolutiva, de índole notadamente social). Uma vez persistindo a carência de solução, passar-se-ia ao costume, à jurisprudência da vida cotidiana apregoada por Rudolf von Ihering. Em último caso, guardada esta gradação, o magistrado seria investido, por um momento, dos poderes criativos atribuídos às assembléias, devendo observar, entretanto, as diretrizes traçadas pela jurisprudência firmada e pela doutrina assente.

Em cada estágio descrito encontram-se fontes do direito para Gény. No primeiro, tem-se as normas positivadas, às quais aplica-se (como não poderia deixar de ser) o rico instrumental hermenêutico. Em seguida, tem-se o costume, o Direito Consuetudinário. Enfim, chega-se ao momento de maior discrição do magistrado, quando deverá ter por fontes orientadoras a Autoridade e a Tradição 12.

Comentando o procedimento adotado pela vertente moderada da Escola do Direito Livre, Maria da Conceição Ferreira Magalhães o expõe: "Como o juiz não pode deixar de julgar num caso concreto, quando as fontes acima descritas são ainda insuficientes para formar o seu convencimento, mergulhará ele na tarefa de livre investigação científica: 'Investigação livre, uma vez que se subtrai à ação própria de uma autoridade positiva; investigação científica, ao mesmo tempo, porque só encontrará bases sólidas, nos elementos objetivos que somente a ciência lhe pode revelar'. E estes elementos objetivos a que Gény aludia eram a natureza das coisas, a razão, a consciência e a analogia. A livre investigação científica a que se referia Gény, não indicava uma liberdade absoluta ao intérprete - cingia-se ela àqueles elementos objetivos revelados pela ciência. A natureza das coisas assenta sobre a noção de equilíbrio que deve estar presente nas relações sociais, razão pela qual se há de penetrar nos fenômenos sociais para descobrir as leis de sua harmonia e os princípios que eles requerem; a justiça e utilidade geral seriam os objetivos diretores da razão e consciência do intérprete; a analogia funda-se no princípio da igualdade jurídica, segundo o qual as mesmas situações de fato reclamam as mesmas sanções jurídicas" (1989:59).

Nada obstante pareça estar por demais vinculado o magistrado, a aplicação prática de uma tal teoria já seria, sem dúvida, avanço primoroso na atividade jurisdicional de qualquer país. Os lindes apontados correspondem à preocupação de não se corromper a liberdade atribuída ao magistrado em arbítrio nocivo à própria existência da sociedade organizada. Com efeito, a intenção destes teóricos foi assegurar a viabilidade prática de uma tal teoria, pois de nada adiantaria traçar-se algo tão utópico que fosse irrealizável no mundo fático.

De fato, como veremos ao cuidar da outra variante desta escola, bastariam alguns julgamentos equivocados, propalados por magistrados descompromissados com suas altaneiras funções, para pôr em risco a existência da forma organizada de sociedade, convertendo a liberdade que alcançaram em intolerável arbítrio, verdadeira ditadura judicial.

Vale consignar, por oportuno, que diferentemente do que possa parecer, Gény, longe de restringir-se apenas à "vontade do legislador"13, não nega a possibilidade de buscar-se a revisão (ou mesmo a desconsideração) desta vontade por haver decorrido um dado lapso temporal que abrigue alterações nas condições da realidade social, de sorte a que esta venha a demandar a adaptação dos preceitos normativos. Eis o que diz o mestre: "'Todavia, se rejeito em princípio a idéia de que a interpretação da lei deveria variar segundo a época de sua aplicação, creio poder fazer-lhe uma concessão; ou melhor, chego a dar-lhe uma satisfação, na medida legítima, analisando a fundo a noção propriamente jurídica da lei. Esta supõe necessariamente certas relações sociais, certas circunstâncias econômicas, que aparecem como as próprias condições da disposição legal. Estas situações e estes fatos, ora serão previstos pelo próprio texto, ora surgirão, a título de complemento indispensável, da atmosfera social que envolveu a lei em seu nascimento, e que é indispensável ter em conta, para dar à lei todo o seu alcance. Suponhamos que estas condições, expressas ou tácitas, da disposição legal, venham, quer a desaparecer, quer a transformar-se a ponto de perderem toda a sua importância. O preceito legal, que lhes .estava subordinado, modificar-se-á, por isso mesmo, e cessará de impor-se ao intérprete, tal como fora primitivamente formulado'.(...) já que o preceito original da lei se apresenta condicionado por certos elementos essenciais, pode-se dizer que estes mesmos elementos limitam-lhe necessariamente o efeito, no sentido de que a regra, tal como foi querida e formulada, toma-se inaplicável a um estado de coisas absolutamente diferente daquele que o legislador tivera em vista. E somente nesta medida que as circunstâncias posteriores à lei parecer-me-iam, pela própria interpretação dela, poder, modificar-lhe a aplicação'" (apud Silveira, s.d.:236-237)."

A postura adotada pelo mestre francês é objetiva. Reconhece a influência das circunstâncias fáticas elementares, tais como relações sociais e econômicas, no cenário da elaboração da lei e, igualmente, reconhece que as alterações destas circunstâncias no curso dos tempos podem ser bastantes para produzir um entendimento inteiramente diverso do que se sustentava quando da elaboração da norma. É de dizer-se com Karl Engisch que: "As regulamentações jurídicas não raro se tornam posteriormente lacunosas pelo facto de, em razão de fenômenos econômicos inteiramente novos (pense-se na inflação) ou de progressos técnicos (aviação, filmes, discos, rádio, televisão, cirurgia do cérebro, inseminação artificial), surgirem questões jurídicas às quais a regulamentação anterior não dá qualquer resposta satisfatória"(1996:287).

Assim, realmente, só se poderia conceber a eterna aplicação de uma norma de acordo com a vontade originária do legislador em caso de aceitarmos a premissa de uma sociedade imutável, estática, imune ao tempo. Como tão onírica sociedade é inalcançável e pura utopia, resta a constatação de que a exceção de François Gény é a regra da existência jurídica. Neste sentido, JEAN CRUET reforça: "Uma lei, pois, não pode conservar indefinidamente o seu alcance primitivo, quando tudo muda ao redor dela: os homens, as coisas, o juiz e o próprio legislador. Novas questões se apresentam, velhas questões não se apresentam já da mesma maneira, e um dia chega em que a aplicação do texto antigo, no seu sentido primitivo, aparece racionalmente como uma verdadeira impossibilidade. Uma lei imutável só pode conceber-se numa sociedade imutável. Explica- se assim como o progresso da jurisprudência tem muitas vezes consistido em esquecer o sentido histórico dum texto para lhe reconhecer um sentido próprio e evolutivo" (1956:49).

Deve-se ressaltar ainda que, consoante o exposto, percebe-se nitida- mente, e em toda a sua dimensão, a preocupação do eminente François Gény em dar concretude ao direito, em resguardar, praticamente, o fim social do direito. Neste passo, Maria da Conceição Ferreira Magalhães bem situa a questão: "É de ressaltar que a formação do método concebido por Gény tem em mira assegurar a função social do Direito. Atribuindo à legislação um lugar preeminente na hierarquia das fontes do direito, admite destarte a pesquisa do direito, quando esta fosse insuficiente ou obscura, ao longo da lei, praeter legem, nunca; porém, contra legem. Conclui seu Método parafraseando a célebre frase de lhering: 'Pelo Código Civil, mas além do Código Civil'. Sua preocupação por um direito mais autêntico, mais consentâneo com a realidade social e que, atendendo às necessidades gerais absorvesse os novos ideais e valores da sociedade, levou muitos estudiosos a classificar sua doutrina dentro do sociologismo jurídico" (1989:60).

Assim, a doutrina da Hermenêutica, em geral, aponta a semelhança entre a da Escola do Direito Livre e a Escola Histórico-Evolutiva, concluindo haver apenas uma diferença de grau ou amplitude. Entretanto, não se pode negar a fecundidade, utilidade e atualidade da Escola do Direito Livre. E deve-se ter diante dos olhos, quando da comparação entre uma e outra, que, mesmo com limitações, a vertente moderada da Escola do Direito Livre deu ao magistrado mais liberdade do que as formas mais radicais da Escola Histórico- Evolutiva. Esta, ainda buscava reter o magistrado nos lindes legais (se bem que atualizáveis pelos fatos sociais), enquanto aquela, mesmo que de forma subsidiária, lhe permitia um campo para a livre pesquisa do Direito a aplicar ao caso concreto - campo este, evidentemente, passível de controle dada a sua limitação pela necessidade de fundar-se em bases sólidas, em elementos objetivos revelados pela ciência (natureza das coisas, a razão, a consciência e a analogia).

No Brasil, Clóvis Beviláqua entremostrou-se discreto simpatizante da vertente moderada da Escola do Direito Livre. Eis a passagem da qual se deduz a ilação: "Assim, o intérprete, esclarecendo, iluminando, alargando o pensamento da lei, toma-se um fator de evolução jurídica. É certo que a sua ação é limitada pelo próprio édito da lei, e se este se recusa a aceitar as modificações sociais, o intérprete nada mais tem a fazer, senão esperar que o legislador retome a sua empresa atrasada, e, enquanto esse momento não chega, pedir à razão jurídica lhe revele a norma a seguir. Para que a sua decisão traduza, de fato, o direito imanente às relações sociais, é necessário que o intérprete seja dotado de um critério seguro, de um senso jurídico apurado e de um largo preparo intelectual, não somente nas disciplinas propriamente jurídicas, mas ainda em todas as ciências que se ocupam com o homem e com a sociedade, desde a psicologia até a história, a economia e a sociologia. A lei escrita e ainda a codificação, se restringem, não fazem desaparecer as outras fontes naturais do direito. Se este tem na lei a sua forma principal, continuará sempre a revelar-se, nas absolutas deficiências dela e do costume, pela jurisprudência e pela doutrina, às quais compete extrair da lei todas as suas conseqüências possíveis, e quando, apesar dos seus esforços, a lei se mostra incapaz de dirigir o movimento social, completá-la, descobrindo o direito, que está no equilíbrio dos fenômenos sociais, porém ainda não deles claramente desprendido" (1980:52).

Veja-se agora a corrente extremada da Escola do Direito Livre (Contra Legem). Para muitos de seus adeptos (verbi gratia Stammlert14), a denominação não lhes era bem-vinda, eis que estavam a buscar não um direito livre, mas um Direito Justo, para tanto dilatando os horizontes do juiz, no seu mister de interpretar e aplicar o direito, desvinculando-o do método tradicional de interpretação. De fato, o ideal desta vertente é buscar o Direito Justo onde quer que este se encontre, quer seja dentro ou fora da lei, na sua ausência ou a seu despeito. Decide-se não só praeter mas contra legem.

Despreocupando-se com os textos, desprezando quaisquer construções, ficções, interpretações, analogias etc., cuidavam os corifeus desta corrente de indicar a observância dos dados sociológicos, o determinismo dos fenômenos. Deveria o magistrado tomar por guia os ditames de seu próprio sentimento, de sua vivência profissional, de sua consciência jurídica.

A vertente extremada do Direito Livre teve por inicio a retumbante monografia de Herman Kantorowicz, intitulada “A Luta pela Ciência do Direito", publicada em 1906 sob o pseudônimo de Gnaeus Flavius15. Esta foi seguida de outra "Pela Teoria do Direito Justo", agora verdadeiramente subscrita pelo professor de Friburgo. Ambas (em especial a primeira obra) causaram espécie quando de sua publicação, por expor com coragem e ímpeto, "em linguagem precisa e vibrante, as falhas e estreitezas da prática judiciária contemporânea, bem como do preparo profissional dos futuros magistrados" (Maximiliano, 1998:74). Estes, na visão de Kantorowicz, só ocupavam-se das fórmulas e deduções silogísticas das regras a aplicar aos casos concretos, não estudando a vida nem tampouco as ciências que lhes facultariam a sua compreensão.

Tendo por objetivo a emancipação do Direito da tirania da lei, Kantorowicz vem mostrar que sua novel concepção de Direito constitui uma ressurreição do Direito Natural, contudo, com a característica de possuir este um conteúdo diverso das concepções dos séculos XVII e XVIII, que o viam como um direito imutável. Para Kantorowicz, o direito natural seria mutável e condicionado histórica e individualmente sendo seu conteúdo de fragilidade singular, flutuando ao sabor das eras e dos fatos sociais.

Por ser o Direito Positivo incapaz de satisfazer todos os casos que lhe são apresentados, caberia, para a realização dos fins do Direito (em acepção lata), a colaboração de outras formas jurídicas menos inflexíveis. Neste vasto campo de atuação, esta versão radical da Escola do Direito Livre lembrava o Direito Natural, dada a sua pretensão de atuar independentemente do poder estatal, e contar com princípios vocacionados a valorar, completar, desenvolver e, até mesmo, derrogar o Direito estatal. Neste sentido podem- se citar o "direito justo” de Rudolf Stammler, o "descobrimento livre do direito” de Eugen Ehrlich16, as "normas culturais” de Mayer, a "projeção” de Wurzel, a "ponderação dos interesses” de Stampe, ou os "juízos de valor” de Rumelin (Magalhães, 1989:69-70).

Nesta visão, o ordenamento jurídico é algo superior ao Estado, transcendendo-o, constituindo-se em um direito liberto de toda a autoridade positiva, composto, preponderantemente, por concepções predominantes em certos lugar e tempo. Esta idéia de Direito Livre não forma um sistema, assim como, para esta concepção, também não forma o Direito estatal; resultando de diversas épocas culturais e de distintos círculos de vida que se desenvolvem organicamente, tem-se assim conquistada a independência do Estado.

O Direito estatal, este sim, está a depender desta idéia de Direito Livre, o qual lhe constitui a fonte primordial. O influxo desta forma de Direito Livre faz-se sentir no mesmo campo de influência do Direito estatal, sendo o primeiro de todos conhecido, ao passo que o segundo, perversamente, não é de conhecimento geral, senão com base em presunção.

Para a corrente radical da Escola do Direito Livre, a ciência é a fonte primordial do Direito, uma vez que é através desta que o Direito se manifesta. Esta exerce uma função criadora, tal qual a do legislador, não estando a este adstrita. De fato, à ciência não mais cabe o papel servil de porta-voz do legislador. Este é quem deve seguí-la de perto. A ciência desnuda o Direito Livre ao decifrar e aplicar o direito da coletividade, ainda mais quando cria e faz valer os direitos individuais.

Como reflexo direto na jurisprudência, esta não poderia furtar-se a reconhecer e fundar-se na ciência, pois esta a alforriaria da condição de mera serva da lei exatamente por ser dotada de força criadora. Em passagem elucidativa, Maria da Conceição Ferreira Magalhães sintetiza: "E relacionando a Ciência do Direito à jurisprudência assim escreveu Kantorowicz: 'Se a Ciência do Direito reconhece o direito livre, a jurisprudência não pode se fundar somente no direito estatal. Se a ciência jurídica possui força criadora, a jurisprudência não mais será servidora da lei. Se a ciência, em cada momento, leva em conta as lacunas, a prática não poderá resolver juridicamente qualquer suposto. Se a teoria pode admitir valores sentimentais, não se pode exigir sentenças inteiramente fundadas em razões. Se a teoria reconhece o fator individual, a jurisprudência já não pode ser científica'. E conclui nestes termos: 'Os ideais da legalidade, da passividade, do fundamento racional, do caráter científico, de segurança jurídica e da objetividade parecem incompatíveis com o novo movimento'" (1989:70-71).

A professora cearense bem condensa as diretrizes básicas de Kantorowicz neste parágrafo ora transcrito: "Para Kantorowicz todo o progresso de evolução do direito depende, em última análise, da cultura do juiz. Por este motivo propõe, em matéria de interpretação, quatro diretrizes: sendo a jurisdição função do Estado, o juiz é obrigado, por seu juramento, a resolver o caso conforme a lei se o texto dela é unívoco e se sua aplicação não fere os sentimentos da coletividade; o juiz pode e deve prescindir da lei quando ela não lhe oferece solução pacífica insuscetível de ser argüida de injusta, ou quando se convence de que o poder estatal, ante o caso concreto, diria de forma diferente ao estabelecido na lei – nestes casos ó juiz ditará a sentença que, segundo sua convicção, o legislador ditaria se tivesse pensado naquele caso concreto; se o juiz não fosse capaz de formar esta concepção, inspirar-se-ia no direito livre, isto é, no sentimento da coletividade; quando, ainda apelando para o direito livre, não encontra solução, decidirá arbitrariamente. Contra os excessos de subjetividade do juiz, lembra Kantorowicz os remédios jurídicos da multiplicidade niveladora dos magistrados nos tribunais e os recursos contra as decisões judiciais" (Magalhães, 1989:71)17.

Busca-se desta forma a aproximação (senão a concretização) da meta mais alta de toda a juridicidade: a justiça (ou o que por ela se entenda em um dado contexto histórico-social, vez que não se trata de uma definição eterna e objetivamente válida).

Ponto de extrema dificuldade é o de preestabelecer um critério seguro para determinar a partir de quando tornar-se-ia lícito abandonar as normas e criar-se uma nova norma para o caso concreto a ser decidido. Os corifeus desta vertente extremada do Direito Livre não lograram estabelecer tal critério, razão pela qual enfatizaram a necessidade de existir uma magistratura bem escolhida e preparada, composta de homens de valor intelectual. Sem um bom corpo de juízes nenhuma teoria logrará ser bem aplicada. De fato, "na personalidade do juiz está o único perigo do exercício do Direito, mas também na mesma se encerra a garantia real da verdadeira justiça - proclama Ehrlich, o chefe tudesco do grupo moderado" (Maximiliano, 1998:75)18.

Edgar Bodenheim, em esforço para transpor a dificuldade dos corifeus desta corrente, entende que a presente não faculta ao magistrado desvincular-se do dever generalizado de fidelidade à lei. Entretanto, dês que o direito positivo seja obscuro, ambíguo ou pareça que o legislador contemporâneo regularia o caso concreto de outra forma, cabe ao juiz decidir a causa calcado nas concepções de justiça predominantes no momento, ou, em sua ausência (ou indeterminação), de conformidade com sua própria consciência jurídica da qual jamais pode prescindir (apud Magalhães, 1989:72)19.

Uma vez caracterizados em linhas gerais os objetos deste trabalho comparativo, é oportuno, por agora, o confronto de um e outro, de sorte a averiguar se, de fato, o Movimento do Direito Alternativo vem a acrescentar algo de novo no que toca às teorias de interpretação e aplicação do direito ou se porventura vem a ser tão-somente uma desautorizada cópia de teorias que lhe precederam.

Dificuldade que não pode ser empecilho é o fato de o Direito Alternativo não possuir ainda um conceito formulado. Não que isto não represente dificuldade extrema - possível causa de alguma imprecisão da análise que se pretende realizar. Mas é de se crer poder ser tal óbice superado (ou reduzido) pela observação atenta dos objetivos a que se propõe referido movimento. Contudo, pode-se dizer desde já que, enquanto este movimento não puder definir-se, prestar-se-á a albergar toda sorte de devaneios, em franco prejuízo de sua respeitabilidade.

Diga-se ainda que nem de longe se está a propor a busca de uma identificação vernacular perfeita, mas sim, mediante um processo de abstração teórica, constatar se as linhas mestras de ambos os objetos coincidem ou se diferenciam.

Pois bem, isto posto, inicie-se o labor comparativo.

Uma das primeiras notas que, como visto, se sobressai da configuração do Movimento do Direito Alternativo é a referente ao pluralismo das fontes do Direito. Abandonar-se-ia a idéia do Estado como único produtor de normas jurídicas, reconhecendo-se outras instituições e fatos como igualmente geradores de normas jurídicas. De logo surge uma dificuldade já apontada. Para alguns, este pluralismo só teria caráter complementar do Direito estatal, ao passo que para outros este pluralismo seria dotado de força derrogatória do Direito estatal. Ora, se bem se observar a exposição supra, ver-se-á que esta segunda concepção de pluralismo (pluralismo derrogador) corresponde à idéia dos extremados da Escola do Direito Livre, ao passo que a primeira concepção (pluralismo subsidiário, coexistente ao Direito estatal) corresponde à ideologia da vertente moderada da Escola do Direito Livre20. Neste passo, portanto, tem-se perfeita identidade.

Outro traço que se pretende característico do, Movimento do Direito Alternativo é o de viabilizar a concretude e efetividade das normas do Direito Positivo que provém em benefício dos mais necessitados, de sorte a ter, assim, um caráter eminentemente social. Novamente, se bem observar-se, a gênese da Escola do Direito Livre deu-se como forma de evolução sanatória das falhas observadas na Escola Histórico-Evolutiva, a qual já era, em seu bojo, eminentemente social, o que fez esta nota embeber todas as correntes da Escola do Direito Livre, desde os seus precursores aos seus expoentes mais arrebatados. Vê-se então que, em mais este traço, não há sensível distinção entre ambos os objetos desta análise comparativa.

Cabe analisar ainda e especialmente alguns traços que aos mais incautos poderiam parecer estandartes indiscutíveis do Movimento do Direito Alternativo sem correlatos na Escola do Direito Livre em quaisquer de suas vertentes. Estas notas são: o ideal de concretude da democracia e das normas constitucionais.

De fato, a Escola do Direito Livre não se ocupou especificamente destes pontos. Entretanto não é demais observarmos que esta escola é oriunda do Direito Privado e, nada obstante seu berço, tratou de maneira genérica temas e situações tanto de Direito Privado como de Direito Público. A problemática referente à efetividade das normas constitucionais ainda estava em fase muito incipiente nos países que observaram a ocorrência prática mais vigorosa da Escola do Direito Livre, o que bem explica a ausência de um trato mais específico destas questões mais afeitas ao direito público.

Vê-se então um traço de distinção entre um e outro objetos. Contudo não se pode aceitar a busca da efetivação das normas constitucionais como traço caracteristicamente peculiar ao Movimento do Direito Alternativo, uma vez que desde o célebre caso Marbury versus Madison, julgado pelo lendário juiz Marshall, instaurou-se a controvérsia acerca da efetividade das normas constitucionais. O mesmo se dá com o traço da busca pela democracia, busca esta peculiar a vários e vários movimentos anteriores ao do Direito Alternativo, desde a estruturação do período pós-revolucionário francês até os dias de hoje. Assim, no que diz com estes traços, observamos uma justaposição de algumas teorias (já existentes) aos traços básicos da Escola do Direito Livre.

Observa-se então que o traço mais próprio do Movimento do Direi- to Alternativo seja o anelo por desenvolver seu pretenso conteúdo neomarxista na busca de uma sociedade socialista, eis que a Escola do Direi- to Livre sempre aproximou-se mais do sociologismo. Novamente vê-se que o Movimento do Direito Alternativo mostra-se incapaz de prestar um contributo particularmente seu. Mais parece que dito movimento, ab ovo, não passa de uma verdadeira "colcha de retalhos" de teorias, nem sempre honradas com o grato tributo da lembrança, como é o caso da Escola do Direito Livre. Como já se assinalou alhures, é de ver-se, ainda, que a pretensa isenção ideológica da Teoria Crítica - que serve de motor ao Movimento do Direito Alternativo - encontra-se inexoravelmente impregnada com a ideologia neomarxista, o que já vicia por completo a sua "isenção".

Por fim, cumpre asseverar que, nada obstante engendrem-se teorias e teorias com vistas à, em última análise, realização do bem comum, todas elas terão o mesmo destino se não houver devidamente consolidada uma magistratura digna da função que exerce, eis que, no plano das idéias, tem-se as mais maravilhosas possíveis (e a inventividade humana não lhes deixa desatualizarem-se ou perecerem infrutíferas), entretanto só com um corpo de julgadores dispostos a utilizá-las é que se terá dado o passo definitivo para a construção de uma sociedade mais justa, mais democrática e mais humana. E é precisamente nesta disposição dos julgadores que reside o ponto axial da concretização de toda teoria e o qual está fora do alcance de todas elas. Esta consciência judicante há de plasmar-se com ímpeto, com gênio, com cultura, mas tão somente a partir da própria vontade21.

Bem andou o ilustre professor José. de Albuquerque Rocha (1995:43 e 49) quando apontou, corajosamente, a estrutura administrativa escalonada e autocrática do Poder Judiciário como empecilho à independência real do magistrado no exercício de suas funções. Como já visto "na personalidade do juiz está o único perigo do exercício do Direito, mas também na mesma se encerra a garantia real da verdadeira justiça" (Maximiliano, 1998:75). Como se pode ter independência se, não raro, a carreira depende de submissão às diretrizes traçadas pelo ápice da estrutura piramidal? Neste caso, muitos magistrados arrefecem seus ânimos e continuam a proceder de forma conservadora ainda quando assim não desejam. A personalidade do magistrado, como visto, prepondera; se for homem pronto para o embate, com isto não se amedrontará. Ocorre que nem todos são dados ao combate...

Assim consignam-se nestas breves linhas, que já conduzem para longe do objetivo inicial deste trabalho, a necessidade premente de repensar-se a estrutura interna do Poder Judiciário e seus reflexos sobre a independência funcional do magistrado, o que não cabe neste singelo opúsculo.

BIBLIOGRAFIA

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1 - Veja-se, a respeito: Buzzi, 1994: 165.

2 - Por "emancipadora", dentro da ideologia da Teoria Crítica (que abrangeria a "Teoria Crítica do Direito" - se é que isto existe), entenda-se a superação da condição humana de alienação, a reconciliação do homem com a natureza não-repressora e com o processo histórico por ele moldado, enfim, retirada do homem de um estado de "reificação", sem que se esteja vinculado a um único modelo político (verbi gratia o socialismo).

3 - Alguns vêem neste ponto (a "opção. prática e não apenas retórica pelos pobres") uma das notas inovadoras do Direito Alternativo em relação aos demais movimentos críticos.

4 - Percebe-se aqui a influência do pensamento neomarxista contemporâneo, que busca exatamente explorar as fissuras, antinomias e contradições da ordem jurídica burguesa.

5- É imperioso observar que um tal posicionamento nega o intento professado por Amilton Bueno de Carvalho de aproveitamento do ordenamento jurídico vigente, tendo-se o pluralismo como força revogatória deste. Mostra-se assim apenas uma, das graves contradições intrínsecas do movimento. De fato, a incerteza primária acerca de ser ou não ser o pluralismo jurídico defendido capaz de revogar as normas estatais, já em muito descredencia o movimento, por não ser este capaz de determinar a sua própria ambição. Diga-se ainda que não é desconhecido o fato de que ao Estado (União) compete realizar a Reforma Agrária e implementar uma Política Agrícola. Contudo, se há ilicitudes no curso dos procedimentos para tanto, que sejam estas apuradas e os responsáveis punidos. O que não se pode mais suportar é que a cada desserviço público prestado se intente cogitar de um golpe de Estado, da subversão da ordem jurídica. Com efeito, uma situação similar deu origem ao golpe de 1964. Não mais se pode permitir acreditarmos que o mundo em que vivemos possa existir com absoluta indiferença, verdadeira independência de nós (enquanto indivíduos e enquanto corpo social), sem que em nada possamos nele influir (a respeito desta última idéia veja-se: Vasconcelos, 1998:14).

6 - E oportuno, por agora, anotar-se que se nega a inicial isenção ideológica (ou, como queiram, a livre franquia às mais várias ideologias) da "Teoria Crítica", visto que a "Teoria Crítica do Direito" (se é que existe) move-se impregnada e de acordo com a ideologia neomarxista, mal ocultando também seus momentos de saudosismo socialista.

7 - É de ver-se que a dialética não constituí a substância da realidade ou dos pensamentos, senão que, apenas, uma forma de apresentá-los, forma esta que não é objetivamente válida, senão que se presta a refutações. Uma análise por demais interessante da dialética pode ser" vista em: Popper, 1982:343-365.

8 - Vale ressaltar que para Carlos Maximiliano (ob. cit.) a teoria extrema de Kantorowicz não estaria sob o título de Direito Livre, senão sob a significativa denominação de Contra Legem.

9 - No sentido desta distinção vejam-se as obras de Alípio Silveira: Hermenêutica Jurídica - Seus Princípios Fundamentais no Direito Brasileiro; e de Maria da Conceição Ferreira Magalhães:A Hermenêutica Jurídica.

10 - Desta são: Stampe, Bekker, Kohler, Steinbach, Wundt, Danz e o próprio Gény (vide Magalhães, 1989:72). Deve-se consignar, por um motivo de honestidade científica, que, para alguns, Gény não pertenceria a esta primeira fase, mas tão somente à segunda, e a teoria em questão haveria sido iniciada pelo alemão Eugen Ehrlich. Contudo, outros autores, do porte de Paulino Jacques entendem a teoria de Gény como eclética. Com efeito, é de Paulino Jacques a definição do gênio de Gény como: "as dimensões de seu talento e as profundezas de sua cultura foram tamanhas que Gény não cabia dentro de uma só escola, invadindo o seu espírito criador o domínio de outras, para se colocar, como verdadeiro arco-íris do pensamento filosófico-jurídico, acima de todas elas" (Jacques, Paulino. Do Conceito de Direito, p. 142, apud Magalhães, 1989:61).

11 - Desta são: Zitelmann, Mayer, Radbruch, Wurzel, Sternberg (vide Magalhães, 1989:72).

12 - A Autoridade nada mais é do que as opiniões e soluções dadas por pessoas ou corporações competentes, cuja coerência sirva de paradigma para a decisão judicial. Assim são a Jurisprudência e a Doutrina. Uma vez revestidas estas de "certa auréola de prestígio e veneração por sua antigüidade, Gény chama-as Tradição. A diferença entre Autoridade e Tradição reside tão- somente na duração" (vide Magalhães, 1989:58). 13 - O que, como visto, não é verdade, pois o mestre francês inaugura um pluralismo racional, o qual combina as mais avançadas técnicas de hermenêutica à pluralidade de fontes do ordenamento jurídico de forma a atender-se aos reclamos da sociedade.

13 - O que, como visto, não é verdade, pois o mestre francês inaugura um pluralismo racional, o qual combina as mais avançadas técnicas de hermenêutica à pluralidade de fontes do ordenamento jurídico de forma a atender-se aos reclamos da sociedade.

14 - Vide Magalhães, 1989:69.

15 - "Gnaeus Flavius foi o Callidus vir et facundus (varão eloqüente e hábil) do IV século antes de Cristo; atingiu, em Roma, às mais altas honras, e revelou o jus civile repositum in penetralibus pontificium ut quomodo lege agi possit sciretur (‘o Direito Civil guardado nos recintos pontificiais, a fim de que se pudesse saber como agir em observância da lei)", Maximiliano, 1998:73, nota 1.

16 - Vale registrar que Ehrlich iniciou seu trato como entusiasta de pensamento um tanto similar ao de Gény, indo logo mais além, achegando-se então do pensamento de Kantorowicz. Um dos fatos preponderantes para esta distinção foi o de a codificação haver surgido cedo e com força na França de sorte a obrigar a jurisprudência vivificadora dos preceitos codificados a socorrer-se de subterfúgios para fazê-lo, ao passo que na Alemanha, o Código Civil só veio a existir bem depois do francês, permitindo aos juizes tudescos consolidar com maior segurança um poder de decisão judicial.

17 - Ainda assim não se entremostram tais remédios capazes de deter com eficácia adequada urna decisão arbitrária e virulenta prolatada em um caso concreto. Ora, basta contemplar a morosidade do judiciário brasileiro na apreciação de recursos para se ter uma noção do quanto seria temerário adotar-se, por estas plagas a versão "ultra-adiantada" da Escola do Direito livre. De fato, a mais salutar ainda parece ser a vertente moderada da Escola do Direito Livre (ou Livre Pesquisa do Direito, como queiram).

18 - Consigne-se ainda que "os mais diversos autores da Escola do Direito Livre (Emest Fuchs, Eugen Ehrlich, Hermann Kantorowicz, Rumpf) destacaram ser o juiz mais importante do que a lei, dependendo a boa administração da justiça, fundamentalmente, das condições de personalidade, competência e cultura dos magistrados". (Herkenhoff, 1997:57).

19 - Mesmo um tal esboço de controle desta atividade parece ser insuficiente para ministrar a segurança jurídica pretendida pelo corpo social. Registre-se ainda que para Carlos Maximiliano "A escola ultra-adiantada liberta de todo o limite ou critério objetivo o aplicador do Direito, o que parece perigosíssimo e destoante da concepção do Estado moderno, sobretudo inconciliável com o regime de freios e contrapesos adotado pelo Brasil, Estados Unidos e República Argentina” (1998:76).

20 - Esclareça-se ainda que dentro desta adoção do pluralismo, tanto um como outro objetos desta análise adotam a bandeira do combate ao "positivismo legalista", ao "fetichismo da lei” etc.

21 - Vontade esta que, não raro, encontra nos clamores da opinião pública o fermento que a faz crescer e o combustível para alimentá-la