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LEI 8.935/94 E A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES
RICARDO
CUNHA PORTO
Juiz
de Direito | Ex-Procurador do Município de Fortaleza
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre tema
polêmico, posto que intrinsecamente ligado ao exercício de direitos
constitucionalmente assegurados pela Lei maior e normatizados pela Lei n°
8.935/ 94, qual seja, a responsabilidade civil dos Notários e Registradores.
Embora os serviços notariais sejam exercidos em caráter privado,
decorrem de delegação do Poder Público, e é irrefutável a sua presença no
cotidiano do cidadão comum, seja para a simples lavratura de um assento de nascimento,
seja para lavratura de uma escritura pública de transferência de propriedade de
alto valor financeiro, razão pela qual essa atividade caracteriza-se como
pública por excelência, fazendo com que o tema sobre a responsabilidade civil
dos que a exercem seja de alta relevância.
Por tratar-se de enfoque sobre lei relativamente nova que rege a
matéria, procuramos, ainda que sumariamente, incursionar a respeito dos
diversos tópicos necessários ao desenlace do tema, cujo nascedouro é o artigo
236 da Constituição Federal, passando pelo enquadramento dos Notários e
Registradores como agentes públicos, a responsabilidade objetiva do Estado e,
finalmente, a responsabilidade objetiva de tais agentes do Poder Público.
2. OS NOTÁRIOS E REGISTRADORES NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
Até o advento da Constituição de 1988, os titulares e funcionários
das serventias extrajudiciais, ou seja, dos Cartórios de Notas, Registro de
Imóveis, Registro de Títulos e Documentos, Protestos e Registro Civil de
Pessoas Naturais eram considerados, pela doutrina e por nossos Pretórios,
servidores públicos.
No bojo da classe dos servidores públicos, encontra-se o grupo dos
serventuários, distinguindo-se dos funcionários públicos. Uns e outros são
investidos em cargos criados por lei, porém, enquanto estes percebem
vencimentos dos cofres públicos, aqueles podem, conforme a lei local que os
reger, e quando não percebam vencimentos como os funcionários públicos em
geral, auferir pagamento pelos serviços que prestam, por meio de custas e emolumentos.
O serventuário é órgão indireto do Estado, por tratar-se de órgão
privado no exercício de função pública, remunerado pelas partes ou
interessados, ao invés de o ser pelo Estado, como acontece com o que é
funcionário.
O artigo 236 do ordenamento constitucional vigente previu a
regulamentação das atividades dos Notários, Oficiais do Registro e seus
prepostos, deixando para a lei infraconstitucional regulamentadora pouco a
normatizar, haja visto os parâmetros constitucionalmente prefixados.
Extrai-se do preceito constitucional alguns aspectos bastante
claros, quais sejam: os serviços notariais e de registro têm natureza pública;
tais serviços serão exercidos em caráter privado, porém por delegação do Poder
Público, com fiscalização dos seus atos pelo Poder Judiciário; o ingresso na
serventia pressupõe prévio concurso publico de provas
e títulos.
Mesmo antes da edição da Lei 8.935/94, Por força do disposto no
artigo 236 da Constituição Federal, já se podia afirmar que o titular da
serventia extrajudicial continuaria sendo servidor público, posto que só se
exige concurso público para admissão de servidor com esta qualidade.
Porém, com a edição da lei infraconstitucional regulamentadora do
artigo 236 já citado, passou se a entender que os funcionários dos cartórios
extrajudiciais, bem como seus titulares, não mais apresentavam sua condição
anterior de servidores públicos. E mais, vem-se interpretando o regulamento no
sentido de ter consagrado a responsabilidade objetiva dos Notários e Registradores
pelos danos que eles e seus prepostos causarem a terceiros. Interpretação
equivocada.
Tal interpretação advém de açodada exegese do artigo 22 da lei n°
8.935/94 que diz:
Os Notários e Oficiais de Registro responderão pelos danos que
eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da
serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou
culpa dos prepostos.
De fato o ato notarial ou ato registral, quando praticado irregularmente pode
acarretar dano a alguém. Essa irregularidade pode ser do próprio titular da
serventia ou de um de seus prepostos.
Todavia, na apuração do dano há de se perquirir se o Notário ou o Oficial de
Registro agiu com culpa ou com dolo, sob pena de contrariar, direta e
frontalmente, o artigo 37, § 6° da Constituição Federal, como se demonstrará
adiante.
3. AGENTE PÚBLICO: CONCEITO
São da lavra do insigne jurista CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO,
os seguintes ensinamentos:
Todos aqueles que servem ao Poder Público, na qualidade de
sujeitos expressivos de sua ação, podem ser denominados agentes públicos. Com
efeito, esta locução é a mais ampla e compreensiva que se pode adotar para
referir englobadamente as diversas categorias dos
que, sob títulos jurídicos diferentes, atuam em nome do Estado. 1Z
O que é importante demonstrar é o alcance do significado desta expressão:
agente público, que é o elemento subjetivo do órgão público, vale dizer, o seu
titular, que, dada a diferença de natureza das competências e atribuições a ele
cometidas, se distinguem em agentes políticos e agentes administrativos.
Observe-se que a Constituição foi mais técnica desta vez, seja por incluir no
campo da responsabilidade objetiva todas as pessoas que operam serviços
públicos, seja por ter abandonado o termo "funcionário" que não
exprimia adequadamente o sentido da norma, substituída agora, pelo termo
preciso "agente".
Assim sendo, é evidente que, embora os funcionários públicos
constituam uma das mais importantes categorias de agentes públicos, não são os
únicos, mas apenas uma espécie dentro da variedade tipológica de pessoas que
servem de veículo de expressão de atribuições estatais.
Portanto, agente público tanto será o servidor público típico,
nomeado em caráter efetivo, com o atributo da estabilidade, após concurso
público, bem como o funcionário admitido em caráter precário, ocupando cargo,
emprego ou função pública, ou o funcionário público por equiparação.
Inclui-se, ainda, nesse conceito, a pessoa física ou jurídica que
pratica atos ou exerce atividade pública por delegação do Estado.
Segundo disposição expressa da Constituição Federal, como já
vimos, os serviços Notariais e de Registro são exercidos em caráter privado,
contudo por delegação do Poder Público. O Notário executa serviço público de
características especiais, sob o amálgama de função pública, tanto que o
serventuário é investido no cargo público em caráter permanente, cargo esse
criado por lei, com denominação própria.
A serventia é regulada por lei, com atividade sujeita à hierarquia
administrativa e fiscalização do Poder Judiciário e o acesso aos cargos depende
de concurso público.
Assim sendo, embora desempenhem, por delegação do Estado,
atividades de caráter privado, os Notários e Registradores, guardam, a
qualificação de servidores públicos, inclusive, os emolumentos e custas têm o
crivo de receita pública, bem como a eles aplicam-se as disposições do artigo
40, inciso II, da CF/88 (aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade).
Por fim, em recente decisão, o STF pôs uma pá de cal na polêmica,
ao decidir que os Notários e Registradores caracterizam-se, efetivamente, como
servidores públicos.
Assentada essa premissa e demonstrado que esses serventuários são
típicos agentes públicos, cabe analisar, agora, a sua responsabilidade quando
causem prejuízo a terceiros.
4. A RESPONSABILIDADE DIRETA DO ESTADO E O DIREITO DE REGRESSO EM
RELAÇÃO AOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES PÚBLICOS
O artigo 22 da Lei 8.935/94 estabelece que os Notários e Oficiais
de Registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causarem a
terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros,
direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos.
Em face do que expressa o dispositivo supracitado, vem-se
extraindo daquela regra a exegese de que a lei infraconstitucional adotou a
teoria da responsabilidade objetiva dos Notários e Oficiais de Registro,
interpretação esta, com a qual não concordamos.
Por força do artigo 37, parágrafo 6°, da CF/88, a obrigação de
indenizar é da pessoa jurídica a quem pertencer o agente. O prejudicado a que
mover a ação de indenização contra a Fazenda Pública respectiva ou contra a
pessoa jurídica privada prestadora de serviço público, não contra o agente
causador do dano.
É o princípio da impessoalidade aqui aplicado.
Em verdade, a responsabilidade do serviço público se constitui
puma responsabilidade primária, vinculando o patrimônio da administração,
imediata e diretamente, à reparação do dano; desaparece a dualidade de pessoas,
absorvida a pessoa física do funcionário pelo ente administrativo; a falta do
serviço público não é mais necessariamente ligada à idéia
de falta de um agente determinado, bastando para a responsabilidade um mau
funcionamento geral, anônimo, uma falha do serviço, à qual o dano possa ser
imputável.
A Constituição Federal, no referido parágrafo 6°, do amigo 37,
adotou a teoria da responsabilidade direta e objetiva do Estado, pelos danos
que seus agentes causarem a terceiros. Preceitua tal dispositivo.que
"as pessoas jurídicas de direito público" e, inovando a matéria em
relação às Cartas anteriores, "as pessoas de direito privado prestadoras
de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade,
causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável,
nos casos de Bolo ou culpa".
No plano da teoria geral do direito, o conceito de
responsabilidade objetiva está longe de uma definição precisa, contudo, de uma
maneira geral, quer ela expressar que para a sua configuração basta o simples
nexo de causalidade material, eliminada a perquirição de qualquer elemento
psíquico ou volitivo.
Entretanto, entre nós prevalece a chamada teoria do risco
administrativo, espécie intermediária do gênero responsabilidade objetiva que,
embora dispense a prova da culpa da Administração, permite que o Poder Público
demonstre a culpa da vítima para excluir ou atenuar a indenização.
Consagrou com isso, o nosso Ordenamento Constitucional, princípio
que não pode ser modificado, afastado ou contrariado por lei infraconstitucional.
Prova disso é que o agente diretamente responsável pelo ato lesivo
responde através do exercício do direito de regresso por parte do Poder
Público, e, mesmo assim, apenas no caso de dolo ou culpa.
Nesse particular seguimos a orientação também do professor Celso
Antônio Bandeira de Mello que, contrariamente ao saudoso Hely Lopes Meirelles,
sustenta que o lesado pode mover a ação de indenização diretamente contra o
agente causador do dano, prescindindo de responsabilizar o Estado ou quem lhe faça
as vezes, caso em que estaria disputando a lide apenas no campo da
responsabilidade subjetiva, mediante a aquilatação da
configuração da hipótese de dolo ou culpa.
Assim sendo, não pode a lei ordinária responsabilizar diretamente
o agente público imputando-lhe responsabilidade objetiva, posto que, ademais de
contrariar texto expresso da Constituição, nega-lhe vigência, sendo
inconstitucional.
Não se pode relevar que a adoção da teoria subjetiva exigida para
a responsabilização do preposto, pela via de ação regressiva, exsurge como
garantia constitucional, de modo que a lei inferior, não pode impor-lhe gravame
maior do que a lei magna estabeleceu.
5. APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA AOS, SERVENTUÁRIOS:
OFENSA AO PRINCÍPIO DA ISONOMIA
Assentado está que todos os servidores públicos ou agentes
públicos típicos, por equiparação, ou particulares exercendo atividade pública
delegada pelo Estado, só respondem em face da culpa aquiliana, pelo que não
seria possível impor a responsabilidade objetiva a apenas um segmento da
atividade do Estado, ou seja, os Notários e Registradores.
Em tal ocorrendo, torna-se indiscutível a discriminação efetivada
pela lei infraconstitucional, com ofensa ao princípio da isonomia.
Em síntese, a lei não pode conceder tratamento específico,
vantajoso ou desvantajoso, em atenção a traço e circunstâncias peculiarizadoras de uma categoria de indivíduos, se não
houver adequação racional entre o elemento diferencial e o regime dispensado
aos que se inserem na categoria diferençada.
Convincente e definidora é a lição de JOSÉ AFONSO DA SILUA, a
propósito de vedação constitucional à discriminação, como se nota a seguir:
São inconstitucionais as discriminações não autorizadas pela
Constituição. O ato discriminatório é inconstitucional. Há duas formas de
cometer esta inconstitucionalidade. Uma consiste em outorgar o benefício
legítimo a pessoas ou grupos, discriminando-os favoravelmente, em detrimento de
outras pessoas ou grupos em igual situação. Neste caso, não se estendeu às pessoas
ou grupos discriminados o mesmo tratamento dado aos outros. O ato é
inconstitucional, sem dúvida, porque feriu o princípio da isonomia.
Mais à frente complementa:
A outra forma de inconstitucionalidade revela-se em se impor
obrigação, dever, ônus, sanção ou qualquer sacrifício a pessoas ou grupos de
pessoas, discriminando-as em face de outros na mesma situação que, assim,
permaneceram em condições mais favoráveis. O ato é inconstitucional por fazer
discriminação não autorizada entre pessoas em situação de igualdade. 2
6. CONCLUSÃO
Conclui-se pois, que a Lei 8.935/94, trouxe em seu bojo o princípio da
responsabilidade subjetiva ou com culpa dos agentes da administração pública,
quando, nessa qualidade, causarem danos a terceiros, harmonizando-se com a Lei
maior que a precede, como não poderia deixar de ser, sob pena de, em assim
procedendo, incorrer em inconstitucionalidade.
Portanto, com base no que foi acima exposto, podemos assim
concluir:
a) Os Notários a Registradores,
titulares de serventias extrajudiciais, sob a vigência da Lei 8.935/94, devem
ser considerados "agentes públicos", equiparados, pois, aos
servidores públicos típicos;
b) O Poder Público responderá objetivamente pelos danos que os
titulares das serventias extrajudiciais, enumerados no artigo 5°, da Lei
8.935/94, ou seus prepostos, nessa qualidade, causarem a terceiros;
c) Nos termos do artigo 22 dessa Lei, a do parágrafo 6°, do artigo
37, da Constituição Federal, os Notários e Registradores responderão, por via
de regresso, perante o Poder Público, pelos danos que eles a seu prepostos
causarem a terceiros, nos casos de dolo ou culpa, assegurando-se-lhes
o direito de ação regressiva em face do funcionário que diretamente causou o
prejuízo;
d) Nada impede, contudo, que o prejudicado ajuíze a ação
diretamente contra o titular do cartório, desde que se disponha a provar-lhe a
culpa (lato sensu), posto que, contra o Estado, tal
seria dispensado, bastando a demonstração do nexo de causalidade e do dano.
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