CONCESSÃO DE SERVIÇO PÚBLICO: REVERSÃO DOS BENS ENCAMPAÇÃO (OU RESGATE) E CADUCIDADE

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO

Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Católica de São Paulo

SUMÁRIO:
I - Conceito e objetivos da concessão
II - Direitos recíprocos do concedente e do concessionário;
III - Encampação (ou Resgate) e Caducidade: Conceitos;
IV - A Reversão dos bens;
V - Composição patrimonial no encerramento da concessão.

I - CONCEITOS E OBJETIVOS DA CONCESSÃO

1. Pela concessão de serviço público, como é sabido e ressabido, instaura-se uma relação jurídica complexa, através da qual o Estado atribui a alguém o exercício de um serviço público e este, sob a garantia de um equilíbrio econômico- financeiro, aceita prestá-lo, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, em nome de quem atuará conquanto o faça a suas expensas, por sua própria conta e riscos, renumerando-se mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários.

Percebe-se que, por meio dela, o Poder Público almeja propiciar à coletividade o desfrute do melhor serviço possível, sem onerar-se com os dispêndios aí envolvidos e, ademais, liberto dos encargos inerentes à sua execução, mas conservando a senhoria que lhe permite impor, a todo tempo, quaisquer determinações necessárias para garantir plenamente as conveniências públicas. Daí haver dito BONNARD, em expressão feliz, que o concedente se reserva, à vista da organização e do funcionamento do serviço, um poder tão acentuado que se caracteriza como autêntica "mainmise" sobre ele (ROGER BONNARD - Précis de Droit Administratit, 2ª ed., 1935, pag. 547. No mesmo sentido GASTON JEZE (Princípios Generales del Derecho Adrninistrativo, vol. II, torno I, 1949, trad. argentina da 3ª ed. francesa (1930), pag. 73).

Diversamente, o que o concessionário aspira é realizar um negócio economicamente proveitoso e por isso aceita 'travar o vínculo colocando-se sob a égide do concednte no que concerne aos aspectos referidos, pois o que lhe importa é a aplicação de seu capital em um empreendimento do qual extrairá um lucro, amparado na garantia de uma equação ou equilíbrio econômico-financeiro. Este, conforme o define MARCEL WALINE".,. é uma relação que foi estabelecia pelas próprias partes contratantes no momento da conclusão do contrato, entre um conjunto de direitos do contratado e um conjunto de encargos deste, que pareceram equivalentes, donde o nome de equação; desde então esta equivalência não mais pode ser alterada" (Droit Administratif, Sirey, 5ª ed., 1963, pag. 618).

2. GUIDO ZANOBINI anotou que "em relação ao sujeito privado, o fim que este se propõe no exercício da função pública, é distinto da finalidade estatal a que tal função prevê porque é um fim privado, normalmente uma finalidade de lucro. Pode-se, assim dizer que o serviço público ou a função pública servem ao particular como um meio para alcançar esta sua finalidade pessoal" (Corso di Diritto Administrativo, CEDAM, 1944, vol. I, pag. 139).

Com efeito, para o concessionário a prestação do serviço é, um meio através do qual obtém a finalidade que almeja: o Lucro. Reversamente, para o Estado, o lucro, que propicia ao concessionário, é meio por cuja via busca sua finalidade, que é a boa prestação do serviço (cf. nosso Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta, Ed. Rev. dos Tribunais, 2ª, 1983, pa:g 37). O regime da concessão procede da lógica da situação instaurada nestes termos.

II - PODERES DO CONCEDENTE E DIREITOS DO CONCESSIONÁRIO

3. A cada qual assistem as garantias necessárias à satisfação dos desideratos que os animaram, pois ambas se conjugam e entrelaçam perfeitamente.

Donde, ao concedente pertencem todos os poderes necessários à satisfação dos objetivos pelos quais outorgou o serviço em concessão. Daí que pode dispor livremente sobre as condições de prestação do serviço e alterá-las na conformidade das exigências do interesse público. Outrossim, para bem atendê-las, em sendo conveniente ou indeclinável, pode ou deve retomar o serviço. Ao concessionário, de outra parte, caberão, correlatamente, todas as garantias atinentes à mantença do equilíbrio econômico financeiro avençado, de sorte a que tenha possibilidade de extrair daquele negócio o proveito econômico que o levou a engajar-se nele.

É natural que o sobredito equilíbrio ajustado tenha de ser respeitado, valendo aqui, integralmente, as observações de GEORGES PEQUIGNOT, em obra clássica, atinente aos contratos administrativos. Referindo-se ao contratado, averbou: "Ele não consentiu seu concurso senão na esperança de um certo lucro. Aceitou tomar a seu cargo trabalhos e áleas que, se não houvesse querido contratar, seriam suportados pela Administração. É normal que seja remunerado por isto” (Théorie Générale du Contract Administratif, A. Pedone, 1945, pag. 434)'

III - ENCAMPAÇÃO (OU RESGATE) E, CADUCIDADE: CONCEITOS

4. As concessões de serviço público, como é notório, tanto podem se extinguir pela normal expiração do prazo, quanto prematuramente. em decorrência de distintas causas. Dentre estas últimas, avultam a encampação (ou resgate) e a caducidade.
Na encampação, o Poder concedente retoma o serviço por razões meramente de conveniência ou oportunidade administrativa, sem que o concessionário haja incorrido em faltas que suscitassem tal providência.
Na caducidade, pelo contrário, a razão determinante vem a ser precisamente a inadimplência grave do concessionário, ou seja, a prática de comportamentos positivos ou omissões faltosas cujo relevo demanda que o concedente lhe retire a concessão outorgada.

Tanto em um quanto em outro caso propõem-se, como é natural, duas questões, aliás, interligadas, que irrompem em qualquer encerramento de concessão. A saber: (a) uma concerne ao destino dos bens aplicados ao serviço, isto é, que lhe integram o acervo e outra (b) respeita a composição patrimonial entre concedente e concessionário, mormente se o sobredito acervo, aportado por este último, deva persistir aplicado ao serviço em questão; portanto, em poder do concedente.

Consideremos o primeiro destes tópicos; recordando desde logo, algumas noções de extrema singeleza, até mesmo óbvias, mas que jamais podem ser deslembradas, pois fornecem elementos indispensáveis à adequada impostação e subseqüente resolução dos problemas ligados ao tema do destino dos bens afetados ao serviço e ao da composição patrimonial cabível quando do encerramento do vínculo entre estas partes.

V - A REVERSÃO DOS BENS

5. Em grande número de concessões de serviço público, mas não em todas, os bens que devem ser aplicados ao serviço e que a ele se aplicam, persistem indispensáveis a sua continuidade, mesmo após o encerramento da concessão. É que não só teria como substituí-los incontinenti, por não serem fácil ou agilmente instaláveis ou preponíveis a tal destino. Isto ocorre, sobreposse, quando o serviço tem como suporte material bens implantados no solo, edificações, maquinaria de grande porte ou implementos de préstimo transcendente para o serviço, mas carentes, total ou parcialmente, de significação econômica quando dele desligados, como ocorre, "verbi gratia”, com linhas de transmissão de energia, locomotivas, vagões etc.

Justamente por isto, para o concedente são indispensáveis e para o concessionário ou não mais apresentariam sequer a possibilidade de utilização ou careceriam de serventia relevante. Sobre mais, nem mesmo teriam expressão econômica compatível com o elevado custo que representaram. De toda sorte, na melhor das hipóteses, tornar-se-iam economicamente insignificantes para o concessionário, se comparados com o dispêndio em que incorreu para aplicá-los ao serviço. Em casos desta ordem - e que, por certo, retratam a compostura da maioria das concessões de serviço público - a solução óbvia, quando do encerramento do liame e seja qual for a razão que o tenha determinado, será, evidentemente, a persistência do atrelamento dos sobreditos bens ao serviço publico. Em suma: o concedente não poderia abrir mão deles. Teria interesses absolutos em retê-los, por indeclinável imposição das necessidades públicas. De revés, ao concessionário faleceriam razões para pretender conservá-los. Esta passagem definitiva do acervo para o concedente, ao cabo da concessão, denomina-se “reversão".

6. Compreende-se, pois, que a lógica, nestes termos composta, indica a, possibilidade de perfeito atendimento de conveniências de ambas as partes, o que é, aliás, a desembocadura Ideal de reações jurídicas surtidas a partir de um elemento consensual. A lógica indica também, com a mesma força de compulsão racional, que, se ao cabo da concessão, o concessionário não houver amortizado integralmente o capital que investiu, mediante percepção das tarifas fixadas pelo concedente e cobradas pelo concessionário dos usuários (mais eventuais subsídios que o Poder Público lhe haja aportado), a solução indicada implicaria deixá-lo a descoberto, a menos que lhe fosse versado o "quantum" correspondente ao valor ainda pendente de amortização.

Tal pagamento, então será de rigor, consistindo na contrapartida da assunção dos bens pelo Estado. Deveras, em situações deste jaez, o concessionário, ao invés de retirar-se com o acervo representativo de capital que aportou, deixa-o em mãos do concedente. Cumpre, pois, que seja acobertado por isto. De resto, a ser de outro modo, ninguém em seu juízo perfeito, se abalancaria a imaginar que existissem pessoas ou empresas dispostas a engajar-se, em vínculo de tal ordem. Seria, evidentemente, um negócio desastroso aquele em que alguém, aplicando recursos próprios para obter uma remuneração pelo investimento feito, ficasse, ao final, despojado total ou parcialmente do capital investido. Sairia, evidentemente, empobrecido se não houvesse podido sequer recuperá-lo ao cabo do empreendimento.

7. Em outros casos, todavia, não se reproduz o quadro dantes descrito. Em uma concessão de linhas de ônibus, por exemplo, não há dificuldade alguma, em substituir de imediato os veículos que a ela estivessem afetados, por outros, trazidos pelo novo concessionário ou adquiridos pelo Poder Público, se este pretendesse assumir diretamente o serviço ou fazê-lo mediante empresa estatal. Por outro lado, o encerramento de uma concessão deste gênero nem suprime, nem deprime, a serventia ou o significado econômico que os sobreditos bens podem proporcionar ao antigo concessionário.

Descaberia, então, presumir um relevante interesse do concedente em conservá-los vinculados ao serviço (com o conseqüente e desnecessário encarecimento das tarifas), tanto como seria incorreto pressupor desinteresse do concessionário em retê-los consigo, uma vez desinvestido desta qualidade. logo, careceria dez qualquer base lógica sustentar que em situações deste jaez o encerramento da concessão demandaria integração dos bens no patrimônio público. Donde, salvo estipulação em contrário, seria perfeitamente compreensível que o concessionário, ao encerrar-se o vínculo, levasse consigo os bens dantes vinculados ao serviço. Segue daí, outrossim, que, em tal caso, não se proporia, perante o Poder Público, o tema da amortização deste capital.

Percebe-se com clareza, então, que são temas perfeitamente diversos (a) o da remuneração pela prestação do serviço e o (b) da conservação do capital, mediante sua reposição, quando o acervo nele consubstanciado deva integrar-se definitivamente ao serviço.

8. Ao lume destas considerações sobre o destino dos bens apartados pelo concessionário e aplicados ao serviço já se podem firmar algumas conclusões. A saber:

(a) é inexato supor-se que a chamada "reversão" dos bens, ou seja, sua integração no patrimônio público ao cabo da -concessão do serviço, resulta da teoria geral deste instituto, porquanto, salvo explícita prescrição legal ou do ato concessivo, seu cabimento está circunscrito às hipóteses indicaras, sem embargo de serem elas, certamente, as mais comuns como já foi dito e ora é reafirmado;

(b) também seria inexado supor-se que resulta da teoria geral das concessões de serviço público que os bens nela aplicados sejam, desde sua aplicação, bens pertencentes ao Poder Público, como querem alguns, ou que a propriedade do concessionário sobre eles é uma propriedade resolúvel, como sustentam outros. À falta de lei que ofereça solução genérica para a questão ou de disposição do ato concessivo dilucidando o assunto, quaisquer destas concepções só poderia propor-se em relação às aludidas concessões, nas quais, consoante averbado, a persistência de sua vinculação ao serviço fosse, imprescindível, ante as características do objeto da concessão o que nem sempre ocorre, conforme visto.

(c) nas concessões de serviço público em que, após seu encerramento. (prematuro ou não), os bens devam ficar em poder do concedente, dito evento demanda seja acobertada a parcela do investimento do concessionário ainda pendente de amortização. Com efeito, não fora esta a solução, ninguém se proporia a engajar-se na qualidade de concessionário, inclusive porque os meios que proporcionam a captação necessária para amortizar o investimento dependem inteiramente do concedente: é ele, que, fixa, as, tarifas e, portanto, é ele que determina as possibilidades de amortização e o ritmo em que se dará. Acresce que, se não houvera o acobertamento aludido, o concedente teria um enriquecimento sem causa, isto é, ilícito; obtido às expensas do prestador do serviço. Configurar-se-ia um verdadeiro confisco; por implicar absorção autoritária de bens alheios, sem qualquer contrapartida.

9. Fixadas estas primeiras conclusões gerais, podem-se apontar, agora, no que, concerne aos tópicos feridos, algumas situações diferentes que se proporão ou pelo menos, poder-se-ão propor, conforme se trate de encerramento da concessão por mera expiração do prazo ou por extinção prematura de corrente de encampação ou caducidade.

10. Em geral, outorgam-se por prazo longo concessões em que os bens aplicados ao serviço devam, ao final, integrar-se no patrimônio público mediante "reversão". Assim se faz para que os concessionários amortizem os investimentos efetuados, isto é, paguem-se destes dispêndios, ressarcindo-se através das próprias tarifas cobradas dos usuários pela adscrição de uma parcela delas a tal finalidade. Dessarte, ao expirar-se a concessão, o Poder Público não incorrerá em desembolsos para assenhorear-se do acervo. É lógico que se o prazo fosse curto, as tarifas haveriam de ser altíssimas, sem o que parcela tarifária comprometida neste propósito revelar-se-ia insuficiente para reposição do capital.

Como o Poder Público deve zelar pela ampla acessibilidade do serviço aos usuários e garantir-lhes as condições mais convenientes, as tarifas precisam ser módicas. Seque-se que o prazo de tais concessões haverá de ser longo. Graças a amplitude dele, presume-se, então, ao se expirar normalmente, já terá havido, salvo prova em contrário, amortização do capital invertido pelo concessionário, razão por que em princípio, os bens aplicados ao serviço revertem ao concedente sem ônus para ele. Este modelo, que é o usual, poderá sofrer algum desconcerto quando, em épocas já avizinhadas da consumação do prazo, o concessionário seja obrigado a efetuar investimentos suplementares, quer para manter a qualidade ou a atualização técnica do serviço, quer para expandi-lo ante o incremento da demanda dos usuários. Aí sim - e só aí - o tempo remanescente será curto para permitir que, e as tarifas ao longo dele, hauridas também atendam a finalidade, apontada.

11.
É bem de ver, entretanto, que se a concessão extinguir-se prematuramente, seja por encampação, seja por caducidade, ficará convulcionado o supra referido esquema de amortização do capital. Deveras, a antecipação do término do vínculo subverterá a expectativa sobre a qual estavam assentados os cálculos relativos ao acobertamento do capital. Segue-se que se os bens, com esta antecipação, viessem a ser absorvidos pelo concedente sem compensação econômica que cobrisse o remanescente de investimentos ainda não amortizados pelas percepções tarifárias passadas, o concessionário sofreria uma perda patrimonial. É dizer, estaria sendo agravado com a transferência gratuita de uma parcela de seus recursos pai-a o Poder Público: aquela que em prol dele despendeu e não lhe foi reposta.

Note-se que aqui não está em pauta questão atinente a uma eventual compensação econômica pela perda dos proveitos (lucro ou remuneração do capital) que - não fora pelo encurtamento do prazo - seriam hauridos pelo concessionário com a cobrança das tarifas ao longo de todo o período que estiava titulado para captá-las. Este já é assunto diverso, a ser tratado em seguida. O de que se cuida neste passo, é, meramente, de reconhecer que se a extinção da concessão efetuar-se antes do prazo, seja por encampação, seja por caducidade, não comparece o referido fundamento jurídico e econômico embasador da absorção gratuita do acervo pelo concedente, a título de reversão.

Como se viu, era ele que servia de causa hábil, em princípio, para supedanear justificamente a absorção definitiva do acervo sem ônus para o concedente. Deveras, o tema “sub examine", o que se vem de firmar é que, ocorrendo extinção prematura dia concessão e conseqüente reversão dos bens aplicados ao serviço, se não for versada ao concessionário a contrapartida pelos investimentos ainda descobertos, seguramente ocorrerá apoderamento, pelo concedente de uma parcela do patrimônio de sua contraparte.

Isto posto, examinemos, agora, o segundo tema mencionado, isto é, o da composição patrimonial entre os contraentes quando do encerramento da concessão.

V - COMPOSIÇÃO PATRIMONIAL NO ENCERRAMENTO DA CONCESSÃO

12. Nos casos em que não deva existir reversão de bens e a relação jurídica haja se encerrado por expiração normal do prazo, é óbvio que problema algum se propõe.

Naquel outros em que o vínculo também venha a se findar pela conclusão do prazo previsto, mas deva existir reversão de bens, em princípio, consoante já referido, esta se processará sem ônus para o concedente. Nada obstante, poderá ocorrer, conforme outrossim se deixou apostilado, que os investimentos, notadamente quando efetuados em época próxima da expiração do prazo, ainda não se tenham podido amortizar com a percepção de tarifas. Em tal caso, haverá um remanescente a descoberto. Como é lógico., o concedente terá de responder por ele, a fim de que, com a absorção do acervo, não esteja a sacar do concessionário bens correspondentes ao capital que este aportou a bem do serviço, e não lhe foi dado ensejo de recuperar. Assim é, em linhas gerais.

Quando, todavia, ocorrer prematura extinção, do vinculo por encampação ou por caducidade, a , composição patrimonial já não apresentará a mesma simplicidade, sobretudo devendo haver reversão dos bens, que é o que importa aqui considerar.

13. Tratando-se de encampação, isto é, de encerramento suscitado por razões administrativas de mera conveniência ou oportunidade, ou seja, sem, que o concessionário haja praticado falta que a justificasse - uma vez que este nada fez de desabonador - o Poder Público deverá indenizá-lo pela antecipação do encerramento do prazo ao longo do qual perceberia, através das tarifas, o proveito econômico em vista do qual travara o vínculo. Deveras, seu ingresso na relação jurídica fora motivado, evidentemente, pela expectativa de um ganho, que teria buscado em outro negócio (mobilizando para este outro seu capital, aptidão empresarial, experiência e re- cursos), se não fora pelo liame sue travou com o concedente, confiado em que, bem servindo, hauriria durante todo o prazo estipulado os proveitos do empreendimento. Embora seja certo que o Poder Público possa, sem violar o direito, retomar o serviço dado em concessão, também é certo que deverá compor o prejuízo. econômico dessarte causado.

Além disto, como é, óbvio - e esta já é outra questão terá de acobertar-lhe a parte ainda não amortizada do capital. Nisto estará, pura e simplesmente, cumprindo o elementar dever de respeitar o capital alheio, ou seja, de não apropriar-se do que pertence a outrém.

14. Diversamente, se, se tratar de caducidade vale dizer, extinção decidida pelo Poder Público como decorrência de faltas graves do concessionário, que o fizeram incurso nesta sanção, é claro que a este não será devida qualquer indenização pela perda da exploração do serviço. Pelo contrário, ele é que, em sua qualidade de inadimplente, além'de responder pelas multas ou quaisquer outros agravamentos previstos (perda da caução efetuada, por exemplo), terá ainda de arcar com as perdas e danos que haja causado, ao concedente pelo fato de havê-lo levado a promover o encerramento prematuro do vínculo.

É claro, entretanto, que nem por - isto o concedente poderia assenhorear-se gratuitamente dos bens constitutivos do acervo, se ainda não estiverem, como não deverão estar, integramente -amortizados. Fazê-lo, equivaleria a confiscar investimentos apartados pelo concessionário. Distintas razões concorrem para rejeitar eventual suposição neste - sentido.

Desde logo, são questões diversas, como, dantes se acentuou, aquela atinente à concessão do serviço, ou seja, à exploração econômica dela (sua continuidade ou cessação) e aquel'outra que atina à reversão. É o que se deixou esclarecido ao anotar que pode haver concessão, com ou sem reversão de bens. Ou seja, não, há porque misturar o tópico atinente à prestação.do serviço, e, assim, portanto, o de sua persistência ou cancelamento prematuro, com o tópico relativo ao capital que inverteu e que estará substanciado em bens que reverterão ou não para o concedente ao se encerrar a relação jurídica. Ou seja: a extinção antecipada do vínculo, por si mesma, nada predica com relação à reversão dos bens. Logo, a causa pela qual se antecipada dissolução do vínculo (encampação ou caducidade) não poderia ser, por si mesma, nem determinante de tal conseqüência, nem determinante de onerosidade ou gratuidade da reversão. Em suma: por não existir ligação entre a causa de extinção prematura do vínculo e a reversão dos bens também não existe ligação entre ela e o fato de dever-se efetua-la com ou sem indenização.

15. Com efeito, nos casos em que a concessão não de mande reversão dos bens, como poderia suceder em uma concessão de linhas de ônibus - conforme hipótese dantes figurada - provavelmente a ninguém. acudiria supor que, em sendo decretada sua caducidade, o concessionário perderia os veículos ou equipamentos postos à disposição do serviço.

Porque não ocorreria tal suposição?

Simplesmente porque a reversão dos bens não é uma conseqüência da caducidade não é uma sanção pela inadimplência do concessionário. Se o fosse, deveria operar - e sem ônus para o concedente - também nos casos em que não estava prevista (explicita ou implicitamente). Em rigor, nada tem a ver com ela. Donde, não haveria porque presumir que a gratuidade da reversão seja uma conseqüência natural da caducidade, nos casos em que dita reversão (quando pressuposta) vem a ser antecipada por força de prematura extinção do vínculo suscitada por inadimplência do concessionário.

A reversão - cumpre repetir - não é sanção, mas um efeito que se processa com supedâneo em outros fundamentos e na conformidade de outros pressupostos, tudo conforme dantes exposto. Donde, ocorrerá apenas nos termos. que a legitimam, isto é, com pleno acobertamento do capital invertido pelo prestador do serviço e nos casos em, que é demandada para continuidade dele. Não haveria, então, porque imaginar que a gratuidade da reversão deva ser havida como uma resultante da caducidade.

16. Além disto, seria incabível apropriar-se deste remanescente de capital sem indenizá-lo, porquanto, com tal procedimento, haveria um confisco (o que é constitucionalmente vedado) e um enriquecimento ilícito do concedente sobre o patrimônio alheio. Acresce, ainda, que sobre tratar-se de sanção violentíssima, sua aplicação, salvo previsão expressa em lei ou no próprio ato concessivo, resultaria absurda, porque extraída do nada.

Deveras, os poderes jurídico-administrativos ou resultam da lei ou dimanam de relações constituídas “ex voluntate” . Como se sabe, por força do princípio da legalidade (art. 37 da C.F.), a Administração, para impor algo a outrém, necessita estar embasada em lei (art. 5º, II, e 84, IV). Fora dai, somente se estiver calçada em disposição à qual sua contra-parte tenha se submetido voluntariamente, como sucederia em relação a cláusulas de uma concessão ou a normas contratuais livremente acordadas entre os contraentes. Se a Administração não estiver embasada em lei que lhe autorize impor a sanção “a” ou “b” ou em cláusula da concessão evidentemente carecerá de fundamento jurídico para impô-la. Logo, presumir, nos casos de caducidade da concessão, que a reversão prevista independe de indenização da parcela do capital ainda não amortizada é liberalmente um absurdo.

17. Entre os doutrinadores que se ocuparam da questão é generalizado este entendimento de que a reversão pressupõe indenização do capital ainda não amortizado, nada importando ,que a causa extintiva da concessão haja sido a caducidade. Assim, no clássico "Traité des Contracts Administratifs" (LGDF, Paris, 2ª edição, 1984, tomo II) de A. DE LAUBADERE, FRANCK MODERNE e PIERRE DEVOLVÉ, após o registro de que se a concessão, por qualquer motivo, findar-se antes de seu prazo normal, resultará evidente que a amortização de capital não se terá podido realizar às completas, fica anotado o esclarecimento de que:
"Muito logicamente, a jurisprudência decide que o princípio da reversão gratuita não deve, então, se aplicar, ainda que o caderno de encargos haja omitido esta derrogação à regra geral lei mesmo se a extinção do contrato haja provindo de um comportamento faltoso do concessionário: o concedente beneficiar-se-á do direito de reversão mas deverá Indenizar o concessionário" (pags. 752-753 - grilos nossos).

Em seu "Derecho Administrativo", RAMON PARADA, após indicar que a resolução do contrato pode resultar da inadimplência do concessionário, adverte:

"No obstante, la resolucion del contrato - y para evitar un enriquecimento injusto de la Adnúnistracion - no priva al concessionario incumplidor del derecho a que se le abone el precio de las obras e instalaciones ejecutadas a su costa que hayan de pasar a propriedad de aquélla, tenido en cuenta su estado y el tiempo que restase para la reversion" (Ed. Marcial Pons, Madrid, tomo I, 2ª ed., 1990, pag. 323).

De equivalente teor são as observações de GUIDO ZANOBINI (op. cit. vol. cit. pág .403), MANOEL MARIA DIEZ (Derecho Administrativo, Ed. Plus Ultra, Buenos Aires, 2ª ed., 1979, tomo III, pags. 449-450) e de EDUARDO GARCIA DE ENTERRIA e TOMAS RAMON FERNANDES. (Curso de Derecho Administrativo, Ed. Civitas, Madrid, 4ª ed., 1983, vol. 1, pag. 701).

18. Entre nós, AFRANIO DE CARVALHO, reconhecida autoridade em matéria de concessão de serviço público, ao final de valioso e exaustivo estudo, publicado em dois volumes da Revista de Direito Administrativo, sobre a "Propriedade dos Bens da Concessão” (in RDA, vol. 44, pag. 46), indica em sua conclusão de nº 6 que:

“A reversão somente se dá com indenização, quando o vencimento do contrato foi antecipado por encampação ou caducidade".
O ilustre administrativista, CARLOS S. DE BARROS JR., em brilhante artigo sobre a "Concessão de Serviço Público" (RDA, nº 111, pag. 20), esclarece amplamente o tópico ao averbar:

"Declarada a caducidade, rescindindo o contrato, procede-se à sua liquidação apurando- se as contas de acordo com os termos das estipulações contratuais. Cessa o serviço concedido.
Quanto aos bens do concessionário, cabe a indenização deles. Salvo disposição contratual que excluísse, nesse caso, a indenização, terá o concessionário o direito de receber o valor dos bens investidos na concessão. Deverá o concessionário, porém, pagar os prejuízos decorrentes da inexecução das obrigações, fazendo-se a devida apuração".

Assim também, as obras gerais brasileiras que enfocaram o tema - e fizeram-no recentemente - afinam pelo mesmo diapasão. É o caso da eminente, profa. MARIA SYLVIA ZANELIA DI PIETRO (Dire,to Administrativo, Ed. Atlas, 1990, pag. 220) e de D.IÓGENES GASPARINI (Direito Administrativo, ED. Saraiva, 2ç1 ed., 1992, pag. 262), ambos explícitos sobre a questão em apreço. Pode-se depreend@er que assi,rn também entende SÉRGIO D,E ANDRÉA FERREIRA. Embora sem ende- reçar-se especificamente à hipótese de caducidade, enun;cia a consideração geral de que, se não fora pelo pagamento dos bens, a reversão configuraria confisco, o que é vedado pela Constituição. Daí afirmar, em face disto: ". . . temos que concluir que toda reversão é onerosa" (Direito Administrativo Didático, Ed. Forense, 2ª ed. 1981, pag. 245).

19. Nós mesmos, em monografia sobre "Prestação de Serviços Públicos e Administração Indireta" (Ed. Rev. dos Tribunais, 191 ed., 1973, pags. 51-52) ao tratarmos da caducidade nas concessões de serviço público, também referimos o dever do concedente indenizar o concessionário pelos bens revertidos e ainda não amortizados. Fizêmo-lo nos seguintes termos:

"No caso, por ter sido o concessionário a dar causa à extinção da concessão, por violador de suas obrigações, o Poder Público não tem que indenizá-lo, senão com relação à parcela não amortizada do capital representada pelos equipamentos necessários ao serviço e que reverterão ao concedente".

19. Note-se, além disto, que seriam até mesmo perigosamente inconvenientes disposições legais ou do ato concessivo que previssem solução diversa, pois o concessionário ficaria gravemente exposto a riscos enormes, tanto mais graves quanto maiores fossem os investimentos necessários à boa prestação do serviço. Se a caducidade fosse decretada ainda em uma primeira fase da concessão, quando a amortização do capital ainda estivesse se iniciando, o prejuízo a que o concessário estaria exposto atingiria proporções gigantecas e, evidentemente, abusivas. Dir-se-á que dependeria apenas dele, por sua conduta satisfatória eximir-se, de tais riscos, pois a Administração, animada de ponderação, equilíbrio e senso de justiça, coibir-se-ia de adotar tal providência radical, salvo quando absolutamente indispensável. Esta assertiva, particularmente entre nós, ainda estaria por ser demonstrada. Em verdade, nada concorre para poder-se receber com segurança teses que se assentassem no pressuposto de que a Administração prima pela serenidade, imparcialidade, moralidade e equilíbrio. Donde, atribuir ao Poder Público poderes excessivamente amplos e que lhe ensejem ação devastadora sobre o patrimônio da contraparte, longe de concorrer para uma segurança maior na realização do interesse público, pode servir para ensejar situações dele radicalmente divorciadas e até mesmo, desgraçadamente, para alimentar procedimentos inortodoxos, lesivos aos preceitos da moralidade administrativa.

Mesmo prescindinido-se destas razões, mesmo adotando- se o pressuposto de que se pode e deve confiar, ao menos em princípio, na ponderação, equilíbrio e impessoalidade da Administração, ainda assim, seria indesejável cláusula que lhe atribuísse poder tão devastador em relação ao patrimônio do concessionário, pois só os empresários mais imprudentes ou definitivamente imprudentes é que se abalançariam a engajar-se em vínculo jurídico no qual estivessem expostos a riscos de tanta magnitude - e não são deste feitio os contra- tantes que convêm ao Poder Público'

20. Com, efeito, o direito. as leis e os contratos escritos e formalizados seriam inteiramente despiciendos se as partes de qualquer negócio jurídico pudessem entregar-se, uma nas mãos da outra, confiadas reciprocamente na integral correção, lealdade e sereno senso de justiça com que cada qual agiria. As formalizações do direito existem pela necessidade que os homens têm de precatar-se e de garantir-se uns contra os outros, previnindo-se do risco de ficarem à mercê da vontade ou decisão alheia quando seus interesses possam se encontrar em contraste. Donde, tirante alguma hipótese invulgar, inapta a servir de paradigma, só um irresponsável ou um panglossiano otimista, se engajaria em vínculo de concessão no qual a concedente pudesse, diante de falta grave do concessionário, apoderar-se, sem, indenização, da parcela ainda não amortizada do capital invertido e substanciado no acervo aplicado ao serviço. Logo, cláusula do gênero não teria outro préstimo senão afastar justamente os empreendedores mais confiáveis e equilibrados