DIREITO ADQUIRIDO E COISA JULGADA COMO GARANTIAS CONSTITUCIONAIS

HUGO DE BRITO MACHADO

Juiz do TRF da 5ª Região | Professor Titular de Direito Tributário da UFC | Ex-Procurador da República

SUMÁRIO:
1.
introdução.
2. O que é direito adquirido.
3. O que é coisa julgada.
4. O direito adquirido e a coisa julgada como questões constitucionais.
   4.1. Direito adquirido contra a . Constituição.
   4.2.
Coisa julgada contra a Constituição.
   4.3. o direito adquirido como questão constitucional.
5. Direito adquirido, coisa julgada e isonomia.
   5. 1 . A questão dos valores
   5. 2.
A posição do STF
6.
Direito adquirido e isonomia.
7. Segurança e justiça na aplicação do art. 40, § 4º, da CF de 88.

1. Introdução

Não obstante :antigas, as questões pertinentes ao direito adquirido, e à coisa julgada, estão ainda a exigir elaboração doutrinária. Muitas. até relativamente simples, desafiam juízes tribunais, precisamente à míngua de esclarecimentos que a doutrina não tem'divulgado.

As obras clássicas geralmente são pouco lidas. Os práticos procuram resolver tudo sem teoria alguma, e os teóricos, muitos deles, teorizam sem objetividade.

Temos sustentado que a teoria só encontra razão de ser na possibilidade de sua aplicação. Assim, teoria desligada da realidade é inútil. A prática, por seu turno, há de ter apoio seguro na teoria, posto que nenhuma experiência produzirá bons resultados sem o conhecimento, teórico, capaz de lhe emprestar harmonia e segurança.

É certo, também, que na experiência muita vez se constrói, ou se aperfeiçoa a teoria, até porque, a rigor teoria e prática não são coisas essencialmente, diferentes. Teoria e prática na verdade se entrelaçam. A primeira descreve experiências anteriores, harmonizando os seus resultados, explicando as relações de casualidade, ou de imputação. Com a segunda Procede-se à verificação do já conhecido. Sua utilização para o atendimento das necessidades humanas. A diferença não se situa entre a teoria e a prática, mas entre a pessoa que busca o atendimento daquelas- necessidades com maior, ou com menor conhecimento dos caminhos que deve trilhar usando, como ferramenta de trabalho, o que já é conhecido e explicado teoricamente, e buscando melhorar tal conhecimento. Ou então, desprovida deste, pelos caminhos incertos do empirismo.

No âmbito do Direito, esse "homem prático" é conhecido como rábula. Conhece dispositivos isolados, que conserva na memória e invoca com freqüência. Não conhece o sistema. É incapaz de distinguir um princípio jurídico de uma norma. É incapaz de distinguir o significado jurídico de um fato, de seu sentido natural, não jurídico. É incapaz de trabalhar com os conceitos da Ciência do Direito para extrair das normas o que nelas está implícito. No dizer de GERALDO ATALIBA, vê a árvore, mas ignora a floresta.
Não estamos, porem, a fazer a apologia do teórico. Preconizamos, isto sim, a busca de soluções práticas, calcadas em seguros fundamentos que a teoria nos oferece.

É com este espírito que vai-nos examinar alguns aspectos dos institutos do direito adquirido. e da coisa julgada.

2. O que é direito adquirido.

Todo conceito jurídico é problemático, e o de direito adquirido não foge à regra. Há mesmo quem diga que todo direito, ou foi adquirido, ou não existe.
A expressão direito adquirido, assim, seria desprovida de significação.

Não é bem assim. As palavras e as expressões albergam significados que ultrapassam aquele resultante de sua expressão literal ou etimológica. Significados que lhes atribuem o uso continuado em determinado contexto.

Assim ocorre com o conceito de direito adquirido.
Inicialmente, a idéia de direito limitou-se ao âmbito do direito privado. Depois evoluiu para o direito público. Permanece, porém, ligada à idéia de patrimônio. Direito adquirido é, como todo direito, um efeito da incidência da norma sobre o seu suporte fático. Sua existência, pois, pressupõe consumado esteja o fato que participa de sua formação. Particulariza-se, porém, pelo conteúdo patrimonial que lhe confere especificidade.

O ter conteúdo patrimonial, contudo, não significa que não possa residir em relações de direito público, como as que se estabelecem entre o contribuinte e o fisco, ou entre o servidor e a Administração. Mas o direito que se pode qualificar como adquirido, nessas relações, é sempre pertinente ao patrimônio do indivíduo. Não se pode, por exemplo, cogitar de direito adquirido ao modo de exercer uma função pública, embora se possa falar de direito adquirido à remuneração do servidor, ou aos proventos de sua aposentadoria.

Não se há de confundir a aquisição do direito, com o seu exercício. A súmula 359 do STF continha, pois, um evidente equívoco, ao dizer que os proventos da inatividade regulam-se pela lei vigente ao tempo em que o servidor reuniu os requisitos necessários à aposentadoria, inclusive a apresentação do requerimento, quando se trate de aposentadoria voluntária. Por isto sua redação veio a ser alterada, para exclusão da parte final, relativa à apresentação do requerimento. Na verdade o direito à aposentadoria é adquirido no momento, em que o servidor reúne os requisitos legais para aposentar-se. O requerimento não diz respeito à formação do direito, mas a seu exercício. Esta é a lição que nos deu, em magnífica sentença, o então Juiz Federal em Minas Gerais, e hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Mario da Silva Velloso: "se há reunião de todos os requisitos para aposentar-se, opera-se, de imediato, a aquisição de um direito, irrelevante a circunstância de não ter o titular exercido o direito que lhe competia". 1

3. O que é coisa julgada.

Diz-se coisa julgada a situação, juridicamente imutável criada por uma sentença contra a qual não caiba mais recurso. Ou, nas palavras do Professor ALBUQUERQUE ROCHA, "a proibição imposta a todos os juizes de pronunciarem-se sobre situação jurídica substancial já definida por sentença não mais sujeita a recurso".2

É resultado de uma opção política do legislador. Entre a permanente possibilidade de revisão dos julgados, e a segurança e estabilidade das relações jurídicas já apreciadas, preferiu o legislador esta última.

Não nos parece que se trate de uma opção pelo valor segurança em detrimento do valor justiça, como assevera CELSO NEVES.3 Embora se admita que a, coisa julgada preserva a segurança, não se pode dizer que o faz em detrimento da justiça, pois, se em alguns casos, esse valor supremo pode ser sacrificado, é certo que não se pode, em princípio, afirmar que o julgado proferido em reexame da questão seria mais justo que o anterior. Poderia até, em certos casos, ser menos justo. Por outro lado, nos casos de injustiça mais flagrante a ação rescisória funciona com valioso temperamento, ensejando que se busque o restabelecimento da justiça.

A coisa julgada pode ser: (a) formal, quando diz respeito apenas a um processo, valendo a imutabilidade apenas no âmbito do processo no qual foi a sentença proferida, e (b) material, quando a imutabilidade transcende os limites do processo, prevalecendo relativamente a qualquer outro.

A primeira acontece, por exemplo, quando não caiba mais recurso contra sentença que extinguiu o processo sem julgamento de mérito. Exemplo importante de coisa julgada formal tem-se nas sentenças que extinguem o processo de execução, posto que neste não é posta em juízo questão a ensejar sentença de mérito.

A segunda ocorre quando a sentença tenha apreciado o mérito da controvérsia, e sua imutabilidade, portanto, implique impedimento ao reexame desta, em qualquer processo.

A coisa julgada tem limites subjetivos, e objetivos, cuja definição constitui um dos aspectos mais importantes no estudo do tema, a suscitar interessantes controvérsias, cuja abordagem, porém, não se comportam neste pequeno estudo.

4. O direito adquirido e a coisa julgada como questões constitucionais.

4.1. Direito adquirido contra a Constituição.

Tem sido afirmado, com relativa freqüência, até por pessoas dotadas de saber jurídico, inexistir direito adquirido contra a Constituição .A assertiva é correta, em termos. Não tem, todavia, o sentido que muitos lhe querem atribuir. Para compreendê-la adequadamente é preciso distinguir a irretroatividade das normas jurídicas em geral, que é preceito de lógica jurídica, da garantia decorrente de preceito de determinado ordenamento jurídico, como o residente no art, 59, item XXXVI, de nossa Constituição Federal de 1988, segundo o qual a "lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada".

O princípio da irretroatividade, Posto no plano da Teoria Geral do Direito, tem fundamento lógico-juridico. Na verdade norma nenhuma retroage, pois o tempo é irreversível. O que pode haver é aplicação da lei, no presente, a certos efeitos de fatos ocorridos no passado. Isto, porém, só excepcionalmente se admite. A regra é a aplicação de lei apenas aos fatos posteriores ao início de sua vigência. A não ser assim, ter-se-ia destruído o próprio Direito, pela negação de sua principal finalidade, que é a de assegurar a estabilidade social.

O princípio de lógica jurídica, que nos ordenamentos se expressa nos preceitos indicativos do início da vigência das leis, como de outras normas não impede que o legislador, em certos casos, determine expressamente a aplicação da norma a certos efeitos de fatos ocorridos anteriormente. É dirigido ao intérprete ou aplicador da norma. Não ao legislador, que tem o poder de fazer leis aplicáveis a projeções atuais de fatos do passado. Se deseja fazê-lo, estabelecerá norma expressa neste sentido. Se a norma é silente, quanto a este aspecto, evidentemente só será aplicável a fatos futuros, vale dizer, ocorridos depois do início de sua vigência.

A inscrição do princípio da irretroatividade no texto constitucional tem o objetivo de limitar a poder do legislador. É precaução do constituinte contra o arbítrio. No Brasil, somente a Constituição de 1937, sabidamente autoritária, fruto dia ditadura getuliana, omitiu essa garantia. Entretanto, corno explicou o notável FRANCISCO CAMPOS, seu principal elaborador e Ministro da Justiça de Getúlio, tal omissão não significou a adoção do princípio contrário, isto é, o princípio da retroatividade. Teve apenas o objetivo de afastar a limitação ao Poder Legislativo. 4

A Constituição, sabemos todos, é um conjunto de normas hierarquicamente superiores. Assim, se nela reside norma como a do art. 5º, item XXXVI, de nossa Constituição Federal de 1988, estabelecendo que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada", fica limitado o arbítrio do Poder Legislativo, pois a lei ordinária, como as demais normas inferiores, não poderão ser aplicadas a projeções de fatos anteriores ao início da respectiva vigência, ainda que contenham determinação expressa neste sentido. Essa determinação expressa será inconstitucional.

Nada, entretanto, impede que o próprio constituinte, ao fazer a Constituição, ou ao emendá-la, determine expressamente que o preceito novo aplica-se a projeções de fatos anteriores, pois a limitação residente no princípio da irretroatividade, mesmo inscrito na Constituição, a ele não se dirige. Se, todavia, o legislador constituinte estabelece regra nova, e nada diz a respeito de sua aplicação no tempo, essa regra nova somente se aplica a fatos ocorridos depois do início de sua vigência' Não por força do preceito constitucional da irretroatividade, mas por força do preceito de lógica jurídica, que se dirige ao intérprete e ao aplicador do Direito.

É nítida a distinção entre o princípio da irretroatividade das leis, no plano da lógica jurídica, e esse mesmo princípio colocado no Direito Positivo como garantia constitucional. Em qualquer dos casos ele pertine não apenas às leis, em sentido técnico, mas às normas jurídicas em geral, inclusive àquelas residentes da Constituição, entretanto, como princípio de lógica jurídica ele é dirigido apenas ao intérprete ou aplicador dessas normas, e não protege os direitos adquiridos contra o arbítrio do legislador. Já como garantia constitucional, destinasse a limitar o Poder Legislativo, que fica obrigado a respeitar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, não estabelecendo norma expressamente aplicável a projeções de fatos do passado.

Diz-se que não existe, direito adquirido contra a Constituição porque o legislador constituinte, laborando no plano da Lei Maior, não está submetido aos limites nesta estabelecidos, e pode, portanto, dizer expressamente que determinada norma aplica-se a projeções de fatos do passado. Entretanto, se a da Constituição nada dispõe a respeito de sua aplicação, a questão de direito intertemporal resolve-se pela irretroatividade, nos termos da lógica jurídica.

4.2. Coisa julgada contra a Constituição

A coisa julgada constitui uma proteção contra o reexame das questões já decididas. Proteção que, em principio, limita a atividade jurisdicional, nas de certa forma limita também a atividade legislativa. A final, o dispositivo constitucional assevera que a prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

4.3. O direito adquirido como questão constitucional.

A nível constitucional, portanto, a proteção se dirige contra o legislador, que não poderá modificar situações de fato consolidadas pelos efeitos da coisa julgada.

Sob este aspecto, tudo o que se disse a respeito do direito adquirido aplica-se também à coisa julgada. Se um dispositivo de lei afeta a coisa julgada, a garantia constitucional é invocável. Pode-se afirmar que o dispositivo legal é inconstitucional. Entretanto, se um dispositivo da própria constituição alcança situação objeto de coisa julgada, a garantia constitucional estará excepcionalmente afastada.

A questão de saber se uma decisão a respeito da ocorrência, ou não, de lesão a direito adquirido é decisão sobre constitucionalidade de lei, ganhou notável importância prática com o desdobramento, operado pelo constituinte de 1988, do antigo recurso extraordinário. Se a decisão que assegura o direito adquirido declara a inconstitucionalidade da lei, o recurso cabível é o extraordinário, para o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.5 Se a questão não é de inconstitucionalidade, o recurso cabível é o especial, para o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

O estudo dessa questão ganhou ainda maior relevo com a divergência instaurada entre os ministros do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, que por maioria de votos, não conheceu de ação declaratória de inconstitucionalidade, no ponto em que se alega violação de direito adquirido.6

A decisão a respeito da questão de saber se ocorreu, ou não, lesão a um direito adquirido, pode implicar declaração de inconstitucionalidade de lei. E pode não implicar. Não é correta para todos os casos uma solução afirmativa, nem uma solução negativa. Impõe-se uma distinção para a qual geralmente não se tem dado atenção. É preciso, para definir-se a lesão a um direito adquirido como questão constitucional, verificar se a lei determina sua aplicação de sorte a atingir fatos do passado, ou se, diversamente, essa aplicação da lei a fatos do passado, causadora da lesão ao direito adquirido, decorre apenas de uma interpretação da autoridade a quem cabe fazer sua aplicação.

Se o dispositivo legal nenhuma determinação contém no sentido de sua aplicação a fatos consumados antes de sua entrada em vigor, e se tal aplicação acontece, atingindo direitos adquiridos, é induvidoso que a lesão a esses direitos resultou simplesmente de uma aplicação indevida. Não há, na lei, nenhum elemento que possa considerar contrário à constituição. Não se pode, assim, dizer que a lei é inconstitucional. A rigor, pode-se afirmar que a lei não incidiu sobre nenhum fato passado. Por isto mesmo sua aplicação a estes é indevida. Neste caso, a decisão que assegura o direito adquirido não implica declarar a lei inconstitucional. Incabível, em tal caso, ação declaratória de inconstitucionalidade, posto que não se está questionando a inconstitucionalidade da lei, mas do ato que a aplica.

Entretanto, se a lei determina expressamente que sua aplicação, deve alcançar fatos já consumados, à situação é diversa. Aqui, há na própria lei elemento que a torna inconstitucional. Não é possível, pois, neste caso, assegurar o direito adquirido sem declarar 'essa inconstitucionalidade. Neste caso, portanto, é cabível a ação declaratória de inconstitucionalidade, ao fundamento de haver sido atingido direito adquirido.

Em outras palavras, no primeiro caso, o vício de inconstitucionalidade não reside na lei, mas no ato que a aplica, e por isto a decisão que assegura o direito adquirido apenas a este se reporta. É apenas este que é retirado do mundo jurídico. A invalidade afirmada pela decisão é apenas do ato de concreção, que se tem como indevidamente praticado. No segundo acaso, porém, como a própria lei determina expressamente, a sua aplicação de sorte a alcançar direitos adquiridos, é impossível deixar de fazer tal aplicação sem ter de declarar que, tal lei é inconstitucional. O vicio de inconstitucionalidade reside na própria lei, e por isto não pode ser sanado sem a declaração de sua inconstitucionalidade.

Essa questão, que pode parecer simplesmente acadêmica, tem grande importância prática. Não apenas no, que pertine ao recurso cabível, especial ou extraordinária, corno já de início afirmamos, ou para definir-se o cabimento da ação declaratória de inconstitucionalidade. Também e especialmente, em se tratando de julgamento nos tribunais.

Com efeito, somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros os tribunais podem declarar a inconstitucionalidade das leis.7 Quando funcionar dividido em Câmaras ou Turmas, somente o plenário do Tribunal pode declarar a inconstitucionalidade das leis.8

A decisão de uma Câmara, ou Turma, que reconhece direito adquirido contra disposição expressa de lei, está declarando a inconstitucionalidade desta, embora não o diga expressamente. E por isto é nula, porque proferida por autoridade incompetente. Não há interpretação capaz de assegurar direito adquirido, se a lei diz expressamente que se aplica àquela situação que se tem como consolidada antes do início de sua vigência. Se a aplicação que se tem como lesiva a um direito adquirido decorre de dispositivo legal expresso que a determina, e o órgão fracionário do Tribunal reconhece que na verdade há lesão a direito adquirido a questão há de ser submetida ao Plenário do Tribunal.

4.4. A coisa julgada como questão constitucional.

Também a questão de saber se a violência contra a coisa julgada configura uma questão constitucional não pode ser resolvida com uma resposta afirmativa, ou negativa, para todos os casos. Se uma lei disciplina determinada situação de certo modo, e nada diz a respeito da aplicação desse novo disciplinamento a situações amparadas pela coisa julgada, é evidente que a aplicação desse novo disciplinamento àquelas situações é que vicia a coisa julgada. Entretanto, se a lei diz expressamente que o seu disciplinamento aplica-se inclusive àquelas situações, é a própria lei que violou a garantia da coisa julgada. Neste último caso, portanto, trata-se de lei inconstitucional.

Tudo quanto se disse, pois, relativamente ao direito adquirido como garantia constitucional, aplica-se também no que pertine à coisa julgada.

Ressalte-se, ainda, que a declaração de inconstitucionalidade, na denominada via de exceção, ou controle difuso de constitucionalidade, pode ser proferida por qualquer juiz. Entretanto, se o órgão judiciário a manifestar-se sobre tal questão é um Tribunal, vale dizer, um órgão colegiado, a decisão que declara a inconstitucionalidade da lei há de ser tomada pela maioria absoluta de seus membros. Por isto, só o plenário do Tribunal é competente para as questões de constitucionalidade.9

Assim, uma decisão de Turma, ou uma decisão de Plenário adotada por maioria simples, é contrária à Constituição, ensejando recurso extraordinário pela letra “a” , do inciso III do art. 102, da Constituição Federal. Tal recurso é cabível, mesmo que a decisão tenha afirmado expressamente que não está examinando questão de constitucionalidade, mas de interpretação da lei, desde que essa interpretação seja flagrantemente descabida em face de dispositivo expresso na lei.

5. Direito adquirido, coisa julgada e isonomia.

5. 1 . A questão dos valores

Há quem sustente, com razão, que o jusnaturalismo procurou reduzir a idéia do Direito à do valor do justo, colocando- se em posição exatamente oposta à do positivismo, que considerou fundamentalmente o principio da segurança.10

É claro que não se trata de exclusão, mas de prevalência. Jusnaturalistas não negam a necessidade de segurança, nem positivas negam a necessidade de justiça. "Sem ordem não há como fazer justiça, e sem justiça não há como manter a ordem."11

Cuida-se, na verdade, de conceitos que se completam para viabilizar a convivência. Não é possível, sem um mínimo de segurança, equacionar o relacionamento humano de forma justa. Nem é possível, sem a prática de soluções justas para os conflitos, evitar a convulsão social e a desordem.

Mas, se é certo que no plano da abstração as idéias de segurança e de justiça não são excludentes, e sim complementares, é certo também que diante de situações concretas muita vez a solução de um conflito exige que se estabeleça uma preferência, pois diante da situação específica se estabelece um conflito. A idéia de justiça conduz a urna solução, enquanto a idéia de segurança conduz a solução oposta.

Para o positivista, há de prevalecer a solução que privilegia a idéia de segurança, enquanto para o jusnaturalista há de prevalecer a solução que privilegia a idéia de justiça. De todo, modo encontra-se na corrente do direito natural de origem divina, uma preocupação com a segurança jurídica. Como anota ALBERTO XAVIER, na doutrina de Pio XII está dito que "da ardem jurídica querida por Deus nasce o inalienável direito do homem à segurança e, por ele, uma esfera concreta do direito protegida contra todo o ataque arbitrário. E João XXIII, depois de repetir a doutrina de seu antecessor, assevera ser a segurança jurídica "um direito fundamental da pessoa."12

Há quem sustente que a justiça é um vaiar subordinante, enquanto a segurança é um valor secundário." 13 Poderia parecer, então, que havendo conflito entre urna e a outra, a primeira deve prevalecer.

Não se conhece, todavia, elemento universalmente válido para resolver essa questão. Nem mesmo o elemento teleológico, tantas vezes invocado, é universalmente válido. Como ensina RADBRUCH, os elementos universalmente válidos da idéia de direito são só a justiça e a segurança. São relativos não somente a idéia do fim, mas também a própria determinação da hierarquia ou das relações de primazia a ser estabelecida entre esses três elementos.14

Também não se tem como superar a polêmica em torno da questão de saber se o princípio de justiça, como o da segurança, são princípios jurídicos, ou metajurídicos. Em, outras palavras, a questão de saber da necessidade, ou não da inclusão destes na Constituição, ou nas leis. Os positivistas certamente dirão que a justiça, e segurança, são idéias. São cogitações filosóficas, e, portanto, metajurídicas. Em conseqüência, para que prevaleçam, devem ser acolhidas pelo ordenamento jurídico positivo. Já os jusnaturalistas dirão que se trata de princípios fundamentais do direito natural, cuja prevalência decorre do fato de serem os fundamentos de todo e qualquer ordenamento jurídico.

A polêmica não tem fim.

De todo modo, podemos afirmar que, sem um fundamento que alcança até o âmbito da filosofia, não podem ser resolvidas as questões da aplicação e da interpretação das leis.15

Por isto parece-nos que Direito não pode ser objeto apenas da ciência, no sentido positivista. Dele se ocupam a ciência, a sociologia e a filosofia, como bem demonstrou PAULO BONAVIDES. 16

Para os jusnaturalistas, não há duvida de que a segurança é um principio jurídico fundamental. Numa concepção rigorosamente positivista, porém, a segurança é uma idéia que a ordenamento jurídico deve realizar. Não se trata de um princípio jurídico, a não ser quando e enquanto encartado no direito positivo.

Para nós, a segurança é um ideal. Não é, em si mesma, um princípio jurídico. Mas sua presença nos ordenamentos jurídicos dos diversos países revela-se em normas as mais diversas, entre as quais estão as que, albergadas pela
Constituição, garantem a irretroatividade das leis, vale dizer, protegem o direito adquirido e a coisa julgada.

Já a garantia de tratamento isonômico, vale dizer, a consagração constitucional do princípio da isonomia, destina-se preservação do valor justiça.

5. 2. A posição do STF

O juiz decide segundo o que lhe parece ser o justo. Busca, é certo, fundamentar sua decisão com elementos do direito positivo, mas o rumo de sua decisão é sempre fixado em função desse valor essencial.

Na ementa de um julgado do Colendo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, da lavra do eminente Ministro MARCO AURÉLIO, está expressa essa idéia: "Ao examinar a lide, o Magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para, encontrando o indispensável apoio, formalizá-la. " 17

Indicada está, assim, a prevalência do valor justiça. Entretanto, a dificuldade surge quando a decisão que nos parece justa , num determinado caso, conflita com o direito adquirido, ou a coisa julgada. Em outras palavras, a dificuldade surge quando nos deparamos com um conflito entre os princípios nos quais se expressam os valores fundamentais da justiça e da segurança.

Esse conflito foi superado pelo Supremo Tribunal Federal, quando teve de resolver se daria prevalência ao princípio da justa indenização nas desapropriações, ou ao da coisa julgada. Na verdade estavam em conflito, naquele justiça, e segurança. E a Corte Maior, deu prevalência ao primeiro. 18

6. Direito adquirido e isonomia.

Não apenas o conflito entre a segurança e a justiça impõe o sacrifício de um, com a prevalência do outro. Há situações nas quais, embora inocorrente o conflito, o respeito ao direito adquirido, expressão do valor segurança, e a prática da isonomia, expressão do valor justiça, podem inviabilizar as mudanças indispensáveis ao aperfeiçoamento das instituições.

A questão dos currículos universitários já ofertou notável exemplo a demonstrar a procedência desta tese. Alunos matriculados antes de determinada mudança no currículo do curso que estavam freqüentando, impetraram e obtiveram mandado de segurança para escapar às novas exigências. Alegaram que, iniciados os seus cursos anteriormente, tinham direito adquirido a neles prosseguir, sem tais mudanças. Em seguida, alunos que ingressaram naqueles cursos depois das alterações curriculares questionadas, impetraram obtiveram, mandado de segurança para a estas não se submeterem, com fundamento no princípio da isonomia.

É evidente que, em casos assim, garantir aos antigos proteção contra as mudanças, com fundamento no princípio do direito adquirido, e aos novos garantir também a mesma proteção, com fundamento na isonomia , é inviabilizar toda qualquer mudança.

7. Segurança e justiça na aplicação do art. 40, § 4º, da CF de 88

Estabelece o § 4º, do art. 40, da vigente Constituição, que os proventos da aposentadoria serão revistos, na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade, sendo também estendidos aos inativos quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes de transformação ou reclassificação do cargo função em que se deu a aposentadoria, na forma da lei".

A regra tem amplo alcance, que lhe empresta a interpretação teleológica. A finalidade do preceito é eliminar verdadeiras iniqüidades, resultantes de táticas adotadas pela Administração, no sentido de viabilizar aumentos de vencimentos do pessoal em atividade, sem o correspondente aumento dos inativos, dos quais já não precisa, e aos quais por isto não precisaria agradar' Nenhuma forma de aumento da remuneração do pessoal em atividade deixará de ser considera na revisão imediata, e na mesma proporção, dos proventos dos inativos.

Ainda que o auferimento da vantagem esteja a depender de requisitos que somente os servidores em atividade podem atender, sua concessão implica o dever de reajustar os proventos dos inativos. Admitir o contrário seria abrir caminho largo para a Administração burlar o preceito constitucional.

Ocorre que a mesma Constituição instituiu limites remuneração de servidores, 19 em razão dos quais se deu, em alguns casos, a redução de vencimentos. Surgiu, então, questão de saber se essa redução podia alcançar os proventos dos que se haviam aposentado antes do advento da Constituição. Teriam estes direito adquirido aos proventos, nos termos da lei em vigor na data em que reuniram os requisitos para a aposentação.

O art. 17, do ADCT, entretanto, estabelece que "os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo pagos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percepção de excesso a qualquer título.”

Mesmo assim há quem desenvolva, com muita argúcia, argumento no sentido de preservar o valor de antigas aposentadorias.
Parece-nos, porém, que deve prevalecer o princípio da justiça, expresso, aqui, na equiparação entre os proventos e a remuneração dos que estão em atividade. A interpretação contextual da Constituição conduz inexoravelmente à conclusão de que se deve assegurar, aos que se aposentaram e estão recebendo menos do que perceberiam se estivessem ainda em atividade, o direito à revisão e conseqüente equiparação enquanto em contrapartida se impõe, aos que estão recebendo proventos maiores a redução destes, com a conseqüente equiparação.

É a clara opção feita pelo constituinte de 1988, no sentido da prevalência do princípio da justiça, a garantir a isonomia. E esta na verdade se impõe, por ser o mais fundamental de todos os princípios jurídicos.

1 - RDP vol. 21, p. 175

2 - Teoria Geral do Processe, 24 edição, Saraiva, São Paulo. 1991, p. 227.

3 - Coisa Julgada Civil, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1971. p, 215.

4 – Cf. CLÁUDIO PACHECO, Tratado das Constituições Brasileiras, Freitas Bastos, Rio de Janeiro, 1965, vol. X, p. 13.

5 - CF art. 102, inciso III, alínea "b"

6 - ADIN nº 613-4. Repertório IOB de Jurisprudência nº 10/93, p. 183/184

7 - CF adt. 97

8 - CPC arts. 480/482.

9 - Constituição Federal, art. 97.

10 - THEOPHILO CAVALCANTE FILHO, O Problema no Direito, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1964, p. 78

11 - ARNALDO VASCONCELOS, Teoria da Norma Jurídica, 2ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1986, p . 11 .

12 - ALBERTO XAVIER, Os Princípios da Legalidade da Tipicidade da Tributação, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1978, p. 5.

13 - THEOPHILO CAVALCANTE FILHO, O Problema da Segurança no Direito, Editara Revista dos Tribunais, São Paulo, 1964, p. 83.

14 – GUSTAVO RADERUCH, Filosofia do Direito, 5ª edição, tradução do Prof. L. Cabral de .Mancada, Arménio Amado, Coimbra, 1974, p. 162.

15 - JAN SCHAPP. Problemas Fundamentais da Metodologia Jurídica, trad. de Ernildo Stein, Sérgio Antonio Fabris, Porto Alegre, 1985, p. 7.

16 - PAULO BONAVIDES, Teoria do Estado, 2ª edição, Forense, Rio de Janeiro, 1980, p, 306/307.

17 - RDP, nº 100 p. 175.

18 - RDP, nº 100, p. 175 e segs.

19 - Art. 37