DISTINÇÃO ENTRE "CONTROLE SOCIAL DO PODER" E "PARTICIPAÇÃO POPULAR"

CARLOS AYRES BRITO

Mestre em Direito Constitucional - PUC-SP | Professor de Teoria do Estado e Direito Constitucional da Universidade Federal de Sergipe

SUMÁRIO:
1.
O Controle Social do Poder, Como Forma de Exercício dos Direitos de Liberdade e de Cidadania;
2. O Controle Social do Poder, Como Expressão de Direito Público Subjetivo, e Não Como, Expressão de Poder Político;
3.
O Poder Político e Sua Essência Normante;
4.
A Participação Popular, Como Expressão de Poder Político, e Não Como Expressão de Direito Público Subjetivo;
5.
A Participação Popular e o Advento da Democracia Participativa.

1. O Controle Social do Poder, Como Forma de Exercício dos Direitos de Liberdade e de Cidadania

1.1. Nos dicionários da língua portuguesa, controle é verificação, investigação, fiscalização. Ato de penetrar na intimidade de algo ou de alguém, com "animus sindicandi". Pois com esse mesmo sentido é que o vocábulo foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, que, ao dispor sobre o controle externo o controle interno da União, o fez debaixo de seção normativa que começa com o nome "fiscalização" ("Da fiscalização Contábil, Financeira e Orçamentária", conforme se vê da seção IX do capítulo I do título IIV). Um pouco antes, a Carta de Outubro já havia associado os termos "controle" e "fiscalização", enquanto a atribuição do Congresso Nacional que tem por objeto os atos do Poder Executivo (inciso X do art.49). Enfim, insistiu na preservação do sentido fiscalizatório da palavra, já agora a propósito das funções institucionais do Ministério Público, por ela, a Constituição, encarregado de exercer o controle externo da atividade policial" (inciso VII do art. 129)

1.2. Essa fiscalização Constitucional opera no interior da própria máquina estatal (já o vimos), como opera de fora dessa máquina para dentro dela (já veremos). É uma fiscalização que recai sobre o poder, sobre o governa, para se saber até que ponto as autoridades publicas são cumpridoras dos seus deveres para com as pessoas humanas, as associações e a coletividade em geral.

1.3. Pois bem, a fiscalização que nasce de fora para dentro do Estado é, naturalmente, a exercida por particulares ou por instituições da sociedade civil. A ela é que se aplica a expressão "controle popular" ou "controle social do poder", para evidenciar o fato de que a população tem satisfação a tomar daqueles que formalmente se obrigam a velar por tudo que é de todos.

1.4. E por onde começa a Lei Maior o disciplinamento desse controle social do poder? Começa, no capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos (capítulo I do título do título II). Ora para habilitar o particular a saber das coisas do Estado com vista à defesa de direito ou de interesse pessoal, ora para habilitar o particular a saber das coisas do Estado com vista à defesa de direito ou de interesse geral, ou seja, a Constituição tanto aparelha a pessoa privada para imiscuir-se nos negócios do Estado para dar satisfações a reclamos que só repercutem no universo particular do sindicante, quanto aparelha a pessoa privada pasa imiscuir-se nos negócios do Estado para dar satisfações a reclamos que repercutem no universo social por inteiro.

1.4. Assim, quando o Código Supremo reza que todos têm direito, "a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situação de interesse pessoal" (alínea "b" do inciso XXXIV do art. 5º), ela está protegendo o particular enquanto particular; quer dizer, o indivíduo tomado como um universo em si mesmo, um mundo inteiramente à parte, elo fato exclusivo da humanidade que "mora" nesse indivíduo.

Quando, porém, a Lei Fundamental prescreve que "qualquer cidadão é parte legitima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio-ambiente e ao patrimônio histórico e cultural..." (inciso LXXIII do art. 5º), ela está protegendo o indivíduo enquanto membro da "polis", habitante da "civitas", sócio do Estado ou parte de um todo que o abarca e o supera, enfim, que é o cidadão.

1.5. Na primeira hipótese a Constituição homenageia valores da individualidade, ou "bens de personalidade individual". Na segunda, valores da sociabilidade, ou "bens de personalidade social". Aqui o controle do poder assume a forma de exercício dos direitos de cidadania. Ali, torna-se expressão dos direitos de liberdade (*). Mas numa como noutra suposição, a finalidade e os efeitos do controle têm as mesmas características centrais, como passamos a demonstrar.

2. O Controle Social do Poder, Como Expressão de Direito Público Subjetivo, e Não Corno Expressão de Poder Político.

2.1. Ora, proclamar que o controle popular do poder é forma de exercício dos direitos de liberdade, ou de cidadania, é considerá-lo enquanto direito público subjetivo; isto é, um direito referido a um sujeito privado, expressamente adjetivado como indivíduo, cidadão, nacional, trabalhador, adolescente, criança (quem faz a adjetivação é a Constituição mesma), ,porém com a particularidade de que o seu exercício opera às custas do Poder Público. É exprimir, direito subjetivo que tem por contraponto um específico dever estatal, uma ação ou omissão (conforme o caso) diretamente cobrável do Estado.

2.2. Assim entendidas as coisas, é de se perguntar: qual a finalidade do controle social do poder, enquanto direito público subjetivo? Esta: forçar o Estado a acatar a conduta do ,particular perante ele, Estado, porque o gozo do direito subjetivo implica o assunção de uma conduta privada que se quer respeitada pelo Poder Público. Por exemplo, se a direito consiste no recebimento de informações dos órgãos públicos (art. 5º, inciso XXXIII, da C. F.), o conteúdo desse direito é a obtenção dessas informações. Se ele é traduzível na apresentação de reclamações quanto à prestação dos serviços públicos, a apuração da veracidade de tais reclamações é o modo pelo qual se atua o comando constitucional respectivo (§ 3º do art. 37). Logo, o que se busca não é exatamente traçar uma conduta futura para o Estado, mas obrigar o Estado a submeter-se às conseqüências todas da conduta já assumida pelo particular perante ele.

2.3. Com efeito, seja qual for a maneira pela qual o controle se manifeste (denúncia, representação, reclamação...), o objetivo do particular é simplesmente desfrutar de uma situação jurídica ativa CONTRA o Poder Público. Ele não quer formar propriamente a vontade do Estado, mas impor ao Estado a vontade dele, particular, que é a de penetrar na intimidade das repartições públicas para reconstruir fatos ou apurar responsabilidades(*).

2.4. Do ângulo do Estado, então, os efeitos do controle social implicam uma posição de subalternidade ou "capitis deminutio". Qualquer que seja a forma de uso do direito ao controle o Estado é obrigado a "baixar a crista” , passando a figurar numa relação jurídica concreta em que o direito subjetivo (alheio) passa a falar mais alto do que o poder político (próprio).

2.5. Não se pense, porém, que o poder político (que é um poder de mando, e, portanto, normante) sai das mãos do Estado e vai para ás mãos do sujeito privado. Não! Para que o particular passe a deter o poder governativo, ele há-de estar habilitado a produzir normas jurídicas que exprimam aquela "vontade geral" a que se referia ROUSSEAU, e não é bem isso que acontece. Em realidade, a regra condutora do direito subjetivo ao controle preexiste à manifestação da vontade individual e não aporta consigo uma autorização para o seu titular agir enquanto editor normativo. A regra já está na constituição, como na Constituição já estão as normas a ser observadas pelo Poder Público, em função da provocação controladora que lhe faz o particular.

2.6. Realmente, ao exercitar a faculdade do controle, a pessoa privada apenas peticiona ao Poder Público, encaminhando-lhe uma repreesentação, uma reclamação, uma requisição de certidão, uma denuncia, enfim, como nesta hipótese: "Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União" (§ 2º do art. 74, há pouco transcrito em nota de rodapé). Mas sem expedir normas consubstanciadoras de comandos impositivos, à falta, justamente, da posse do poder político. Um poder, que se expressa pela edição de "um Direito Comum a todas as sociedades primárias englobadas na sociedade política", segundo o magistério do publicista MARCELO CAETANO, no seu DIREITO CONSTITUCIONAL, Vol. I, Forense, p. 20.

2.7. Para concluirmos este segmento temático, seja-nos permitido aduzir que o direito ao controle social do poder é tão direito público subjetivo quanto a liberdade de locomoção, o respeito à integridade física e moral do preso, a inviolabilidade domiciliar e tantos outros modelos constitucionais de direito público subjetivo, com a particularidade de pertencer ao rol dos direitos POLÍTICOS; quer dizer, direitos que exigem uma atuação comissiva (não a simples inação) do Estado-autoridade. Mas tal interferência nos negócios políticos do Estado não altera o fato de que o gozo do Direito subjetivo é tão-somente uma aplicação da Constituição, e não uma aplicação a que se segue a elaboração de uma nova regra jurídica estatal, com a participação obrigatória do setor privado. O controle é direito, e não poder, e fora do exercício do poder não há como o setor privado irrogar-se a prática de ações governamentais.

3 . O Poder Político o Sua Essência Normante

3.1. Os politicólogos todos dizem que o poder político e o poder de definir e gerir os interesses gerais. Na Sobredita lição do publicista luso MARCELO CAETANO, cuida-se de “ autoridade da coletividade sobre cada um dos seus membros, traduzida pela imposição de um Direito Comum a que todos, quer queiram quer não, têm de se submeter" (ob. cit., p. 20). Donde o vínculo funcional "Poder Político/Essência Normante", com que batizamos o presente tópico de estudo.

3.2. Muito bem! Mas será que a nossa Constituição faz do poder político um poder governamental que se exprime na criação de um Direito Objetivo que a todos se aplica? A resposta é positiva, bastando observar: primeiro, que os órgãos elementares do Estado são chamados de "Poderes"; segundo, que a cada um desses "Poderes" foi atribuída a competência de expedir atos realizadores das funções legislativa, executiva e judicante do Estado, chamados, conforme o caso, de "leis", "decretos" e "sentenças"; ou seja, leis, decretos e sentenças que são os modos próprios de formação da vontade jurídica do Estado e, portanto, do Direito Objetivo que sobre todos recai, imperativamente.

3.3. Isto assente, fácil é deduzir que o controle social do poder não é forma, de exercício do poder político. O agente privado a que assiste qualquer das vias de controle do Poder Público não se assume enquanto autoridade normante. Não produz uma regra nova de Direito, mas, simplesmente, aplica norma constitucional preexistente. Numa palavra, NÃO PARTICIPA do processo. de elaboração jurídica, e, portanto, de participação popular não se cuida. Se, por acaso, da sua iniciativa controladora, vier a ser gestada uma regra de direito (até para desfazer uma outra insanavelmente viciada), a autoria do espécime jurídico novo será exclusivamente do Estado.

3.4. Participação Popular, então, somente pode e com a pessoa privada (individual ou associadamente) exercendo o poder de criar norma jurídica estatal, que é norma imputável à autoria e ao dever de acatamento de toda a coletividade. É igual a dizer: com a pessoa privada infuindo CONSTITUTIVAMENTE na formação da vontade normativa do Estado, que assim é que se desempenha o poder político.

3.5. Enfim, aparelha temática "poder político/essência normante" puxa outra, que, é "participação popular/poder político", no sentido de que a participação do povo nos negócios do Estado só se dá pela via do exercício do poder governativo. Servem de amostra os institutos do plebiscito, do referido e da iniciativa popular, que introduzem na produção do Direito do Estado um regime - digamos - de "economia mista".

4. A Participação Popular, Como Expressão de Poder Político, e Não Como Expressão de Direito Público Subjetivo

4.1. O primeiro sinal de que participação popular é exercício do poder político já está no artigo introdutório da Constituição, que rotula a pessoa política total do Brasil (que é Federação) como constitutiva de um "Estado Democrático de Direito"; isto é, um Estado cujo Direito se forma por necessária via popular, "democrática", de logo explicitada como a que realiza pelo povo, "diretamente", ou por seus "representam, eleitos" (RAYMUNDO, FAORO, vê. no, fraseado "Estado Democrático de Direito" a significação,de um "estado, social, baseado em liberdades positivas, não só as liberdades negativas estado liberal de direto", que não briga com o sentido técnico agora defendido).

4.2. E que significa exercer "diretamente" o poder político? Significa o povo assumindo-se enquanto instância deliberativa, tanto quanto se assumem como instância deliberar os"representantes eleitos" por esse mesmo povo. Por isso mesmo é que a Lei Maior fala do voto direto e secreto, e mais, do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular, como formas de exercício da "soberania"; quer dizer, poder político máximo. Não importando para a teoria jurídica o nome "Direitos Políticos" com que a Constituição rotula o capítulo respeitante à matéria, pois o que revela, para o hermeneuta é o regime jurídico de cada qual daqueles institutos (voto plebiscito, etc.).

4.3. Pois bem, outras modalidades há de ereção sociedade civil a corpo deliberativo, em matéria de norma jurídica estatal, e a primeira delas é a que faz do simples cidadão um membro do Tribunal do Júri; ou seja, um particular que passa à condição de co-editor da norma concreta da sentença de condenação ou de absolvição do réu. É que regra constitucional sobre a instituição do júri só é expressão de um direito público subjetivo, do ponto de vista do pronunciado; porque, para o cidadão transformado em juiz popular, ela materializa um genuíno poder político.

4.4. Já no campo da produção de atos administrativos, tudo começa com o seguinte versículo: "É assegurada a participação dos trabalhadores e empregados nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação" (art. 10)). Sendo importante observar, nesta passagem, algo que se vai repetir algumas vezes: a Constituição enlaça o vocábulo participação" a um termo detonador de ingerência decisória da parte privada, como "deliberação", "gestão", "soberania", "diretrizes", "formulação das políticas e no controle" (*), de que servem de ancoradouro os artigos 7º (inciso XI), 14 ("caput"), 194 (inciso VII), 198 ("caput"), 204 (inciso II) e 206 (inciso VI).

4.5. Não é tudo, porque a prática direta de ações de governo também marca presença no campo da legislação, especificamente, como sucede nos casos de plebiscito para o reordenamento do quadro numérico das pessoas federadas dos Estados e dos Municípios (§§ 3º e 4º do art. 18). E tanto neste passo como nos demais, a interferência dos particulares não é para saber das coisas passadas do Estado, não é questionar atos oficiais já praticados, mas, isto sim, para formar um novo querer normativo de índole pública.

4.6. Por conseqüência, não há confudir a participação popular com o controle social, pois, o fim de quem efetivamente participa não é atuar um comando constitucional que força o Estado a olhar para trás. A parte privada, o grupo, ou o conjunto da sociedade, nenhum deles pretende fazer da liberdade ou da cidadania um elemento de anulação do poder político, à base do "cessa tudo que a antiga musa canta, que outro valor mais alto se alevanta" (CAMÕES). O objetivo colimado não é fazer "oposição" ao Governo - convenhamos -, mas "negociar" com ele a produção de uma nova regra jurídica pública. Aqui, uma emanação da soberania popular, e, destarte, poder. Ali, uma emanação da cidadania, ou da liberdade, e, portanto, direito.

5. A Participação Popular e o Advento da Democracia Participativa

5.1 . A título de ilustração do nosso pensamento, trabalhemos com a norma constitucional do inciso I do art. 93, assim verbaliza o seu comando:
“ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, através de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fazes, obdecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação”(sem os traços).

Pois bem, na parte que nos interessa, que diz a Lei Maior em suas linhas e entrelinhas? Diz o seguinte: 1º) que uma instituição da sociedade civil, por ela nominada, tem o poder de participar de todas as fases de um procedimento oficial necessário à expedição de um ato de nomeação que realiza a função administrativa do Estado; 2º) que essa instituição da sociedade civil permanece um segmento da sociedade civil (não se transmudando em órgão da sociedade estatal), ao interferir constitutivamente no processo de elaboração do ato de nomeação de um juiz togado; 3º) que o comparecimento da mesmíssima instituição privada é obrigatório, indescartável, ficando a salva dê condescendências ou da "boa vontade" do Poder Público(*).

5.2. Pronto! São estas as características proeminentes da participação popular, que introduz na democracia representativa do Brasil um elemento da chamada democracia direta, ou "participativa". Tal como ocorre nas hipóteses, do plebiscito, do referendo, da iniciativa popular, do júri e daquelas ordenações constitucionais em que setores privados têm sua presença assegurada nos colegiados dos órgãos e entidades da Administração Pública.

5.3. Numa palavra, a participação popular não quebra o monopólio estatal da produção do Direito, mas obriga o Estado a elaborar o seu Direito de forma emparceirada com os particulares (individual, ou coletivamente). E é justamente esse modo emparceirado de trabalhar o fenômeno jurídico, no plano de sua criação, que se pode entender a locução “Estado Democrático” (figurante no preâmbulo da Carta de Outubro) como sinônimo perfeito de “Estado Participativo”.

5.4
. A democracia brasileira já não é exclusivamente representativa, diz o parágrafo único do art. 1º., resgatando o componente que faltava no célebre conceito lincolniano de que ela é o regime que realiza o governo do povo. PELO povo e para o povo (o regime exclusivamente representativo se traduz no governo do povo, mas sem o povo). Agora , como que se dá uma satisfação parcial a JEAN-JACQUES ROUSSEAU, para quem “a soberania não pode ser representada”.

5.5. Em suma, os novos institutos de democracia direta redimensionam o princípio constitucional da soberania popular, permitindo-nos falar de uma democracia participativa. Pena que tais institutos ainda sejam de reduzido número e com baixo teor de eficacidade, a patentear o abismo que se rasga entre as promessas de arejamento político da Carta em vigor e os efeitos práticos que ela pode deflagrar por si mesma. Não assim quanto ao regramento dispensado ao controle social do poder, anote-se cujos mecanismos são mais numerosos e dotados de maior teor de operacionalidade. A liberdade e a cidadania à frente da soberania.

Aracaju, 1º de maio de 1992

(*) A distinção que estamos a fazer, no interior do capítulo dos direitos o deveres individuais e coletivos, é simplesmente esta: chamamos de "direitos de liberdade" os direitos individuais e os coletivos oponíveis ao poder político, ou, em certa medida, CONTRA ESSE PODER, tendo por beneficiário o indivíduo ou, então, a grupo que exerce tais direitos; e chamamos de "direitos de cidadania" aqueles igualmente oponíveis ao poder político, ou, em certa medida. CONTRA ESSE PODER, mas tendo por beneficiário o conjunto da sociedade (e não a pessoa isolada que aciona tais direitos).

Eqüivale a reconhecer, por conseguinte, que a cidadania está presente no capítulo em foco e não apenas no subconjunto normativo que a lei Fundamental designa por Direitos Políticos". Aliás, os direitos de cidadania também circulam para além da próprio capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos, bastando lembrar a seguinte passagem do título aborto ao Poder Legislativo: "Qualquer cidadão ( ... ) é parte legítima para na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União" (§ 2º do art. 74). Mais ainda, entendemos que cidadão é o indivíduo habilitado a atuar em prol de toda a coletividade, seja ou não seja eleitor, como se dá na imputação a mandato eletivo (§ 10 do art. 14) e no questionamento da legitimidade das contas dos Municípios (§ 3º do art. 31).


(*) Essa penetração da parte privada na intimidade das repartições públicas se faz, todavia, por intermédio do próprio Estado, pela circunstância de que "não existe liberdade que não seja garantida pelo Estado e, ao inverso, só um Estado controlado por cidadãos livres pode oferecer-lhes alguma dose razoável de segurança" (KARL POPPER, em THE OPEN SOCIETY AN ITS ENEMIES, 5ª edição, Revista LONDRES, 1966, 50/51.

(*) Aqui, no inc. II do art. 204, pela única vez a C. F. atrelou a palavra "participação" ao vocábulo "controle". Mas o fez, no claro sentido de que, quem tem o poder de formular a política administrativa da repartição pública, tem também o de controlar a respectiva execução. Tal como se dá com o Congresso Nacional, que, por titularizar a função de procriar as leis, tem a competência de fiscalizar sua execução. A lei é o dado primário, e a fiscalização, o dado secundário.

(*) Embora tida por "autarquia especial" (logo, pessoa jurídica de direito pública), a O.A.B. é versada pela Constituição de 1988 enquanto instituição da sociedade civil congregadora dos advogados privados. A instituição rigorosamente pública, estatal, congregadora dos advogados públicos, é a "Advocacia Geral da União", conforme inteligência do art. 131, "caput", da lei Fundamental.

(*) CARLOS AYRES BRITTO é mestre em Direito Constitucional pela PUC de São Paulo e professor de Teoria do Estado e Direito Constitucional da Universidade Federal de Sergipe.