A
FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Magno
Gomes de Oliveira
Procurador
do Município de Fortaleza | Professor da UNIFOR
S U M Á R I O :
I. INTRODUÇÃO
II. BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA ORIGEM DA PROPRIEDADE
2.1 - A tese da comunidade primitiva
2.2 - A lei uniforme da evolução
2.3 - Feudalismo e propriedade
2.4 – A propriedade como direito absoluto
III. A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL
3.1 - Oposição ao direito absoluto
3.2 – A relatividade dos direitos
3.3 - A constituição de Weimar
3.4 - O direito comparado
IV. EVOlUÇÃO CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL NO BRASIL
V. CONCLUSÃO -VI. BIBLIOGRAFIA
INTRODUÇÃO
Abordar a temática da função social da propriedade constitui nosso
intento, e nele investimos o melhor de nossos esforços, embora nos acompanhe o
receio próprio daqueles que procuram desvendar os dogmas
Induvidosamente o direito à propriedade, garantido no art. 52, inciso XXII da
Constituição Federal de 1988, é um desses dogmas, ao passo que o seu plus,
preconizado no inciso seguinte, exatamente por conflitar com o caráter absoluto
da propriedade, foi e permanece refutado, não juridicamente, é claro, mas de
forma socialmente silenciosa.
Com efeito, enquanto ousou, o legislador constituinte, ratificando de modo
revigorado o princípio da função social da propriedade, na Carta de 1988,
insistem os (grandes) proprietários em atribuir-lhe pouco caso.
Buscaremos, portanto, identificar algumas das mais relevantes razões
determinantes deste fenômeno, ainda que de origens remotas; buscando elucidar a
base jurídica da propriedade, bem assim a dimensão do que seja função social.
Propomo-nos, ainda, a oferecer considerações pertinentes à evolução
constitucional do princípio sub oculi em nosso ordenamento.
Submetemos, pois, o fruto de nossos esforços à douta apreciação superior.
II -BREVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DA
ORIGEM DA PROPRIEDADE
2.1 - A tese da comunidade
primitiva
Discutem sociólogos e economistas sobre a forma através da qual, apresentou-se
originariamente a utilização da terra: apropriação individual ou coletiva.
De um lado agrupam-se os que sustentam a originária existência de um comunismo
no aproveitamento do solo e na utilização produtos, apontando os traços
evolucionais de comunidade de aldeia à comunidade familiar, e finalmente, a
comunidade individual.
No século passado, digladiaram-se os pensadores em tomo do comunismo
primogênio, idéia aliás, muito antiga, que preocupou pensadores como Platão,
Sêneca, e Becker. Entre os pensadores modernos, Maxime Kovalewsky, antigo
professor de Direito Público da Universidade de Moscou, afirmou que a
propriedade, enquanto produto orgânico do trabalho, existiu desde sempre.
Aduzia que a apropriação momentânea dos produtos do solo não era sinônimo de
propriedade, tampouco o gozo de fato era um direito, e tais considerações
embasavam sua concepção da inexistência originária da apropriação individual do
solo a título de propriedade exclusiva.
Ludwigg Gumplowicz, a seu turno, sustentou que a propriedade privada se
desenvolveu ao mesmo tempo que a dominação de um grupo humano sobre o outro,
tendo por objetivo manter essa dominação. Para ele, o fato primitivo e mais
natural foi a propriedade coletiva, que é precisamente o contrário da tese
esposada por Kovalewsky. Defende que a instituição da propriedade pressupõe o
fato posterior da organização social, pela coexistência de grupos heterogêneos
(dominadores e dominados). Só a existência de uma organização permanente
permitiria ao indivíduo membro da classe dominante obter; na classe dominada,
trabalhadores para cultivar e explorar o solo, tornando efetivo seu direito de
proprietário. Só a existência de uma organização permanente permitiria a uns
impedir os litros de gozar dos produtos da terra, protegendo a propriedade do
solo contra ataques individuais.
Friederich Engels, a seu turno, apregoou as excelências da organização
gentílica primitiva, de caráter igualitário, para a qual não aderia existir a
propriedade privada. Esta, porém, não tardou a ser inventada, e com ela o
Estado. Aliás, a esse propósito, filosofou Jean- Jacques Rousseau em sua obra
“Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens.":
"O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que,
tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas
suficientes para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, miséria e
horrores não pouparia ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou
enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: Defendei-vos de ouvir esse
impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a
terra não pertence a ninguém".
Giusepe D'Aguanno procurou encontrar testemunhos de lar na
história antiga, acerca da comunidade agrícola primitiva, e apontou vestígios
desta no Egito, na Índia, e mesmo na Grécia e em Roma. Sustentou, então, Fustel
de Coulanges, que as populações da Grecia e da Itália, desde a mais remota
antiguidade, sempre conheceram e praticaram a propriedade privada, observando
outrossim, que inexiste qualquer recordação de que a terra fosse comum. Já o
célebre Montesquieu aduziu que foram as leis civis que instituíram a
propriedade, e a afirmação do grande enciclopedista não passou desapercebida
aos sociólogos, que procuraram acentar, no estudo das instituições comunitárias
as mais recentes, a afirmativa de um comunismo geral primitivo.
2.2 - A lei uniforme da evolução
Deve-se a Gabriel Tarde o combate a idéia de uma lei geral, uniforme, da
evolução jurídica das instituições em todo o mundo. Contrariou os evolucionistas,
que afirmam de modo uníssono a existência de uma lei única e necessária da
evolução jurídica. Tal idéia tem como corolário lógico, a concepção de um
estado social primitivo idêntico em todos os povos, como ponto de partida do
progresso.
O que é possível dizer, quanto à propriedade primitiva, é apenas que, vivendo o
homem, nos primeiros tempos, somente da caça e da pesca, não se poderia cogitar
da propriedade individual da terra, posto que esta nada representava para seus
fins imediatos e a apropriação individual de um pedaço de terreno para cultivo
fugia inteiramente às suas necessidades. Na época do pastoreio, o provável
teria sido o aproveitamento coletivo do solo, onde os semoventes seriam de
propriedade individual ou coletiva. Mas, quando os homens começaram a
dedicar-se à agricultura, a apropriação familiar ou individual da terra se
revelou uma necessidade imperiosa, a fim de estimular o interesse de cada qual.
Tais indicações, entretanto, não visam fixar a idéia de uma lei evolucional única;
cada povo adotou instituições próprias; tanto que se verifica que entre os
romanos sempre existiu propriedade familiar ou individual, enquanto que a
propriedade coletiva se generalizara entre os Germanos.
De fato, nos primeiros tempos de Roma, a instituição da propriedade baseava-se
nos princípios religiosos da época. A religiosidade consistia no culto dos
antepassados, a religião era puramente doméstica e os deuses eram, por assim
dizer, uma propriedade familiar, mormente porque os antigos romanos erigiam
seus antepassados à condição de deuses. O altar doméstico e a religião
achavam-se intimamente ligado à terra, sendo a maldição maior para os antigos
romanos morrer sem sepultura, vivendo a alma a errar pelos tempos sem fim.
A propriedade era, pois, uma instituição sem a qual não poderia subsistir a
religião doméstica. Os limites do domínio eram fixados por objetivos materiais
que representavam o culto doméstico. Para invadir o campo de uma família era
necessário, portanto, derrubar seu limite, fato considerado grave sacrilégio, e
que exigia destarte, severo castigo, porquanto o limite violado era um deus.
Por tais considerações, revelam-se inteiramente procedentes as argumentações de
Fustel de Coulanges, segundo o qual, foi a religião, e não as leis, quem
primeiro " garantiu o direito de propriedade, ainda hoje denominado
sagrado, entre nós.
A verdadeira propriedade, ao tempo das XII Tábuas, pertencia ao cidadão romano,
e era chamada quiritária. Só posteriormente veio a ser reconhecida a
propriedade bonitária, cuja criação coube ao Praetor, que, abrandando os
rigores do Ius Civile, protegeu, o domínio daqueles que não adquiriam a
propriedade pelas formas tradicionais do Direito, quando, por exemplo, alguém
reivindicava determinada propriedade por haver nela permanecido o tempo
necessário para usucapi-la.
2.3 -Feudalismo e propriedade
O antigo Estado Romano se desmoronara e em seu lugar ostentou-se a pulverização
do poder. O exercício da autoridade passou ao indivíduo e apagou-se a distinção
entre o público e o privado, fazendo da soberania estatal coisa inexistente.
J. Calmette em seu admirável “La Société Féodale”, observou que no regime
feudal desapareceu a soberania, posto que tal regime baseava-se tão-somente no
devotamento pessoal do vassalo ao senhor feudal. Em face disso, constatou-se
também a apropriação das funções públicas a título privado, passando as
populações ao jugo de um dado senhor no qual encontravam, pelo menos em tese,
proteção e amparo. Na iminência do perigo, o devotamento pessoal obrigava os
indivíduos a se agruparem em tomo de seus senhores, acompanhando-os na guerra.
Com efeito, toda a estrutura social passou a basear-se na: propriedade da
terra, de vez que o domínio fundiário era, realmente, a única fonte de poder.
A riqueza essencial era a terra, enfeixada nas mãos de poucos e grandes
proprietários. Não existia a prestação de serviços, diante salário; a
escravidão não se harmonizava plenamente com as concepções morais da época, e
os trabalhadores pagavam tributos, obrigavam-se à prestação pessoal de
serviços, tanto na paz como na guerra, em troca de um pedaço de terreno para
explorar e do auxílio prestado pelo senhor feudal.
Os servos da gleba pertenciam à propriedade, estavam ligados irrevogavelmente à
terra. Não podiam levar armas de guerra; não podiam dispor nem de si nem de
suas coisas; vendiam:-se, doavam- se ou permutavam-se com as terras e
contentavam-se em levar existência miserável.
Classe intermediária entre os nobres e os servos era a dos roturiers ou
vilains, que eram livres, podendo estabelecer domicílio onde bem quisessem, e
podiam também transmitir seus bens, seja inter vivos, seja mortis causa.
Estavam obrigados, no entanto, a prestar determinado número de jornadas de
trabalho ao senhor feudal, periodicamente.
A propriedade subdividia-se em propriedade censitária e propriedade feudal.
Existiam, outrossim, terras livres ou alodiais, espécies de ilhas de liberdade
num oceano de feudalismo. A propriedade alodial era considerada uma exceção,
uma irregularidade em face do princípio feudal, e os grandes senhores contra
ela fizeram a guerra. A propósito, - lembra D'Aguano que os alódios diminuíram
dia a dia, porque não podendo defender suas propriedade contra os senhores
feudais se viam compelidos a solicitar proteção de algum poderoso senhor, o
qual lhes exigia o domínio direto, concedendo-lhes tão-somente o usufruto da
terra, ora o título de feudo, ora o título de censo.
Nesta época predominantemente agrícola começou a surgir a classe dos burgueses,
comerciantes ou artesãos, reunidos em comunidades e nutridos pela ânsia de
liberdade. As comunas ou coletividades urbanas reivindicaram a liberdade
municipal, procurando furtar-se aos entraves criados pelo feudalismo. Começaram
a surgir os estatutos das cidades livres e a organização industrial
principiante criou as corporações de ofícios. Os senhores feudais foram pois,
perdendo terreno e viram suas funções públicas desaparecer em benefício dos
burgueses.
O desenvolvimento da indústria e do comércio abalava, em grande parte, o
prestígio da exploração agrária. Criaram-se oásis de liberdade em face dos
senhores feudais. Por outro lado, o poder real foi alargando sua extensão e a
centralização monárquica progrediu a largos passos em detrimento dos senhores
feudais. Finalmente, a Revolução Francesa veio cumprir sua tarefa de
libertação. Nas palavras de Mignet:
"Ela substituiu a arbitrariedade pela lei, o privilégio pela igualdade;
livrou os homens das distinções das classes; o solo das barreiras das
províncias; a indústria dos embaraços das corporações e juízes de ofícios; a
agricultura das sujeições feudais e da opressão dos dízimos; a propriedade dos
estorvos das substituições; e reuniu tudo a um só Estado, a um só direito, a um
só povo" (in História da Revolução Francesa, Vol. I, 1899, pág. 10).
2.4 - A propriedade como direito absoluto
Consagrando os princípios filosóficos do século XVIII, estabelecendo,
individualisticamente, direitos naturais, anteriores e superiores à organização
social, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), inscreveu, em
caráter solene e com expressões claras, a propriedade como um dos direitos
fundamentais.
O seu preâmbulo revelava a intenção de firmar, para o futuro, o respeito aos
direitos básicos do homem, estabelecendo o marco inicial de uma nova era e
rompendo com os últimos resquícios feudalísticos. A Declaração, inicialmente,
suprimia privilégios e estabelecia a igualdade, em seguida arrolava a
liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão, como direitos
fundamentais, e especificava adiante que tais direitos teriam como únicos
limites os direitos semelhantes dos outros.
Quanto à propriedade, o art. 17 estabelecia seu caráter inviolável e sagrado,
ressalvando apenas, a desapropriação por necessidade pública, mediante prévia
indenização.
Verifica-se na Declaração dos Direitos do Homem, nitidamente impresso o
pensamento Kantiano. Kant observava que a denominação propriedade só pode ser
aplicada com justeza às coisas corpóreas, não aos atos ou às relações. A
propriedade consistia, pois, para ele, no poder absoluto sobre a coisa da qual
se pode utilizar a bel-prazer, porque nenhuma obrigação se tem em relação a
ela.
Em Rousseau, bem nítida predominava a mesma idéia fundamental. O cerne de suas
preocupações era encontrar a fórmula que permitisse proteger, com toda a força
comum, a pessoa e os bens de cada associado, de modo que, unindo-se cada um a
todos, não obedecesse senão a si próprio, permanecendo tão livre como antes.
Ao lado dessas influências filosóficas, contribuíram para o mesmo resultado os
ensinamentos da escola fisiocrática, que apregoava a liberdade individual como
um de seus cânones fundamentais. Admitindo cegamente a existência de uma ordem
natural que regeria os fenômenos econômicos, como quaisquer outros fenômenos,
condenavam formalmente a intervenção do governo na vida econômica. Era esta a
mentalidade da época, que se resumia no postulado otimista laissez, faire,
laissez passer, defendido por Adam Smith.
III - A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL
3.1 - Oposição ao direito absoluto
Avolumou-se o combate à propriedade como direito absoluto. Irmanados na luta,
pensadores dos mais variados matizes, partindo de pontos de vista diversos e
até mesmo contraditórios, propuseram-se a destruir a cidadela do absolutismo.
Seus ideais e suas preocupações não se identificavam, senão pela barreira a
superar. Unia-os o espírito destruidor das velhas convicções, embora suas
próprias convicções fossem divergentes entre si. Anarquistas, positivistas,
socialistas trouxeram as suas ideais antagônicas e as lançaram contra o
absolutismo do direito de propriedade. A luta das idéias teve reflexo nas
instituições dos homens, e a propriedade passou a ser concebida sob óticas
diversas.
Destruidor por índole, o anarquismo preconizava o choque violento com a
realidade de todos os dias, procurando a tudo destruir, inclusive a
propriedade. Advogavam seus teóricos, e entre eles, Proudhon, que a propriedade
era impossível, pois nenhum governo, nenhuma economia política, nenhuma administração
pública poderia prosperar tendo por fundamento a propriedade.
O marxismo, seguindo a dialética hegeliana, assinalou a preponderância do fator
econômico no desenrolar da história e trouxe
a filosofia como arma de luta do proletariado.
No "Manifesto Comunista" elaborado por Marx e Engels, descreve-se
toda a história da sociedade humana como a história da luta de classes: homens
livres e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos, mestres e
companheiros, ou generalizando, opressores e oprimidos, lançados uns contra os
outros em uma luta sem tréguas.
Auguste Comte, a seu turno, fundador do positivismo, acentuou, em sua obra
"Système de Politique Positive", o princípio segundo o qual ninguém
possui outro direito senão o de sempre cumprir o seu dever.
Segundo este roteiro é que Léon Duguit apregoou a idéia da propriedade-função
social. Para ele, todo indivíduo tem a obrigação de cumprir, na sociedade,
certa função, de acordo com o posto que nela ocupa. Por conseguinte, o
possuidor da riqueza, só pelo fato de detê-la, deve realizar certas tarefas,
que só ele pode cumprir. Só ele pode aumentar a riqueza geral, assegurar a
satisfação das necessidades gerais, fazendo valer o capital que possui. Está,
pois, socialmente obrigado a cumprir determinadas tarefas e apenas na hipótese
de cumpri-las será protegido socialmente. A propriedade não é já o direito
subjetivo do proprietário, é a função social do possuidor da riqueza.
O sistema jurídico da Declaração dos Direitos do Homem descansa na concepção
metafísica do direito subjetivo, mas o sistema jurídico dos povos modernos
tende a estabelecer-se sobre a comprovação do fato da função social que se
impõe aos indivíduos e aos grupos.
Segundo o mestre da Universidade de Bordeuax, a concepção puramente individualista
do direito é tão artificial quanto a concepção metafísica do direito subjetivo.
Como esta é um produto histórico, teve seu valor em um determinado momento, mas
não pode subsistir eternamente. Atualmente a propriedade não figura como
direito intangível ou absoluto. A propriedade existe e deve existir como
condição indispensável da prosperidade e grandeza social, mas não é um direito,
é uma função social.
O proprietário, isto é, o possuidor de uma riqueza tem, pelo fato de possuir
esta riqueza, uma função social a cumprir. Se a cumpre, seus atos de
proprietário serão protegidos. Se não a cumpre, ou se a cumpre mal, por
exemplo, não cultivando seu solo, a intervenção dos governantes será legítima,
a fim de obrigá-lo a cumprir sua função social de proprietário, que consiste em
assegurar o emprego das riquezas que possui.
3.2 - A relatividade dos direitos
Louis Josserand apregoa a relatividade dos direitos.
Enquanto que, para os juristas romanos o ato abusivo era sobretudo o ato
malicioso, tomou-se, atualmente, todo ato antifuncional, vale dizer, todo
aquele contrário ao espírito de um direito determinado. É preciso não confundir
os limites traçados ao direito, que são exteriores à teoria do abuso e de sua
relatividade, que ocorre sempre que o direito é exercido com desvio de
finalidade.
O problema do abuso do direito não se confunde com o da sua limitação objetiva.
A lei que assinala e demarca a esfera da livre atividade do indivíduo não
consagra a noção do abuso de direito, nem lhe imprime cunho de relatividade. O
problema do abuso do direito é, pois, o da sua limitação subjetiva, isto é, o
da relatividade de seu próprio conteúdo. Assim, para a caracterização do abuso
de direito é necessário que a lei considere como ato gerador de responsabilidade
civil aquele que, embora praticado dentro dos limites concretos do direito,
exorbite os seus limites subjetivos.
O direito de propriedade é uma das esferas que mais se presta ao
desenvolvimento da teoria da relatividade dos direitos. E foi exatamente por
esse caminho que Josserand iniciou a construção de sua doutrina. Direito
egoísta, ao menos na aparência, a propriedade individual é destinada à
satisfação do interesse do proprietário. O interesse sério e legítimo, contudo,
compele ao exame dos motivos dos atos praticados pelo proprietário no exercício
de seus direitos de propriedade. O critério do interesse sério e legítimo
amolda-se às necessidades sociais e dá larga margem à jurisprudência para
relativizar o direito de propriedade.
Temos, portanto, a seguinte escala de limitações do direito: os atos ilegais,
que violam os limites objetivos do direito, que infringem a letra da lei; os
atos abusivos, que não violam a letra da lei, mas violam o seu espírito, a sua
finalidade, transpondo seus limites subjetivos; os atos excessivos, exercidos
nos termos da lei e dentro do espírito da instituição, mas que provocam
prejuízos excepcionais a terceiros, acarretando responsabilidade puramente
objetiva, sem atenção ao requisito da culpa.
3.3 – A Çonstituição de Weimar
Vem a ponto mencionar, inicialmente, a Constituição social-democrática de
Weimar, de 11 de agosto de 1919, que marcou um dos primeiros passos
fundamentais em direção à sedimentação do princípio da função social ora sub
examine.
Em seu art. 153, a Constituição de Weimar declara que a propriedade obriga e o
seu uso e exercício devem ao mesmo tempo, representar uma função no interesse
social, e preconiza no art. 155, que o trato e a utilização do solo é dever do
proprietário para com a comunidade.
Destarte, ampliando-se-lhes os deveres, restringiram-se os direitos, que o
parágrafo 903 do Código Civil Germânico atribuíra ao proprietário, salvo
disposição contrária da lei e salvo os direitos de terceiros.
A legislação ficou assim, habilitada, no dizer de Radbruch, a elevar do plano
moral ao plano jurídico, comunicando-lhe obrigatoriedade, esta garantia ou
hipoteca social da propriedade. A propriedade privada aparece hoje, como um
campo de ação livre, confiado pela coletividade à iniciativa privada do indivíduo,
mas confiado somente na expectativa de que este faça dela um uso social, sob
pena de lhe ser retirada, se essa. expectativa não se
verificar. Por outras palavras: a propriedade passou a ser considerada um
limitado e condicional direito, perdendo as prerrogativas da sacralidade e da
inviolabilidade. A Constituição de Weimar durou pouco, mas a idéia da função
social da propriedade ficou sólidas raízes.
3.4 -O direito comparado
Abordaremos, agora, a propriedade sob a ótica de sistemas jurídicos diversos.
Segundo as concepções do nacional-socialismo de Adolf Hitler, o primeiro dever
de todo cidadão deveria ser trabalhar intelectual ou corporalmente em prol do
bem comum, exigindo-se para tanto, uma reforma imobiliária que contemplasse a
permissão de expropriação sem indenização do solo, para fins de interesse
geral. O indivíduo não era tomado como pessoa isolada, mas apenas como membro
da comunidade nacional.
Nas palavras de Roger Bonnard, o povo germânico teria de desaparecer como
indivíduos, porquanto um povo racista não pode ser uma soma de indivíduos, mas
sim uma totalidade que absorve e anula os indivíduos; a atividade destes deve
orientar-se exclusivamente tendo em vista os interesses coletivos, não lhes
podendo ser atribuídos direitos subjetivos, mas apenas status de membros da
comunidade.
Esta doutrina geral teria, necessariamente, de refletir-se sobre o direito de
propriedade, assumindo este um caráter nitidamente social; a posição do
proprietário seria protegida pelo Direito quando, e apenas quando, se
harmonizasse com o espírito da comunidade.
Na Itália fascista, manteve-se a mesma idéia da propriedade função-social.
Considerando-se a iniciativa privada como o instrumento mais eficaz e útil para
o interesse nacional, ficando o organizador da empresa responsável, perante o
Estado, pelo bom andamento da produção.
A Carta Del Lavoro, de 31 de abril de 1927, declarava em seu art. 7º, in
verbis:
"lo
Stato corporativo considera l'iniziativa privata nel campo della produzione
come lo strumento più efficace e più utile nell'interesse della nazione.
L'organizzazzione privata deIla produzione essendo una funzione de interesse
nazionale, l'organizzatore dell'impressa à responsabile dell'indirizzo delIa
produzione di fronte allo Stato".
A nova Constituição da República Italiana, de 22 de dezembro de 1947, acentua o
caráter da função social que tem a propriedade privada. É livre a iniciativa
econômica privada, mas não pode desenvolver-se contrariamente à utilidade
social, ou de modo a ocasionar prejuízo à segurança, à liberdade ou à dignidade
humana. A propriedade privada é reconhecida e garantida por lei, que lhe
determina os modos de aquisição e os limites de gozo, com o objetivo de
assegurar-lhe a função social e torná-la acessível a todos.
Na Espanha, o Fuero deI Trabajo estabelece normas programáticas, evidenciando a
função social da propriedade privada. Preconiza o art.V, alínea 6ª , que:
"Es aspiración del Estado arbitrar los medios conducentes para que la
tierra, en condiciones justas, pase a ser de quienes directamente la
explotan".
Vale salientar que o art. 555 do Código Penal Espanhol comina pena a todo
aquele que destrói, inutiliza ou danifica uma coisa que, embora própria, tenha
utilidade social.
Em Portugal, o Estatuto do Trabalho Nacional (Decreto lei nº 23.048, de 23 de
setembro de 1933) estabelece que o exercício dos poderes de proprietário é
garantido quando esteja em harmonia com a natureza das coisas, o interesse
individual e a utilidade social expressa nas leis, podendo estas subordiná-lo
às restrições que exijam o interesse e o equilíbrio e conservação da
coletividade. É o que preceitua o art. 13 do citado Estatuto, in verbis:
"O exercício dos poderes do proprietário é garantido quando
em harmonia com a natureza das coisas, o interesse individual e a utilidade
social expressa nas leis, podendo estas sujeitá-lo às restrições que sejam
exigidas pelo interesse público e pelo equilíbrio e conservação da
coletividade. O vínculo que liga o proprietário ao objeto da propriedade é
absoluto, sem prejuízo, porém, da faculdade de expropriação, a qual só pode ter
lugar mediante a garantia de uma justa indenização, a fixar nos termos das leis
em vigor".
Tais considerações têm estreita relação com o que já preceituara o art. 11 do
mesmo diploma, isto é, que a propriedade, o capital e o trabalho desempenham
uma função social em regime de cooperação econômica e solidariedade.
Já na Rússia soviética, orientada pelos princípios marxistas, a propriedade
individual foi minimizada ao extremo.
O Código Civil soviético de 1923 estabeleceu, em.seu art. 1º o princípio de que
"os direitos civis são protegidos pela lei salvo quando sejam exercidos em
um sentido contrário a seu destino econômico e social", fórmula reputada
satisfatória por Josserand para elucidar sua teoria da relatividade dos
direitos.
Preceituou o art. 21 do Código Civil soviético que a terra é patrimônio do
Estado e não pode ser objeto de comércio privado, sendo sua posse admitida
apenas a título de gozo.
Através dessa ligeira análise, de caráter puramente objetiva, pode-se formar
uma idéia das transformações jurídicas por que passou a propriedade até nossos
dias, que a conduzem a uma utilização cada vez mais direcionada ao atendimento
das necessidades sociais.
IV -EVOLUÇÃO CONSTITUCIONAL DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL NO BRASIL
No Direito Constitucional Brasileiro, nota-se também lenta, mas contínua
evolução da propriedade privada que, passo a passo, caminha do
"individual" ao "social", caminho esse dentro do qual se
busca impor à propriedade o cumprimento adequado de sua função social.
Com efeito, a preocupação evidente do legislativo constituinte de 1967 e 1988,
com o adequado uso da propriedade para que ela cumpra plenamente sua função
social é o resultado da gradativa, e constante evolução do esboço do princípio
em alusão, cujo advento deu-se ainda sob a égide Carta Constitucional de 1934,
que prescrevia em seu art. 113:
"É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser
exercido contra interesse social ou coletivo, na forma que a lei
determina".
A Constituição Federal de 1937, a seu turno, contemplou- j o no
art. 122, que assim dispunha:
"O seu conteúdo e os seus limites serão, definidos nas leis
que lhe regularam o exercício",
A Constituição de 1946, inspirada na Carta de Weimar, prescreveu,
em seu art. 147, que:
"O uso da propriedade será condicionado ao bem- estar social.
A lei poderá promover a justa distribuição da propriedade, com igual
oportunidade" para todos".
A Constituição de 1967, que consoante Pontes de Miranda, fora
"freada por elementos reacionários(...)", apenas se refere à função
social da propriedade, em seu art. 160, inciso III, sem, contudo,
explicitar-lhe o sentido ou dimensão.
O direito brasileiro sempre teve limitações ao uso da propriedade. O Código
Civil mais as explicitou. Porém, uma coisa é o limite ao uso, elaborado
milenarmente, ou sob a inspiração de regras entre vizinhos, e outra, o limite
que não precisa do elemento conceitual da vizinhança, ou sequer, da proximidade.
Bem-estar social é, sem dúvida, conceito mais que vasto que o da vizinhança, ou
de proximidade. Cumpre, porém, advertir que esse conceito não outorga arbítrio
ao legislador, pois não é ele quem enuncia, segundo seu próprio talante, juízos
de valor, para limitar o uso da propriedade sob a invocação do bem-estar
social.
O art. 160, inciso III, não disse que a lei poderia limitar o uso do direito de
propriedade, devendo-se entender o preceito da seguinte forma: "O uso da
propriedade é garantido dentro da lei ". Fixado o conteúdo do direito de
propriedade, sabe-se até onde vai seu exercício, devendo-se extrair do art.
160, III que o uso da propriedade há de ser compatível com o bem-estar social,
pois se contra ele se apresentar há de ser desaprovado.
Mas a regra jurídica não é somente programática. Quem quer que sofra prejuízo
decorrente do mau uso que outrem dá à propriedade, malferindo ou mesmo
ameaçando o bem-estar social, pode invocar o multicitado art. 160, III,
inclusive para as suas ações cominatórias. A fortiori, o legislador, percebendo
que as leis penal, civil e administrativa não explicitam suficientemente, as
espécies de ofensa ao bem-estar social, pode e deve explicitá-las. Todavia, a
invocação ao art. 160, III não basta para que as regras jurídicas que ele
elabore escapem ao controle judicial. A intervenção do Estado é subordinada à
existência factual de dano ao bem-estar social.
Seja como for, pode a Justiça indagar o que o legislador considerou ofensa ao
bem-estar social, e o que será considerado suficiente a caracterizar a
necessidade de edição de normas infraconstituicionais. Ademais, o conceito de
bem-estar social é assaz largo, e certamente está inserido implicitamente nas
dimensões da "função social da propriedade".
No Texto Constitucional de 1988, a expressão, função social, prescrita no art.
59; , inciso XXIII, além de opor-se à função individual, inequivocamente
ultrapassada, designa realidade rica de significado, ao indicar o uso pleno
tanto para o imóvel urbano quanto para o imóvel rural. Leciona o mestre Alfredo
Buzaid, que "negando o direito subjetivo, a propriedade é considerada em
sua função social, devendo o poder público regulá-la de modo que produza o
melhor rendimento em benefício de todos" (in, Da Ação Renovatória, 1958,
2ª ed., vol. I,; págs.16/17).
A noção de função social, aplicada à propriedade, torna-se clara quando se
estuda a desapropriação por interesse social. O Estado' desapropria imóveis por
interesse social, quando esses imóveis, por serem improdutivos, ficam inertes,
deixando de servir a um grande número de pessoas, ou quando, mesmo não inertes,
poderão servir a maior número de pessoas.
Cumpre salientar que o princípio da função social da propriedade não se
confunde com os sistemas de limitação da propriedade, que dizem respeito ao
exercício do direito, ao proprietário, à estrutura do direito, enfim à
propriedade.
A implementação da função social à propriedade é sem dúvida um processo longo e
complexo, consoante defendeu Karl Renner, pois a função social se modifica com
as mudanças na relação de produção. Em face disto, toda vez que mudam as
relações de produção transforma-se a estrutura interna do conceito de
propriedade, de tal sorte que ad estabelecer que a propriedade atenderia a sua
função social mormente quando reputou tal princípio inerente à ordem econômica
(art. 170, incisos II e III), a Constituição não estava simplesmente
preordenando fundamentos às limitações, obrigações e ônus referente à
propriedade privada; estava buscando, também, assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social.
A norma que contém o princípio da função social da propriedade incide
imediatamente, isto é, tem aplicabilidade imediata, como o são todos os
princípios constitucionais. A própria jurisprudência assim já o reconhece. Com
efeito, o princípio da função social, no dizer de Pedro Collado,
"introduziu, na esfera interna do direito de propriedade, um interesse que
pode não coincidir com o proprietário e que, em todo caso, é estranho ao mesmo".
Saliente-se, entrementes, que se é certo o vigor do princípio da função
social, no mesmo azo há que se refletir que ele não autoriza a supressão, via
legislativa, da instituição da propriedade privada."
CONCLUSÃO
Ultimado
o presente estudo, que consistiu em perfunctória análise das teses relativas à
comunidade primitiva e sua evolução; à propriedade concebida como direito
absoluto, mormente no período feudal; à relatividade dos
.direitos; à experiência estrangeira; e à evolução constitucional do
princípio da função social da propriedade no Brasil admitimos as seguintes
conclusões:
1º) A responsabilidade pelo advento idéia da propriedade privada como direito
absoluto de primordialmente, não às leis, mais à Igreja que buscando fortalecer
tal direito, denominou-o sagrado;
2º) Os primeiros a se insurgir contra o caráter absoluto do direito à
propriedade, em verdade, não foram os anarquistas, ou os marxistas, mas os
antigos burgueses, que submetidos a pressões sociais adversas demonstraram
através do comércio, que a propriedade não constitui a fonte única de poder e
riqueza;
3º) O princípio da função social da propriedade, insculpido em ordenamentos
diversos, inclusive no ordenamento pátrio, tem figurado como princípio
instrumental para a consecução de princípio maior, qual seja, o da igualdade;
4º) A função social, mesmo erigida ao status de preceito constitucional de
eficácia plena, tem sido obstaculizada por forças sociais ocultas, exatamente
por representar valor contrário aos interesses detentores de poder econômico (e
político).
BIBLI OGRAFIA
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