O IPTU E A IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DOS TEMPLOS

JOSÉ VIDAL SILVA NETO

Procurador do Município de Fortaleza

Sumário:
I – Introdução;
II - Relação jurídica tributária e relação imunitória;
III - Descabimento da ação quando tende a obter declaração de relação jurídica em tese;
IV - Aplicação integral das rendas provenientes dos templos no território nacional.
V - Conclusão.

I - INTRODUÇÃO.

Nossa dissertação objetiva, fundamentalmente, demonstrar a impossibilidade do contribuinte eximir-se, ad aeternum, de obrigações jurídicas tributárias, rogando, em sede de ação declaratória, a afirmação de imunidade em abstrato, que, desta forma, já se encontra assegurada na Constituição. Ao contrário, a declaração de imunidade, para atingir seus fins, deve ser materializada num período definido de tributação e abarcar uma quantidade delimitada de relações jurídicas. Descabida aquela, portanto, quando visa obtenção de declaração de vínculo em tese.

Ao mesmo tempo, almeja-se tecer algumas considerações a respeito da exigência implicitamente contida na Constituição Federal, consistente na necessidade de aplicação dos ganhos auferidos pelos templos, de qualquer culto, no território nacional, para concessão do benefício imunitório a eles aplicável.


II -RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA E RELAÇÃO JURÍDICA IMUNITÓRIA.

Estudando a fenomenologia da norma jurídica tributária, Alfredo Augusto Becker, em seu clássico "Teoria Geral do Direito Tributário", definiu, com acuidade a existência da relação jurídica:

"Para que possa existir a relação jurídica tributária é necessário que, antes, tenha ocorrido a incidência da regra jurídica tributária sobre o fator gerador e, em conseqüência, irradiado a relação jurídica tributária". (Ed. Saraiva, 2ª edição, p. 288. Grifos do autor).

A
incidência da norma, pré-requisito para a geração de uma relação jurídica, dá-se quando um fato do mundo reproduz, em todo o seu desdobrar-se, o suporte fático da norma, posto como hipótese condicionante da atuação da última. Há a perfeita identidade entre a previsão abstrata do fato descrito na lei e um dos milhares de acontecimentos do plano do ser. Focado, desta maneira, este evento se diferencia da mera facticidade dos demais, adquire a nota da juricidade e cria a relação jurídica, que vincula certos e determinados sujeitos, e não outros, a uma específica regulação de condutas.

O mesmo Becker doutrina acertadamente:

"O fenômeno da atuação dinâmica da regra jurídica, isto é, a incidência automática da regra jurídica sobre a sua hipótese de incidência, somente desencadeia-se depois da realização integral da hipótese de incidência e pelo acontecimento de todos os fatos nela previstos e que formam a composição específica àquela hipótese de incidência. Depois da incidência da regra jurídica é que ocorre a irradiação dos efeitos jurídicos, os quais consistem nas conseqüências (relação jurídica e seu conceito de direito e dever) pré-determinados pela regra que, juntamente com a hipótese de incidência, compõe a estrutura lógica da regra jurídica". (idem, p. 290, grifado pelo próprio autor).

Não destoa deste esquema o funcionamento da norma de imunidade tributária, relativamente às relações dela originadas. Se o preceito de imposição tributária incide após o momento da realização de sua hipótese de incidência, externando a relação jurídica tributária, cujo conteúdo é uma obrigação contra o contribuinte e um direito a favor do Fisco, a regra imunitória comporta-se semelhantemente, divergindo apenas em razão de ser o reverso do espelho: aqui há uma obrigação jurídica contra o Fisco em contra partida ao direito do contribuinte.

Explicando melhor, analisaremos o seguinte exemplo: o fato gerador presente na lei instituidora do IPTU é o domínio por parte de um indivíduo de um imóvel na zona urbana. Os elementos materiais da hipótese de incidência são, portanto, a existência de um pedaço de chão ou edificação na urbe e de um direito de propriedade sobre os mesmos, por alguém gozado.

Satisfeitos estes postulados durante o período-base de uma ano, incide plenamente a exação mencionada. Entretanto, tratando-se de um templo o bem referido, ao invés da regra legal de imposição de tributo, é a regra constitucional de liberação que incide em seu lugar, afastando a aplicação daquela.

A distinção entre os elementos da norma tributante e os da norma de imunidade reside em que esta acrescenta àqueles algum fato excedente. Na simulação cogitada, à existência de um prédio urbano objeto de direito real, adiciona-se a circunstância de o mesmo ser devotado ao culto à Divindade, para que de imediato desapareça a possibilidade de incidência do IPTU.

Vê-se, então, que a relação imunitória contém, forçosamente, em seu bojo, os elementos da relação tributária, além dos que lhe são peculiares, justo com o fito de neutralizá-la e ser seu avesso. Só se confere imunidade a fatos, em tese, passíveis da mesma tributação de que se livram, não fosse a presença de uma característica a mais, considerada relevante axiologicamente pelo legislador, influenciando-o a retirá-los do âmbito de eficácia da lei tributária. Compõe-se a relação de imposição do fato gerador A e a relação de imunidade, dos fatos A e B. A última variável é a única que as separa.

Nas palavras do decantado Becker:

"A regra jurídica que prescreve a isenção, em última análise, consiste na formulação negativa da regra jurídica que estabelece a tributação. A realização da hipótese de incidência da regra jurídica de insenção, faz com que esta regra jurídica incida justamente, para negar a existência de relação jurídica tributária". (lbidem).

Tendo em conta tal formulação, revela-se o erro crasso de considerar a imunidade, por situar-se em patamar constitucional, um direito absoluto, válido erga omnes, ínsito à personalidade dos entes religiosos, sem atender à particularidade do contexto concreto de que depende a sua incidência.

Não se há de equipará-la à feição própria dos direitos fundamentais, verbi gratia, o direito à vida, que permeia a generalidade das ações humanas, incidindo constante e incondicional, inafastável pela multivariedade de situações e combinações fáticas postas pela realidade.

Inclui-se, também, nesse rol, no que tange à eficácia, o axioma da legalidade tributária.

Tão amplo poder de subsunção se justifica com a natureza principiológica destas normas, mandamentos nucleares do ordamento jurídico, a nortear a intensidade de eficácia e a interpretação de gama vária das demais normas.

Não assim a imunidade de que se cuida. No intuito de aferir a produção dos efeitos que lhe são conaturais, impende, antes, verificar numa situação concreta dada, com titulares de direito diferenciados e reconhecidos, objeto determinado da possível prestação tributária, localizados em certo período de espaço.e tempo, se a norma impositiva potencialmente incidiria.

A integralidade dos elementos da relação tributária devem estar previamente definidos e especificados para avaliar se a estes se junta o componente adicional típico do dispositivo imunizatório, qual seja, o caráter de templo com que o imóvel é usado, afastando, aí sim, a infalibidade da atuação da previsão tributária.

Esta operação se repetirá tantas vezes quantas se formem cenários fáticos suscetíveis in potentia de tributação pelo IPTU. Vigente a norma constitucional de limitação à potestade tributante, incide não de uma só feita, garantindo in abstractu relação indissolúvel enquanto válida a mesma, mas se aplica diversas vezes, de acordo com a eclosão dos eventos iguais à fattispecie, criando uma série de relações liberadoras do imposto, referentes a períodos-base que se sucedem no tempo, que dariam à luz obrigações tributárias diferenciadas, não fosse a imunidade.

A existência da relação jurídica de imunidade ou deste conjunto inconfundível delas exige a averiguação dos requisitos supra, impedindo a falta de algum a prolatação de sentença que a declare.


III -DESCABIMENTO DE AÇÃO TENDENTE A ALCANÇAR DECLARAÇÃO DE RELAÇÃO JURÍDICA EM TESE.

Inviável a declaração de relação em tese, abstrata, modelo fictício a valer para quaisquer relações jurídicas reais que venham a nascer no futuro, ou até para as que nunca venham a ser procriadas. Seria um franco desrespeito à incessante mutabilidade das situações da vida. Abstrações inexistem, são apenas processos intelectivos de representação das coisas do mundo.

Num certo ano-base pode haver imunidade de IPTU relativamente a um imóvel tido como templo, mas isto não garante que no ano seguinte ou em todos os anos que se sigam, inclusive no apagar dos séculos, continue o bem a ser utilizado na prece ao Além, mantendo o direito à imunidade. Durante um prazo já transcorrido e delineado quantitativamente, factível ao interessado, mediante prova cabal, demonstrá-lo. Não se pode prender setença por prazo indeteminado, extrapolando-se, por completo, da órbita das relações de direito efetivamente havidas, a valer sobre um número nebuloso e ignorado de templos não elencados mesmo os que nem ultrapassam a prancheta do arquiteto, ou ainda não adquiridos os imóveis necessários ao escopo colimado.

Acreditar que sentença declaratória é apta a atestar a existência de relações decorrentes de fatos inexistentes, ou seja, do nada, é absurdo parelha aos contos da carochinha. Os juristas romanos, da antiguidade reverente de suas tumbas, continuam a ecoar na modernidade: Ex facto oritur jus.

A percuciência sem par de Pontes de Miranda chancela sem ressalvas a tese aqui aduzida. Senão, vejamos, in verbis:

"A relação jurídica deve ser existente no momento em que se pede a declaração, ou há de ser negada em sua existência a esse momento. A relação jurídica futura, por ainda não estar composto o suporte fático do fato jurídico de que se irradiaria, não pode desde já ser declarada". (Comentários ao Código de Processo Civil de 1973, Ed. Forense, Tomo I, p. 188. Grifei).

Em
concordância estrita a jurisprudência pátria, que calha trazer à transcrição:

"Em matéria fiscal, julga-se extinto o processo sem julgamento de mérito, quando, com a lide, se pretende obter declaração da existência ou inexistência de relação tributária em tese, acobertando-se o contribuinte da indenidade para uma série ilimitada e imprevisível de casos, tudo de forma abstrata. A ação declaratória só tem cabimento quando se invoca um fato já ocorrido e concretamente definido no tempo, espaço e em todos os elementos identificadores". (. unân. da 4ª Câm. do T J-MG, apelo 67.099, rel. des. Vaz de Mello, Juris. Min., vol. 92, p. 318. Grifei).

Desta
forma, o contribuinte não pode substituir a súplica de declaração da imunidade materializada num exato período de tributação, abarcando uma quantidade finita de templos por um pedido de declaração genérico. Tal seria inútil, por redundante, em razão de o Estatuto Político já o declarar com fartura de letras, garantindo a todos os templos, não só aos de um contribuinte, e abrangendo a toda espécie de imposto, além do IPTU, esta não incidência.

Ademais, o dispositivo é auto-aplicável sendo despiciendo pronunciamento judicial para que vigore plenamente, mormente quando o juiz, necessariamente vinculado aos termos em que foi elaborado o pedido, limitar-se-ia, sem escapatória, ao ridículo papel de papagaio repetidor da literalidade do texto constitucional.

Relação jurídica é conjuminação harmoniosa de fato e norma. Sem fato, não há relação jurídica a declarar. Eliminado o componente fático, o Judiciário, na ação declaratória, sofreria metamorfose radical, convertendo-se em improdutivo órgão de consulta, a decidir quaestio juris de somenos importância ou informando se uma lei é ainda válida ou não. Às claras, não lhe serve tão medíocre atribuição.

De bom alvitre colacionar as preclaras vozes jurisprudenciais: "Amplo é o campo da ação declaratória, tal como instituída em nossa legislação. Para a sua instauração, basta que o interesse do autor limite-se ao da declaração da existência de determinada relação jurídica (...) Ela não visa à declaração da existência ou não da regra legal-direito subjetivo, mas, apenas, da existência ou não de uma relação jurídica em cuja configuração, aí sim, entram fato e norma". (. unân. daCâm do T J-BA, de 28/09/82, apelo 496/82, rel. des. Hélio de Andrade Pimentel. Grifei).

Barbosa
Moreira, processualista de escol, não deixa por menos: "Não cabe ação declaratória, se o pedido envolve mera consulta, inexistindo referência específica à relação jurídica determinada". (. unân. daCâm do T J-RJ, de 19/10/82, apelo 24.056, rel. des. Barbosa Moreira. Grifei).

Restringindo-se o interesse do autor, em relação meramente declaratória, exclusivamente à declaração da existência ou não de relação jurídica (art. 40 do CPC), óbvio que, inexistindo no vestibular algo que ao menos se assemelhe a uma relação jurídica a declarar, falece interesse processual de agir à entidade autora.

Tanto isto é verdade, que, forçosamente, sentença favorável a uma tal declaração genérica seria cópia primária do comando abstratamente previsto na Carta Magna e, como tal, restaria inócua ao atendimento da pretensão ajuizada, pois, devido à sua indeterminação e teor in extremis vago, permaneceria impotente no tocante a impedir em juízo outro a cobrança de obrigações tributárias concretas. O fato de existir um templo no período de tempo considerado se sujeitaria inexoravelmente à renovação da instância probatória, matéria esta não evitada por suprimento consistente em singela declaração.

Conceitua-se o interesse de agir como a tendência natural a que o provimento jurisdicional pedido traga o resultado útil necessário à pretensão do autor. Revelado, de chofe, que o atendimento ao pleito redundaria em insatisfação total do interesse substancial deduzido, em nada lhe aproveitando, impõe-se ao juiz, de plano, extinguir o processo.

IV -APLICAÇÃO INTEGRAL DAS RENDAS PROVENIENTES DOS TEMPLOS NO TERRITÓRIO NACIONAL

Vale salientar que, inobstante a juricidade completa e integral do texto constitucional no que tange à imunidade em foco, desnecessária a sua complementação por legislação de hierarquia inferior, incumbe atentar para a recepção por parte da atual Carta Política da lei 3.193 de 04 de julho de 1957, que cuida da matéria relativa à isenção (sic) de imposto sobre templos de qualquer culto, bens e serviços de partidos políticos, instituições de educação e assistência social. Fora de hesitação, permanece ela plenamente aplicável na ordem jurídica vigente. A impropriedade terminológica de nomear como "isenção"o que é imunidade não importa, pois a Constituição conferiu a estas espécies de pessoa jurídica liberação de quaisquer impostos, definindo-o como imunidade, o que faz notar que um só fenômeno foi denominado com duas palavras. O legislador ordinário apenas trocou os momes.

A mencionada lei condiciona o deferimento da imunidade em tela, na parte final do seu art. 1º, ao cumprimento da exigência consistente na aplicação integral das rendas provenientes dos templos no território nacional.

Não se há de bradar contra tal dispositivo, nem pôr em dúvida sua constitucionalidade, sob a pífia alegativa de que a Constituição ou o CTN nada falam a respeito. Celso Ribeiro Bastos, em erudito estudo publicado na
"Revista de Direito Tributário", número 5, ed. RT, p. 223, intitulado "Imunidade dos Templos", fulmina impiedosamente tal falácia:

"Esta cláusula já era expressamente prevista pela Constituição de 1946. A atual, como vimos, é omissa. Imuniza os templos de qualquer culto sem, contudo, fazer referência à destinação a ser dada às verbas por eles auferidas. Ainda assim, quer-nos parecer que a regulamentação deva ser cumprida, um vez que se compreende dentro da própria expressão " templos de qualquer culto". (Grifei).

A
previsão legal nada adiciona ou modifica no texto constitucional. Isto porque, se aceitássemos que as rendas auferidas nestes templos fossem deles desviadas, para outros países, por exemplo, teríamos necessariamente de reconhecer que as verbas saíram da órbita estritamente delimitada à imunidade, que é a sua aplicação integral apenas às atividades desses cultos sediados em nossa pátria, porque a Carta Magna é norma tipicamente nacional e seus dispositivos têm âmbito definido pela comunidade política a que se destina a regulação de condutas. O comando legal já se encontra implicitamente contido na imunidade constitucionalmente versada.


V- CONCLUSÃO

Acentue-se, em suma, o colorário segundo o qual o interesse do autor se cinge, exclusivamente, à declaração da existência ou não de relação jurídica, nos termos do art. 4º do CPC, e desta baliza não desbordará, sob pena de seu inevitável indeferimento.

Relação jurídica, é conjuminação harmoniosa de fato e norma, quando aquele reproduz a previsão desta. Sem substrato fático, nenhum liame sujeitos de direito surge.

Do que é lícito inferir: não aflorando no processo a relação ou relações precisamente definidas, derivadas de uni ou mais fatos jurídicos, condição sine qua non prevista na lei adjetiva, impende ao juiz dar pela carência de ação.

Freqüentemente, confunde-se a feição da relação de imunidade, simétrica à de tributação, com o caráter das normas principiológicas da Lei maior. Estas não têm hipótese de incidência com contornos definidos, irradiando seus efeitos quase em independência dos fatos subsumidos. Sejam quais forem estes, a generalidade dos princípios garante que sejam capazes de abarcar quaisquer situações humanas, e.g., o direito à vida e o princípio da legalidade. Não assim com a imunidade tratada. Sua incidência depende de o evento ser, em tese, suscetível de sujeição tributária in concreto, ao lado de um requisito adicional, seja, a de que ao conjunto daqueles fatos geradores, se some mais uma concreção: a realidade de no período de tributação X ter o bem imóvel Y efetivamente servido de templo.

Por último, pressuposto material da concessão da imunidade templária é a de que as rendas do culto sejam investidas no Brasil, extensão da ratio juris do preceito constitucional, independente de pronunciam neto legal, sem o que se estaria lançando o manto de proteção das coisas e pessoas sob a égide dos valores supremos da nação, a objetos externos a eles.