A
FALSIDADE DA PROVA PERICIAL COMO CAUSA DA RESCINDIBILIDADE DA SENTENÇA
PROFERIDA EM PROCESSO DE DESAPROPRIAÇÃO
MÁRCIO
ANDRADE TORRES
Procurador
do Município e Mestrado em Direito pela UFC
INTRODUÇÃO
O procedimento da Ação de Desapropriação é disciplinado, quase que
exclusivamente, pelo Decreto-Lei nº 3365, de 21 de junho de 1941. Dentre as
particularidades do rito ali delineado destaca-se a inafastabilidade da
realização da prova parcial, da qual o juiz somente deverá declinar em caso de
concordância expressa com o preço oferecido pelo órgão expropriante.
E certo que o Magistrado não fica adstrito ao laudo parcial, podendo formar sua
convicção a partir de outros elementos e fatos provados nos autos. Mas, por
outro lado, poucos são os juízes que conhecem a fundo as regras técnicas
norteadoras da avaliação de imóveis, pelo que o laudo técnico, nessas
circunstâncias, passa a ser peça decisiva na fixação do quantum indenizatório.
Daí, para o operário do direito que atua nessa área, passa a ter significativa
importância o estudo pormenorizado das normas técnicas que orientam a
elaboração de laudos periciais, bem como dos possíveis vícios que essas peças
processuais probatórias possam carregar, tornando viável o reconhecimento de
sua imprestabilidade para cumprir no fim o que a ordem jurídica lhes destinou.
Dentre os mecanismos que o direito processual põe à nossa disposição para atacar
a perícia viciosamente elaborada destacaremos, para fins de nossa dissertação,
por suas peculiaridades, a Ação Rescisória fundada em prova falsa.
Ação Rescisória de Sentença
Fundada em Falsa Prova Pressuposto Genérico e Específica
À primeira vista, há incompatibilidade entre o instituto da coisa julgada,
tutelado constitucionalmente, e a admissibilidade da Ação Rescisória, como meio
de se postular a inoperância ou o desfazimento da sentença já transitada em
julgado.
Justifique-se, com acerto, que entre a realização da Justiça e a proteção da
segurança jurídica deve prevalecer a primeira, uma vez que por aquela, a
segunda se perfaz axiologicamente. A exigência da justiça somente deve
conciliar-se com a exigência da certeza até o ponto em que, indubitavelmente, a
imutabilidade da sentença não venha a ser mais nociva que os vícios que a podem
macular.
Superada a questão do fundamento genérico da rescisão, passamos a traçar, ainda
que brevemente, um relato histórico da Ação Rescisória, que no dizer de Liebman, é derivação direta da querela nullitates
do direito romano, que se destinava a provocar a declaração de nulidade de
sentenças inválidas, mas não injustas. Assim concebida, atravessou o direito
medieval, o canônico, e os que ,se lhe seguiram, até
que na Alemanha, através da "Restitutionsklage"
passou a ter significação diferente. Já não se cogita somente de sentenças
nulas, que a qualquer tempo poderão ser impugnadas, mas de decisões que, apesar
de válidas formalmente, seriam rescindíveis por motivos ligados à própria idéia de justiça, mas mediante pressupostos taxativamente
enumerados por lei. Não por ser injusta que a sentença pode ser rescindida, mas
sim por aquelas causas de injustiça elencadas legalmente.
O pressuposto genérico às ações dessa natureza consiste' em serem dirigidas,
com exclusividade, contra decisões de mérito já transitadas em julgado, das
quais não cabe ou não pende qualquer recurso, não estando sujeitas "ex vi legis ao duplo grau de jurisdição", como bem
lembrou José Carlos Barbosa Moreira (opus cit, pág.
119).
Relativamente à falsidade de prova, o art. 485, inciso VI do Código de Processo
Civil, faz permitir a rescisão da sentença quando esta:
"VI -se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em
processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória".
O dispositivo supra citado induz ao entendimento de que deve
existir, entre a sentença rescindenda e a prova tida como falsa, um nexo de
causalidade plausível, pelo que há de se chegar à conclusão de que a decisão não
será rescindível se existente outro fundamento bastante para o entendimento do
órgão judicial, podendo, no entanto configurar-se a admissibilidade da rescisão
parcial. Em que se tratando de sentença proferida em ação de desapropriação, a
regra é de que, induvidosamente, a relação de causalidade é manifesta.
Outro pressuposto específico de suma importância é o que pertine
à apuração da falsidade. Admite-se tanto seja produzida em processo criminal
como no curso da ação rescisória, embora que na ultima
hipótese com certa desvantagem para o autor, que precisará, pari passu,
demonstrar de maneira inequívoca em que consiste a falsidade. E, para as
falsidades que tipificam delitos, há uma certa tendência para a exigibilidade
da instauração de ação penal como condição de procedibilidade civel, que é veementemente abrandada quando que se sopesam,
de um lado, os efeitos objetivos e subjetivos da sentença rescindenda, e do
outro, a problemática da legitimação processual penal e do tipo de falsidade.
Importante ainda lembrar que a prova ensejadora do levante de falsidade pode
ser de qualquer natureza, inclusive a pericial. Não há lugar, ainda, para a
exclusão da falsidade ideológica. Moacyr Amaral dos Santos chega a admitir,
fundamentalmente, a argüição de falsidade das
presunções, quando o juiz, ao sentenciar, se valha de fato auxiliar (factum probantum) comprovado por
falsa prova, que constitui a "premissa menor do silogismo presuntivo
"(opus cit (1), pág. 449).
A Falsidade
Para introduzir o tema a que reservamos maior dedicação em nossa dissertação,
cumpre informar, preliminarmente, o conceito de falsidade. Qualquer alteração
ou supressão da verdade, não importando o modo pelo qual se produza ou a
obtenha, e a finalidade da ação ou omissão nesse sentido, caracteriza a
falsidade. Nesse conceito, abrange-se tanto a falsidade material como a
ideológica. Moacyr Amaral dos Santos, com clareza e percuciência, empresta-nos
os seguintes conceitos básicos:
" A falsidade material opera-se, geralmente, por dois modos: pela confecção
de documento falso, isto é, pela criação de documento falso; ou pela
adulteração, ou alteração, de documento existente, seja transformando-o
materialmente, ou adicionando-lhe, suprimindo-lhe ou
substituindo-lhe palavras ou cifras.
A falsidade ideológica diz respeito à substância do ato ou fato representado no
documento. Materialmente o documento é perfeito; no entanto traduz idéias, declarações, notícias falsas" (in Primeiras
linhas de Direito Processual Civil, 2º Volume, pág. 416, nº 632, Ed. Saraiva,
1990, SP, grifas inovados).
Ao que se percebe com facilidade, a falsidade do laudo técnico que nos
interessa para fins de estudo é de natureza ideológica, que diz respeito à
substância do ato, já que inquinado de falsidade material, passa a ser objeto
de mera falsidade documental, passível de argüição
nos termos dos arts. 390 e seguintes no CPC. Ao contrário, sendo
ideologicamente falso, não pode ser considerado documento pura e simplesmente.
Passa a prevalecer sua natureza substancial de ato do processo, com vistas à
elucidação do julgador que, em sua decisão, acabará por convencer-se inspirado
na peça técnica.
A Ação Penal por Crime de Falsa
Perícia não Constitui Condição de Procedibilidade para a Rescisória
Cumpre, ainda em caráter introdutório, enfrentar um outro problema que se nos
apresenta controvertido, embora de fácil solução. O Código Penal, em seu art.
342, tipifica a figura da falsa perícia, ad litteris:
"Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a
verdade, como testemunha, perito, tradutor ou intérprete em processo judicial,
policial ou administrativo, ou em juízo arbitral"
Poder-se-ia perguntar, com justa razão, se cuidando a lei penal de
descrever o tipo de falsa perícia, haveria necessidade de se comprová-la no
juízo criminal, sob pena de impossibilitar-se a propositura rescisória, até que
definitivamente julgada a ação penal. Entendemos que não. Primeiro, por que o
prazo para o ingresso da rescisória é de dois anos a contar do trânsito em
julgado da sentença, tendo natureza eminentemente decadencial, pelo que não se
suspende ou interrompe, em hipótese alguma. Assim, não se pode obstar a
provocação da rescisória, sob o pretexto de falta de condição de
procedibilidade, qual seja a declaração da falsidade via processo criminal. O princípio
da inafastabilidade e da indeclinabilidade do direito de ação não nos deixa
mentir.
Por outro lado, a ação penal é privativa do Ministério Público, e este, caso
entenda, pode deixar de promovê-la, quando não encontre indícios concretos da
existência de crime ou de sua autoria, embora nesses casos caiba reexame dessa
decisão do parquet, forma do art. 28 do Código de Processo Penal. Não pode,
também, o direito violado da parte contra quem foi proferida sentença
condenatória fundada em falta perícia, ficar ao talante da iniciativa privada
de um órgão, que a perde somente quando não a toma dentro do prazo legal,
ensejando a ação penal privada subsidiária.
Por último, ressalta-se que a enumeração de condutas do art. 342 do Código
Penal leva à conclusão que a falsidade da perícia é de natureza ideológica,
consumando-se, normalmente, não pela elaboração do laudo em si mesmo, mas pelas
afirmações nele contidas e posteriormente prestadas pelo perito em juízo, em
especial quando comparece à audiência de instrução e julgamento. O laudo,
geralmente circundado e apoiado em normas técnicas especialíssimas,
dificilmente deixará transparecer qualquer indício perceptível de falsidade,
pelo que o princípio do in dubio pro reo falará mais alto que jus persequendi do Estado. Se, na averiguação da falsidade
pericial não estiver em jogo, a liberdade do perito, certamente os canais de
apreciação dos indícios do falso estarão mais abertos à propagação da Justiça.
A Falsidade do Laudo Técnico
A falsidade do laudo técnico que ora se examina é a ideológica.
Consiste em alterações ou supressões da verdade pelo perito, com o fito de
fazer aumentar o valor do imóvel objeto da avaliação. Sendo peça técnica por
essência, pode ocorrer ainda pelo abandono das normas que regem a elaboração de
cálculos avaliatórios, quando se puder concluir que o
técnico, abstendo-se de adotar tais critérios, ou adotando-os em descompasso
uns com os outros, provoca a elevação do preço do imóvel ou não lhe diminui
apesar de presentes condições fáticas para tanto.
Necessário, nesse instante, fazer-se breves anotações, meramente ilustrativas,
acerca do critério usualmente adotado pelos peritos, para fins de avaliação de
imóveis. Trata-se do método comparativo.
Por esse método, o valor do bem que se avalia é obtido pela comparação com
outros semelhantes, cujo valor é já conhecido, seja por negócios efetivamente
realizados, seja por ofertas confiáveis. Busca-se, o tanto quanto possível, uma
identificação entre os bens que servem de paradigma e o objeto da avaliação,
exigindo-se semelhança de situações fáticas entre um e outros.
Entretanto, essa técnica, por si só, não é suficiente. A ela, devem se aplicar
critérios e métodos variados, especialmente no sentido de homegeinizar
as amostras comparativas, com a eliminação dos elementos suspeitos da pesquisa,
ou seja, aqueles que, apesar de presumivelmente válidos, apresentam-se em desvalor ou hipervalorizados relativamente aos demais
(desvio padrão).
O perito, profissional especializado que é, tem a obrigação de conhecer e
aplicar, quando da elaboração do laudo, todas as regras técnicas que se impõem
à sua feitura, e ainda atender à imposição legal de analisar a situação
particular do imóvel, já que em sede de desapropriação cabe inclusive
diminuição do preço do imóvel desapropriando tendo em vista o status quo ante,
abstraindo-se a valorização sobrevinda com as obras e serviços viabilizados
pelo ato expropriatório.
Fugindo o laudo pericial do dever de fiel e vinculadamente
aplicar as normas técnicas de avaliação, ou mesmo as aplicando, vindo a trazer
na sua literalidade qualquer afirmação falsa ou ainda omitindo algo que diminua
o valor do imóvel, é de se reconhecê-lo como possível de argüição
própria de falsidade, em que a ação rescisória funciona como remédio jurídico
de grande valia, possibilitando a correção de indenizações que beiram as raias
de improbidade.
BIBLIOGRAFIA
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