O DIREITO À CIDADE: da pÓlis grega A fortaleza

Tiago Seixas Themudo

Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará (1997), mestrado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999) e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (2004). Atualmente é professor em tempo integral do Centro Universitário 7 de Setembro. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito Privado e Relações Sociais; titular da disciplina de Antropologia Jurídica à luz do Direito Privado. Coordenador do grupo de Pesquisa em Teorias do Desenvolvimento e Direito Privado.

Gabrielle Gadelha Cardoso

Discente do Curso de Direito-UNI7. Bolsista do programa de Iniciação Científica junto ao grupo de pesquisa  em Teorias do Desenvolvimento e Direito Privado.

Resumo: A história da cidade no ocidente é marcada por uma alternância entre modelos oligárquicos de organização, em que a cidade fica restrita ao usufruto de poucas pessoas, e modelos democráticos, nos quais todos os cidadãos são convidados a participar da construção do espaço comum. Na modernidade, com a crescente mercantilização do espaço, o fenômeno da segregação urbana tem se intensificado, restringindo o direito à cidade a parcelas cada vez menores da população. Articulando referência históricas, sociológicas e jurídicas, este artigo tem como objetivo analisar a tensão social entre o público e o privado na construção dos espaços urbanos das cidades contemporâneas, mais especificamente o processo de efetivação das Zonas de Interesse Social (ZEIS) na cidade de Fortaleza.

Palavras-chave: Cidade. Criatividade institucional. Democracia. Lei.

THE RIGHT TO THE CITY: FROM GREEK POLIS TO FORTALEZA

Abstract: The history of the city in the west is marked by an alternation between oligarchic models of organization, in which the city is restricted to the usufruct of few people, and democratic models, in which all citizens are invited to participate in the construction of the common space. In modernity, with the growing commodification of space, the phenomenon of urban segregation has intensified, restricting the right to the city to even smaller portions of the population. Articulating historical, sociological and juridical references, this article aims to analyze the social tension between the public and the private in the construction of the urban spaces of the contemporary cities, more specifically the process of realization of the Zones of Social Interest (ZEIS) in the city of Fortaleza .

Keywords: City. Institutional creativity. Democracy. Law.

A utopia deve ser considerada experimentalmente, estudando-se na prática suas implicações e consequências. Estas podem surpreender. Quais são, quais serão os locais que socialmente terão sucesso? Como detectá-los? Segundo que critérios? Quais tempos, quais ritmos de vida cotidiana se inscrevem, se escrevem, se prescrevem nesses espaços "bem sucedidos", isto é, nesses espaços favoráveis à felicidade? É isso que interessa.

Henri Lefebvre

INTRODUÇÃO

Mostra-se, aqui, a cidade sendo historicamente negada para seus habitantes, mas reivindicada por eles por ser um bem social. De tal forma que deve haver em seu planejamento a participação popular. Explora-se em três recortes temporais os meios utilizados na tentativa de democratizar a construção do espaço, uma delas na atual conjectura da cidade de Fortaleza, no Ceará. A reivindicação da cidade pelos citadinos vem a fim de atender as necessidades inerentes à todos os cidadãos, e não somente a interesses de uma minoria.

O objetivo deste artigo é demonstrar que a atual movimentação social que busca a efetivação do direito à cidade encontra precedentes na história antiga. Ou seja, pretendemos expressar que historicamente os habitantes de determinado espaço geográfico, que denominamos “cidade” ou “pólis”, buscam participar da construção e uso do espaço, cada qual com os instrumentos institucionais que conseguiram criar. O segundo objetivo do artigo é compreender os dispositivos jurídicos brasileiros que tratam da política urbana atualmente, como eles foram desenvolvidos e qual sua real efetivação em Fortaleza.

Em termos jurídicos, utiliza-se a legislação brasileira existente, como o Estatuto da Cidade, para demonstrar a tentativa e possibilidade de efetivar o Direito à cidade.. Conceitualmente, somente podemos falar dele na modernidade a partir da obra de Henry Lefebvre, “Le droit à la ville”. No entanto, ao analisar a história enxerga-se na Grécia antiga a experiência de uma transformação social que também alterava o espaço e sua construção com o objetivo de torná-lo mais democrático.

Atualmente em Fortaleza, vive-se um momento no qual a sociedade civil reivindica o seu direito de participar das decisões sobre a reforma urbana. Observamos ainda uma crescente preocupação e consequente positivação jurídica, em cuidar da organização urbana com o objetivo de construir uma cidade mais justa e sustentável.

Portanto, será analisada de forma geral nesse trabalho a legislação destinada a esse fim, desde o ordenamento jurídico nacional (Art.182 e 183 da Constituição Federal e Estatuto da cidade) até o local, de Fortaleza (Plano Diretor Participativo/2009).

Para tanto, foi realizada revisão bibliográfica de obras internacionais como “The city” escrita pelo sociólogo Robert Park, a história grega trabalhada por Jean Pierre Vernant, a obra precursora no tema de direito à cidade elaborada por Henry Lefebvre, as possibilidades da organização social trazidas por David Harvey em “Cidades Rebeldes”, ainda textos de outros autores internacionais e nacionais.

Para compreensão do ordenamento jurídico brasileiro a respeito do tema preferiu-se autores como Cláudio Ari Mello e Thiago Aparecido Trindade. Nessa etapa também foi utilizado o método de observação participativa em grupos sociais ativos na luta para efetivação do Plano Diretor Participativo de Fortaleza, entrevistas com atores sociais relevantes para o tema, bem como análise de argumentos apresentados em palestras científicas e audiências públicas.

A escolha do tema seguiu dois principais motivos. O primeiro deles foi a observação da desigualdade existente na disposição da infraestrutura urbana de Fortaleza que trouxe com ela a necessidade de compreensão daquele fenômeno. O segundo, naturalmente, se apresentou como o desejo de produzir argumentos científicos que justifiquem a mudança na ordem atual. Este tem como especial finalidade embasar a argumentação da luta por uma existência materialmente mais digna.

O desenvolvimento do texto se divide em cinco tópicos. No Tópico 1, “Algumas considerações sobre cidade”, mostra-se qual o conceito de cidade utilizado para construção desse trabalho, bem como algumas considerações a respeito da história do direito à cidade. No segundo, Direito à cidade na pólis grega, um breve histórico da antiga Grécia e a relação disso com o contexto moderno e contemporâneo. No tópico 3, Caracterização jurídica, são trabalhadas as características jurídicas do Direito à cidade no Brasil. Por último, “Positivação jurídica”, fica demonstrada a positivação desse direito no ordenamento jurídico nacional, a partir de um breve relato e a análise das respectivas leis. Por último, no tópico 6, A efetivação, trata-se da aplicação da legislação vigente a respeito do tema, especialmente na cidade de Fortaleza, utilizando como principal exemplo o bairro do Serviluz, localizado na orla marítima e determinado atualmente como uma Zona Especial de Interesse Social.

1. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE CIDADE

Antes de compreender o direito à cidade, é necessária a compreensão do conceito de cidade. Afinal, o que seria o objeto desse direito? A definição de cidade urbana pode ser concebida a partir de alguns de seus aspectos, como o geográfico, econômico ou social. O sociólogo Robert Park (1984) nos dá uma ideia muito coerente do que significa a cidade e o que ela representa, a partir de um olhar voltado para o aspecto social e humano. Ele nos diz que o nome “cidade” foi dado a um assentamento que se tornou, de certa forma, autônomo politicamente, tendo um governo central; ou um título honorário conferido por serviço prestado a uma entidade política superior; ou, finalmente, como o resultado da incorporação ou promulgação legal.

Além disso, Park nos diz que o crescimento de ocupações e profissões dentro do limite urbano, o que David Harvey chamaria de “precariado” (HARVEY, 2014), é “um dos aspectos mais impressionantes e pouco compreendidos da vida urbana atual” (PARK, 1984, p. 2). Diz ainda, que a partir desse aspecto, é possível analisar a cidade com todos os seus mecanismos e dispositivos administrativos, e perceber que interesses privados e políticos encontram uma conotação corporativa, e não só coletiva. Dessa forma, ele considera que o poder público tem trabalhado para atender aos interesses privados, normalmente de empresas com elevado poder econômico, ao passo que o interesse social é posto em segundo plano.

Park sugere que a cidade é “um estado mental, um corpo de costumes e tradições” (PARK, 1984, p. 1). Ela não é um simples “mecanismo físico” ou “construção artificial”. Na verdade, na construção da cidade está envolvido o processo de vida de seus moradores e que ela representa o produto da natureza particularmente humana (PARK, 1984). Ou seja, quando falamos em cidade, estamos tratando de algo mais complexo que simplesmente sua estrutura física. Está embutido no entendimento de cidade utilizado nesse trabalho, também, a questão subjetiva de seus moradores e todas as implicações sociais de seus interesses individuais e coletivos.

As construções físicas, que normalmente consideramos como cidade, não se conectam sozinhas, e só passam a fazer parte da vida urbana quando “animadas” pela vida dos habitantes, individualmente ou como coletividade (PARK, 1984). Dessa forma, um prédio construído numa avenida movimentada em Fortaleza, por exemplo, não é tão efetivo na vida urbana quando ocupado por poucas atividades (muitas vezes inacessíveis à maior parte da população) e por vezes têm a função, tão somente, de especular aquela região ou imóvel. O mesmo acontece com praças e belas avenidas construídas em bairros de luxo (os quais elevam ainda mais o valor imobiliário dos terrenos a sua volta), ou em locais menos valorizadas economicamente ocasionando a especulação imobiliária e, muitas vezes, impossibilitando a permanência de seus então habitantes. Isso porque é percebido o aumento no custo da terra através do aumento no preço do aluguel ou taxas de condomínio, que tornam o adimplemento dos locatários tão onerosos a ponto de “expulsá-los” para uma região em que esse custo seja menor (HARVEY, 2014).

O fato gerador do fenômeno da saída dessas pessoas é o que chamamos de gentrificação. Ou seja, fazer o uso da terra com ocupações o mais lucrativas possíveis. Por isso há, como exemplo, remoções residenciais familiares para dar espaço a shopping center. Foi o que aconteceu na grande reforma de Paris, em 1853, que tornaremos a falar mais adiante. Paris estava renovada enquanto o povo era expulso para longe do centro e aos felizardos restava morar em conjuntos habitacionais populares (HARVEY, 2014). Em Fortaleza, é perceptível um movimento parecido no entorno de toda a obra do VLT, onde observamos uma grande quantidade de entulho de casas destruídas para sua construção. Ao mesmo tempo, como não houve apoio necessário paras as famílias removidas, podemos ver pessoas reconstruindo moradias exatamente por cima do entulho daquelas que foram derrubadas.

Robert Park (1984) nos mostra que as grandes civilizações surgem das cidades, das aglomerações e organizações de pessoas. Diz ainda que a história do mundo (diga-se da humanidade) é a própria história do homem urbano, pois muitos dos fenômenos sociais básicos da humanidade nascem da cidade. Ele nos diz que o estudo da vida urbana atual é muitas vezes mais aberto para observação, portanto pode ser melhor compreendido. Mas se a vida contemporânea é comparada com a vida de civilizações mais antigas, percebemos fundamentos parecidos, ou até mesmo iguais. Tentaremos demostrar nesse trabalho uma relação, uma espécie de repetição histórica, entre a construção da pólis grega e a ideia de direito à cidade elaborada por Lefebvre em 1968 e que até hoje se desenvolve.

Ainda sobre o conceito de cidade, Harvey (2001) menciona que na obra “On social control and collective behavior”, Robert Park define a cidade como uma tentativa, mesmo que inconsciente, do homem de traduzir a si mesmo. E ele próprio traz os questionamentos que nos faz pensar sobre o tipo de cidade que estamos construindo, quais os valores externados pela população, e mais, se os valores pretendidos pelos habitantes são atendidos pelos seus representantes e qual o papel dessa população urbana na construção da cidade em que deseja habitar.

Lembramos que “habitar” é conceitualmente diferente de “habitat”. Como nos mostra Lefebvre: o conceito de habitar foi desconstruído em prol de uma organização urbana que favoreceria o desenvolvimento da indústria a partir da experiência de Paris do fim do século XIX. “Antes ‘habitar’ era participar de uma vida social, de uma comunidade, aldeia ou cidade. A vida urbana detinha, entre outras, essa qualidade, esse atributo” (LEFEBVRE, 2001, p. 27).

Mas no fim do século XIX a burguesia desfaz essa ideia e incute no meio social a noção de “habitat” com o objetivo de relegar a massa proletária ao subúrbio, nas proximidades das indústrias, para compor a massa operária, construindo uma “cidade” para lhe servir. Foram construídos “conjuntos residenciais” com um certo grau de plasticidade (dentro dos limites dos jardins e áreas comuns daqueles residenciais), que permitiria uma certa “iniciativa e liberdade, limitada mas real”, afastado dos centros, é certo, no campo ou ainda próximo às indústrias, que eram fixadas em arredores de fontes de matéria prima (água, por exemplo) o que simplifico por chamar de “sensação criativa”. Aqueles habitantes tinham a impressão de estar construindo um espaço urbano, quando na verdade tinham seu impulso criador, a certa medida, castrado por interesses das classes dominantes. Como ele próprio traz suscintamente o paradoxo: “urbanização desurbanizante e desurbanizada” (LEFEBVRE, 2001, p. 25).

É importante diferenciar conjuntos de pavilhões, aqueles são casas e esses são blocos de apartamentos. A desconstrução da ideia de “habitar” aconteceu para os dois grupos. No entanto, nos pavilhões foi mais forte. Contudo, os cidadãos, “os ‘suburbanos’, os dos ‘pavilhões’ (conjuntos) residenciais, não deixam de ser urbanos mesmo que percam a consciência disso” (LEFEBVRE, 1968, p. 25). Pois impostos àquele habitat, afastados dos locais de produção da obra (cidade) eles perdem o sentido dela, e assim tem início o fenômeno de descentralização da cidade e a consciência urbana acaba por se dissipar.

A narrativa do que aconteceu na grande reforma de Paris mostra como o interesse eminentemente econômico pode, e tende, a se sobrepor ao interesse humano-social. Além disso, pode-se comparar os pavilhões mencionados por Lefebvre com os atuais conjuntos habitacionais construídos em Fortaleza e em sua Região metropolitana, com o objetivo de alocar famílias removidas de suas residências para, normalmente, ceder o espaço à obras públicas. Tem-se por exemplo, o Conjunto habitacional Alto da Paz, no bairro Vicente Pizon.

2. DIREITO À CIDADE NA PÓLIS GREGA

Dentro do esforço de compreensão do que é a cidade e qual o papel de seus habitantes na sua construção, seguindo as lições que as civilizações nascem das cidades e que das cidades se constrói a história da humanidade, buscamos suas origens, em especial, as origens democráticas. Como um exemplo histórico de civilizações nascentes do urbano, preferiu-se a figura da cidade antiga, diga-se: a Grécia, muito bem trabalhada na obra de Jean Pierre Vernant (2002). Opta-se por favorecer esse modelo pois apresenta a estrutura funcional de um espaço democrático entre seus cidadãos (que deveriam ser naturais da Grécia, maiores de 18 anos e homens), pelo menos juridicamente.

Além disso, viveu uma ruptura da ordem espacial, assim como viveu a cidade trazida na obra de Lefebvre, Ela acontece quando o império micênico cai e a sociedade se reorganiza, utilizando a filosofia para criar uma nova ordem política, a democracia. Por outro lado, na experiência narrada por Lefebvre a ordem é quebrada pela industrialização e (des)urbanização, de forma que o direito à cidade surge como uma espécie de “defesa” da comunidade. Em ambas percebe-se uma criatividade institucional com o objetivo de socializar, ou ressocializar, o espaço.

Trabalha-se com o moderno texto de David Harvey (2014) que faz uma releitura dos estudos de Marx aplicados à construção urbana moderna e contemporânea. No entanto lembra-se que a cidade é um fenômeno anterior ao capitalismo concorrencial (LEFEBVRE, 2001). Ademais, “o conceito da cidade (da realidade urbana) compõe-se de fatos, de representações e de imagens emprestadas à cidade antiga (pré-industrial, pré-capitalista) mas em curso de transformação e de nova elaboração (LEFEBVRE, 2001, p. 12).

Em seus escritos, Vernant (2002) apresenta a pólis. O desenvolvimento dessa estrutura social notoriamente democrática acontece em decorrência de um conflito desenvolvido entre a realeza grega e a população camponesa. No período da realeza a arquitetura é construída de modo a separar fisicamente a família real e seus agregados próximos, da população camponesa. O modelo econômico era uma espécie de plágio, fomentado pelo trabalho dos escribas, que tinham origem em Creta e trouxeram para a Grécia toda instrumentação utilizada no controle que foi exercido pelo ánax (o soberano). O palácio era protegido por muros, afinal, lá estavam concentradas todas as riquezas e símbolos de poder do império. Em torno do palácio se concentravam os denominados “dignitários”, que formavam o corpo militar e, naturalmente, os escribas, além dos membros da família real. Num nível abaixo, se estende a cidade onde mora o povo.

A derrubada da Realeza micênica pelos dórios transformou essa estrutura organizacional. Já não existia a classe escriba, sequer a escrita, o mar se tornou barreira e o continente grego se fecha em si. Mais tarde, com a redescoberta da escrita (fim do século IX), tomando desta vez dos fenícios, a qual não será mais instrumento de concentração de poder através do papel dos escribas, mas representará o resultado da grande transformação naquela civilização (VERNANT, 2002).

A escrita terá o novo papel de dar publicidade, “vai permitir divulgar, colocar igualmente sob o olhar de todos, os diversos aspectos da vida social e política” (VERNANT, 2002, p. 24). A partir de uma série de transformações sociais, principalmente no campo da economia e do acesso à escrita, a Grécia vai aos poucos se transformando num espaço democrático, física e politicamente. Do ponto de vista político, a principal transformação se dá quando os guerreiros deixam de ser uma classe fechada e abre-se a possibilidade da participação de cidadãos comuns, desde que proprietários de determinada parcela de terra.

A partir da queda do ánax perde-se a centralidade do poder e nasce o conflito entre os diversos poderes que foram separados, sendo eles: religioso, guerreiro, ligados ao solo e o poder mágico. Dando ênfase aos três primeiros e principais, pode-se dizer que eram a classe sacerdotal, os militares e os proprietários e controladores da terra (políticos). Há agora a necessidade de reestabelecer a unidade perdida e isso precisa ser feito através desses conflitos, caso contrário representaria o retorno de um soberano. Para atingir esse fim os gregos desenvolvem a partir da filosofia duas entidades divinas, opostas e complementares: a éris (poder de conflito) e a philia (poder de união) (VERNANT, 2002). A batalha agora seria travada no campo da sabedoria, da palavra (como já dito, instrumento que se tornou público). Num movimento natural de transformação social percebe-se também uma nova organização do espaço. Afinal, é necessária a construção de um espaço que possibilite esse confronto e as decisões que seriam construídas democraticamente. Nasce assim a estrutura da polis.

As construções urbanas não são mais, com efeito, agrupadas como antes em torno de um palácio real, cercado de fortificações. A cidade está agora centralizada na Ágora, espaço comum, sede da Hestia Koiné, espaço público em que são debatidos os problemas de interesse geral. É a própria cidade que se cerca de muralhas, protegendo e delimitando em sua totalidade o grupo humano que a constitui. No local em que se elevava a cidade real - residência privada, privilegiada-, ela edifica templos que abre a um culto público. Nas ruínas do palácio, nessa Acrópole que ela consagra doravante a seus deuses, é ainda a si mesma que a comunidade projeta sobre o plano do sagrado, assim como se realiza, no plano profano, no espaço da Ágora. Esse quadro urbano define efetivamente um espaço mental; descobre um novo horizonte espiritual. Desde que se centraliza na praça pública, a cidade já é, no sentido pleno do termo, uma polis. (VERNANT, 2002, p. 51).

Contudo, Henri Lefebvre, ainda 1968, mostrou que a Atenas moderna passou pelo mesmo duplo processo de diversas outras cidades em sua história moderna: a industrialização e a urbanização. Implica dizer que o desenvolvimento da industrialização transformou a antiga ideia de cidade para que ela atendesse aos interesses dos burgueses industriais. “Os monumentos e os lugares (ágora, acrópole) que permitem encontrar a Grécia antiga não representam mais do que um local de peregrinação estética e de consumo turístico. No entanto, o núcleo organizacional da cidade continua muito forte” (LEFEVBRE, 2001, p. 17). Esse núcleo organizacional a que Lefebvre se refere é o chamado “centro de decisões”. E tal força é atribuída pela desorganização da ocupação ao redor da cidade, composto por pessoas “sem raízes”, o que permite que os “detentores dos centros de decisão” (normalmente os gestores públicos ou especuladores de terra) façam os piores usos políticos (diga-se: sociais) da terra. Não é à toa que a economia desse país, e agora percebemos que é a realidade de tantos outros como os EUA, depende desse circuito de produção de capital através da especulação da terra (HARVEY, 2014; LEFEBVRE, 2002). Ou seja, a cidade e a cultura se transformaram em produto, principalmente para o turismo. E essa é apenas uma das formas de transformar a terra em valor de troca ao ponto de esvaziar o direito à moradia de alguém em favor econômico do proprietário.

O objetivo de trazer a figura da pólis é, também, mostrar a partir da história, a existência em um outro momento da cidade, de um espaço no qual existia a participação de todos os cidadãos, tratados como iguais, sob pena de não constituir um debate justo de ideias. A decisão é descentralizada, assim como na nossa cidade (ou como deveria ser), o povo também tinha poder de decisão. Comparando com a estrutura política atual e com a legislação brasileira disponível, podemos dizer que as decisões sobre a construção espacial não devem ser centralizadas no poder público dos representantes (a prefeitura), mas ter uma contribuição popular, como exige o plano diretor de Fortaleza (2009), no §4º do art. 1º, que dispõe:

A gestão da cidade será democrática, incorporando a participação dos diferentes segmentos da sociedade em sua formulação, execução e acompanhamento, garantindo:

I - a participação popular e a descentralização das ações e processos de tomada de decisões públicas em assuntos de interesses sociais;

II - a participação popular nas definições de investimentos do orçamento público;

III - o desenvolvimento sustentável;

IV - o acesso público e irrestrito às informações e análises referentes à política urbana;

V - a capacitação dos atores sociais para a participação no planejamento e gestão da cidade;

VI- a participação popular na formulação, implementação, avaliação, monitoramento e revisão da política urbana.

3. CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA

Harvey (2014) faz uma releitura da teoria de Lefebvre utilizando o conceito de cidade elaborado por Robert Park, e afirma que o direito à cidade deveria nos garantir (aos habitantes) a possibilidade de “mudar e reinventar a cidade” de acordo com o que somos e o que desejamos nos tornar. A cidade é como uma extensão de nós mesmos, mas de uma forma coletiva, e ainda, é mais que a soma das individualidades. Portanto, o direito à cidade é coletivo, uma das tantas características que foram exploradas por Cláudio Ari Mello (2017) e as quais serão explanadas a seguir.

O novo paradigma do direito se mostra muito mais pragmático e na sociedade pós-moderna se torna, além de uma ferramenta para controle, um instrumento de transformação social (NOGUEIRA, 2017). Diante desse cenário, o direito à moradia e o direito à cidade previstos no texto constitucional, se tornam dispositivos jurídicos com potência para transformar o meio social, se efetivados. Mas a utilização judicial do direito à cidade é ainda limitada. Isso porque esse conceito é historicamente recente e precisa ser melhor compreendido (MELLO, 2017).

Nesse pragmatismo, junto ao positivismo do direito, Cláudio Ari Mello (2017), na tentativa de oferecer elementos teóricos que permitam a utilização do direito à cidade em decisões judiciais, faz um estudo dogmático a partir da compreensão e interpretação do direito positivo. No seu estudo são trabalhados três elementos jurídicos apresentados a seguir, são eles: a natureza do direito à cidade, seu conteúdo normativo e seu conteúdo axiológico.

Inicialmente, pode-se dizer que o direito à cidade é uma conquista da sociedade de um direito subjetivo social. Antes o direito subjetivo era considerado apenas como individual, além de não ser presente na filosofia política grega e da ciência jurídica romana (que desconheciam o direito subjetivo como é trabalhado atualmente), mas é presente desde a idade média (quando o direito subjetivo estava fortemente relacionado à propriedade e posteriormente ao direito de exigi-la coercitivamente), seguindo pela idade moderna (estavam muito mais relacionados a preceitos morais e políticos, que afastavam sua base jurídica em certa medida), até finalmente chegar ao século XIX, quando o direito subjetivo se torna técnico e toma um lugar no ordenamento jurídico como elemento conceitual do direito privado. Já no século XX ele ganha duas novas funções, (1) os direitos humanos e (2) os direitos fundamentais (MELLO, 2017), que se distinguem principalmente pelo suporte jurídico que os trazem (os primeiros são positivados normalmente em convenções internacionais; enquanto os últimos, nas constituições de cada Estado) (MARMELSTEIN, 2018).

O direito subjetivo, como garantia para coletividade, surge no Brasil apenas em 1985 com a lei de ação civil pública (BRASIL, 1985). Mas a proteção à ordem urbanística, que seria basicamente o

[...] direito difuso à realização do direito urbanístico brasileiro, na medida em que a sua efetivação é necessária ao cumprimento do direito a cidades sustentáveis (compreendido como uma das matrizes do regime jurídico urbanístico). Trata-se, em última análise, do direito à cidade, relido e atualizado pelo imperativo contemporâneo da sustentabilidade. (FARIA BRASIL, 2011)

A proteção à ordem urbanística, a qual essa lei se refere, somente é introduzida pela medida provisória nº 2.180-35, de 2001, mais especificamente no art. 1º, inciso VI. A lei de ação civil pública institucionalizou o direito coletivo “latu senso” na medida em que permite a judicialização de interesses coletivos. Já em 1988 a Constituição Federal dispôs sobre o direito à cidade, não com esses exatos termos é certo, em seu artigo 182. Isso significa que ele merece proteção (KELSEN, 2000) jurídica (direito material) e judicial (passível de judicialização; direito à ação). Em 2001 é promulgada a Lei nº 10.257, o Estatuto da Cidade que regulamenta o capítulo constitucional referente à política urbana e determina o direito de todos a uma cidade sustentável. Isso significa, que o direito à cidade, definido como um direito subjetivo coletivo é merecedor de tutela do estado-juiz. Este, o poder judiciário, deve atuar somente diante demandas de evidente ação ou omissão que comprometa o direito da coletividade de habitar uma cidade justa, sob pena de legislar sobre políticas públicas (papel do poder legislativo) (MELLO, 2017).

Quanto ao sujeito ativo do direito de habitar e construir uma cidade justa e sustentável, nada estranho que sejam os próprios habitantes, os citadinos. Aqui se faz necessário falar o óbvio, pois historicamente ao falar em direito subjetivo a ideia que se tinha é que se tratava de garantias individuais, desde a formulação do direito à propriedade e ascensão do capitalismo até os direitos humanos. Sendo assim, o sujeito “coletivo” se torna possível somente na segunda metade do século XX quando se “começa a experimentar o uso do conceito de direito subjetivo para a tutela jurídica de bens, interesses e valores de expressão metaindividual ou transindividual, ou, para ser mais preciso, de bens, interesses e valores compartilhados de forma indivisível por coletividades humanas” (MELLO, 2017). Ari adiciona ainda a seguinte reflexão: “o direito subjetivo, que sempre foi pensado como garantia individual, passa a ser direito de uma massa determinada ou potencialmente determinável, e isso pressupõe uma pequena revolução científica no âmbito conceitual do mundo jurídico”.

Ao formularmos o conceito de direito à cidade como uma espécie de direito coletivo, estamos personificando a comunidade política e conferindo a ela a proteção jurídica dos bens, valores e interesses dessa totalidade, para além e eventualmente até mesmo contra os interesses de cada um de seus componentes e dos grupos por eles formados, ainda que a personificação jurídica da cidade não implique desconhecer os direitos e interesses dos indivíduos que a compõem na qualidade de habitantes. (MELLO, 2017, p. 445)

O segundo aspecto explorado por esse autor é conteúdo normativo do direito à cidade, o qual ele determinou como complexo (MELLO, 2017). Significa dizer que esse direito subjetivo da coletividade não engloba apenas uma condição para efetivação. Didaticamente, podemos comparar ao direito obrigacional. Por exemplo: a ação de exigir o pagamento não é simples a ponto de poder ser cumprida pelo simples fato de existir um contrato, há no caso algumas variáveis que podem modificar esse estado de direito. Pode ocasionalmente ocorrer a prescrição da dívida, ou a insolvência de uma das partes. Há portanto, uma complexidade na construção do direito subjetivo individual, e no coletivo não poderia ser diferente. Seguindo esse raciocínio, o direito à cidade é complexo pois normativamente composto “por uma variedade de posições jurídicas subjetivas que tutela diferentes bens, valores e interesses das partes da relação jurídica” (MELLO, 2017, p. 446). É perceptível essa complexidade a partir da leitura do estatuto da cidade, logo em seu artigo 2º, inciso I: “garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (BRASIL, 2001).

Dentro da análise do conteúdo normativo do direto à cidade, especialmente depois de ler o inciso acima, pode-se pensar que ele é uma soma de outros direitos fundamentais. No entanto a ideia da mera soma deve ser afastada, caso contrário, não haveria necessidade de criar um novo conceito. Aliás, se é possível efetivar os direitos contidos no direito à cidade separadamente, qual seria o sentido de sua normatização? Deve-se concordar que a resposta é: nenhum. É certo, os elementos dos direitos fundamentais individuais podem coincidir com os elementos do direito à cidade, e o fato desses últimos se efetivarem em meio urbano não é suficiente para justificar sua criação. O que de fato justifica a nova espécie de direito é a finalidade que se busca. No caso, o objetivo é um bem maior, que é a realização de uma cidade justa e democrática (MELLO, 2017).

Por último, Ari explora o conteúdo axiológico do direito à cidade. Para ele, não há de ser um direito com conteúdo puramente técnico como alguns direitos civis. A normatização para elaboração de um contrato no Código Civil é um exemplo de uma lei muito mais técnica que social, sendo de mera execução. Ou ainda a quantificação de uma alíquota, que determina tão somente um valor econômico, quando fala-se em direito público.

Essa característica se dá porque existe um valor moral promotor do direito à cidade que está incorporado no ordenamento jurídico, e sua finalidade é a realização de uma cidade justa, sustentável. O fenômeno que dá força à essa tentativa de concretizar valores morais é a positivação de direitos naturais, como já dito nesse texto, o novo paradigma do direito. A constitucionalização de direitos humanos, e a própria declaração universal de direitos humanos, são evidências da positivação do jusnaturalismo (MARMELSTEIN, 2018). Em suma, o direito à cidade é a normatização de um valor moral, seja ele: a concretização de uma cidade justa, e isso significa fomentar valores que possam garantir uma cidade sustentável, que exerça sua função social e o bem-estar de seus cidadãos seja promovido.

4. POSITIVAÇÃO JURÍDICA

O direito à cidade surge, então, a partir de uma visão pós-guerra que busca valorizar o ser humano e a tentativa de proteger suas necessidades mais básicas, aquelas que permitam uma forma de vida digna. Esse paradigma é positivado em diversos dispositivos internacionais e nacionais, na forma de direitos humanos e direitos fundamentais (MARMELSTEIN, 2018). Há diversos dispositivos jurídicos que trazem a garantia à cidade sustentável ou tratam da matéria urbanística com um viés social. Por exemplo, a Carta Mundial pelo Direito à cidade, um documento elaborado a partir do Fórum Social Mundial Policêntrico de 2006; documentos produzidos a partir de conferências fomentadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), é o caso do “Habitat I (Vancouver, 1976), II (Istambul, 1996) e III (Quito, 2016)”; e ainda a própria Constituição brasileira de 1988, mais precisamente no capítulo II (Políticas Urbanas) do título VII (Da ordem econômica e financeira). Essa garantia é composta por diversas outras, como à moradia e saneamento, e de uma forma geral, a garantia de uma existência digna do ser humano, prevista como fundamento do Estado Democrático de Direito no artigo 1º da CF/88. No entanto, a análise aqui será limitada à legislação apenas ao âmbito nacional por faltar espaço para estudo dos dispositivos internacionais.

Dito isso, é evidente que o direito à construção de um espaço segundo as aspirações de seus habitantes não poderia ter outra natureza que não a de um direito coletivo, e também social. E apesar de não existir no ordenamento jurídico brasileiro a expressão exata “direito à cidade”, ele é norma dos dispositivos a serem apresentados, ou seja, esse direito é apresentado a partir da interpretação (MELLO, 2017). Seguindo essa premissa, tem-se a seguir um breve mapeamento da legislação da ordem urbanística.

No Brasil, o direito subjetivo com caráter coletivo é positivado na lei de ação civil pública em 1985. Desde a Medida provisória nº 2.180-35 de 2001, que inseriu no texto dessa lei a tutela da “ordem urbanística”, tornou-se notável a proteção jurídica à cidade com o uso do inciso VI, do seu artigo 1º. Essa legislação permite, ainda, uma ação judicial de cunho preventivo. Ou seja, se a coletividade sentir seu direito ameaçado pode acionar o judiciário para evitar futuro dano à ordem estabelecida que proporcione uma cidade justa, entre outros interesses dispostos na mesma lei. No entanto, como poderia ser imaginada uma ação preventiva para um direito que ainda não se efetivou? É essa realidade percebida em muitas cidades do Brasil, onde pelo menos 5% da população vive em “aglomerados subnormais”, segundo o censo de 2010 do IBGE. Essa é uma expressão usada para definir:

[...] o conjunto constituído por 51 ou mais unidades habitacionais caracterizadas por  ausência de título de propriedade e pelo menos uma das características abaixo: -irregularidade das vias de circulação e do tamanho e forma dos lotes e/ou -carência de serviços  públicos essenciais (como coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água, energia  elétrica e iluminação pública) (IBGE, 2011).

Observe-se que as características são cumulativas, portanto os conjuntos constituídos por mais de 51 casas, mas que algumas delas tenham título de propriedade, já não se caracterizariam como essa espécie de organização espacial urbana. Ou ainda, que todos tivessem título de propriedade, poderia não haver no local a regularidade de vias públicas, saneamento, dentre outros serviços públicos essenciais. A conclusão é de que esse dado mostra uma situação evidente de calamidade urbana extrema, mas não abrange todos aqueles que sofrem com a não efetivação do direito à cidade. Este é muito mais amplo, como já visto.

Continuando o mapeamento do ordenamento jurídico, o direito à cidade é apresentado em 1988 na Constituição Federal promulgada pela Assembleia constituinte da redemocratização. Só então o direito à cidade foi elevado ao patamar constitucional no âmbito nacional (TRINDADE, 2012). Um capítulo, sucinto é certo, composto apenas por dois artigos, 182 e 183, trata da política urbana. Abaixo, transcrevemos parcialmente os artigos para melhor desenvolver sua interpretação.

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.

§ 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

[...]

§ 4º É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento [...]

Percebe-se que é uma norma constitucional com eficácia limitada, classificada assim com a utilização da teoria de José Afonso da Silva (2004) sobre a aplicabilidade das normas constitucionais. Que seja observado o artigo 182 no seu §1º: ele submete a efetivação desse direito constitucional à elaboração de um plano diretor para cada cidade, a ser elaborado pelo poder executivo municipal.  Além dessa submissão, fica limitada a elaboração do próprio plano diretor às regras determinadas em lei infraconstitucional.

Visando a eficácia desse dispositivo constitucional, foi sancionada a lei nº 10.257 em 2001, mais de dez anos depois da CF/88. Se trata do Estatuto da Cidade. Essa legislação foi um grande avanço da legislação brasileira sobre direito urbano. Além disso, tende a tornar a gestão municipal mais acessível aos seus habitantes e cidadãos, isso porque estabelece a necessidade de conselhos participativos obrigatórios na elaboração do plano diretor. Traz ainda a organização de dispositivos que devem ser utilizados para regulamentar o uso e ocupação do solo (TRINDADE, 2012).  O Estatuto da Cidade também estabelece normas que regulam o uso da propriedade urbana de modo que, ao menos juridicamente, tende a beneficiar o social, promover o bem-estar e segurança dos cidadãos, além do equilíbrio ambiental. A Lei nº 10.257, além das disposições acima, regulamenta também o plano diretor participativo que deve ser elaborado para cada município que preencha os requisitos, sejam eles:

I – com mais de vinte mil habitantes;

II – integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas;

III – onde o Poder Público municipal pretenda utilizar os instrumentos previstos no § 4º do art. 182 da Constituição Federal;

IV – integrantes de áreas de especial interesse turístico;

V – inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional.

VI - incluídas no cadastro nacional de Municípios com áreas suscetíveis à ocorrência de deslizamentos de grande impacto, inundações bruscas ou processos geológicos ou hidrológicos correlatos. (Incluído pela Lei nº 12.608, de 2012).

Dessa forma, os planos diretores são elaborados e aprovados pelo município. No entanto deve seguir a regulamentação estabelecida pelo Estatuto da Cidade. Esse, por sua vez, nasceu pela necessidade constitucional determinada no artigo 182, CF/88, de ser fixado em lei as regras da elaboração do plano de políticas urbanas. Não nos custa lembrar, sempre, que isso deve acontecer com a participação popular, como determina a diretriz estabelecida na lei nº 10.257, §2º, inciso “II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano” (BRASIL, 2001).

O ponto final desse mapeamento é o Plano Diretor Participativo de Fortaleza (PDPFor), pois estão presentes nessa cidade todos os requisitos do artigo 40 do Estatuto da Cidade.

Sancionado em 2009, o PDPFor foi construído a partir de muitas reivindicações da sociedade civil organizada direcionadas ao poder público. No texto final da lei está disciplinado como deve ser o uso e ocupação do solo urbano, bem como uma definição dos diversos espaços urbanos. Bem como observamos no desenvolvimento da Grécia antiga, o conflito é pressuposto da democracia, e a partir dele são criados instrumentos que tenham o objetivo de manter o bem-estar social e construir a união. Isso acontece graças à utilização de um processo de decisões participativo, caso contrário não se poderia falar em democracia.

Antes, a questão era a formação, conteúdo e juridicidade do direito à cidade, daqui em diante volta-se o olhar para observação da realidade social em Fortaleza, não esquecendo o que acontece, e aconteceu, na história das cidades por todo o mundo.

5. A EFETIVAÇÃO

Compreender a realização do direito à cidade necessita que seja observada a realidade social seriamente, assim como na realização de qualquer outro direito. Afinal, o homem construiu o direito para lhe servir e é na sociedade que ele se realiza. Vale lembrar o brocardo jurídico herdado dos romanos: ubi ius, ibi societas, onde há direito, há sociedade (REALE, 2001).

Nesse trabalho, a visão a respeito das regras de construção do espaço urbano volta-se principalmente para o conflito entre o interesse econômico e o social. Nesse sentido, David Harvey (2014) trabalha com muito cuidado a elaboração de uma lógica que busca explicar exatamente essa relação na sociedade moderna e contemporânea. A premissa que Harvey estabelece é a tendência de crescimento infinito do capital dentro do sistema capitalista. Conclui, então, que a urbanização funciona como absorvente do excedente de capital, ou seja, que o investimento na construção e reforma do espaço urbano permite o crescimento do capital. O que tenta-se demonstrar aqui é que a mesma lógica se aplica à cidade de Fortaleza, claro que ajustada a todas as peculiaridades do espaço e tempo analisados.

A grande reforma de Paris em 1968 é o marco histórico estabelecido por Harvey (2014) para desenvolvimento da sua tese, supra mencionada. Ele descreve esse processo que se inicia com a crise econômica de 1848 na qual se evidenciou, pela primeira vez, o excedente de capital junto ao excedente de trabalho. A crise atingiu toda a Europa, especialmente Paris. Operários desempregados e utopistas burgueses iniciaram uma revolução que foi violentamente reprimida pelos burgueses republicanos. Isso resultou num golpe de estado pelo qual Luís Bonaparte se declarou imperador em 1852.

A crise comentada acima foi um fenômeno no qual o capital não tinha mais “espaço” para reinvestimento (pela lógica construída por Marx, o capital precisa ser constantemente reinvestido para conseguir crescer), Luís Bonaparte sabia que precisava cuidar dessa questão e foi então que iniciou seu plano. As ações tomadas diziam respeito à um vasto projeto de infraestrutura, nacional e internacional. O imperador contratou Haussman como arquiteto da grande reforma da cidade, e Haussman não planejava pequenas obras. Dessa forma, o trabalho e o capital seriam investidos em infraestrutura, inclusive a urbana. Contudo, essa reformulação de Paris não contava com os moradores das ruas estreitas e tortuosas, eles foram expulsos para a periferia no objetivo de abrir espaço para as largas avenidas, iluminadas e com seus cafés e polos de comércio. Mas em 1868 o sistema econômico especulativo entra em crise, bem como sua base de estruturas de crédito. Num cenário pós-guerra (contra a Alemanha) e de crise insurge a Comuna de Paris, que em parte foi constituída pelo desejo de retornar à ordem urbana anterior à reforma de Haussman e a vontade daqueles que foram expulsos de retomar a cidade.

Os exemplos de crises do capital (quando ele não consegue crescer) são sempre precedidos de uma explosão nos preços de imóveis. Isso envolve elementos jurídicos e principalmente econômicos que não teremos espaço de abordar nesse trabalho. Mas podemos concluir que, historicamente, percebe-se o uso da urbanização como absorvente do excedente de capital. Aconteceu em Paris (1848-1868) assim como no EUA (1942-1968 e de novo em 1998). Hoje esse fenômeno ganhou um caráter globalizado. Além de estar presente nas cidades capitalistas pelo mundo todo, ele foi engrandecido a ponto de a urbanização numa parte do mundo, suportar a crise econômica em outra. Isso acontece na China onde a urbanização consome cerca de ¼ do aço produzido mundialmente. O autor diz ainda que esse exemplo parece estar sendo seguido por todos os países do BRIC (HARVEY, 2014).

Faz-se necessário lembrar que na obra “direito à cidade” de Lefebvre (2011), ele demonstra que a industrialização transforma a obra (a cidade) em valor de troca, o que antes era valor de uso. A consequência disso, como também demonstra Harvey, é que a qualidade de vida urbana se torna mercadoria. Isso ocorre justamente por mudar o papel da cidade e sua construção. Do social/humano ao eminentemente econômico. Cabe retornar o texto ao ponto em que foi mencionado a desconfiguração do conceito de “habitar” e se configura no seu lugar a ideia de “habitat”, ou seja, quando demonstrou-se que a construção urbana perde seu caráter participativo humano em prol do interesse da industrialização. Fica óbvio a presença dessa mesma estrutura em Fortaleza - CE.

Assista-se criticamente a orla marítima de Fortaleza. É toda ocupada, quando não por prédios, por barracas ou barracos (ou construções de aglomerados subnormais, como diria o IBGE). Fazendo um rápido passeio pela avenida Beira Mar, começando do Centro cultural Dragão do Mar, mais à leste e mais próximo do Centro, indo em direção ao Porto do Mucuripe.

O ponto de partida é um dos equipamentos culturais mais procurados da cidade, segue-se observando prédios residenciais e comerciais, bares, casas de show, o aterro da Praia de Iracema, hotéis de luxo, tudo isso amparado por vias largas e bem sinalizadas, iluminação pública mais que satisfatória, transporte público e nada de esgoto a céu aberto pelas ruas. Seguindo a diante encontra-se uma praça pública recém reformada, um calçadão amplo e também reformado recentemente. Logo em seguida um mercado de peixes adaptado ao serviço de turismo, onde pode-se encontrar frutos do mar frescos, além de restaurantes que preparam o prato e oferecem um show no pôr do sol, aqui, ainda, encontramos todos aqueles equipamentos públicos ditos anteriormente. Mais à frente, é perceptível a comunidade no morro de Santa Terezinha no bairro do Mucuripe, a “fachada” do morro foi reformada, mas, segundo relatos, a vida de quem mora lá permaneceu com muitas dificuldades por falta, ou inoperância, dos aparelhos públicos. Passando pelo porto, terminal marítimo de passageiros (que inclusive foi um espaço privatizado e os surfistas que antes iam ao local aproveitar as ondas, hoje perderam o direito de acesso legal), aqui já pode-se observar um espaço com uma movimentação bem menor, iluminação mais fraca e construção de residências em formato de casa, além de encontrar poucos estabelecimentos comerciais. Lembre-se que essa observação é feita, tão somente, na avenida.

Chegando ao fim da avenida encontramos o bairro do Serviluz. Lá encontram-se, ainda na beira do mar, residências simples (quando não indignas), em locais de risco (com as ondas do mar quebrando na varanda), e uma rua curiosamente chamada de “rua da favela”. Ela termina na praia e é o principal ponto de remoção nos planos de reforma urbana do bairro. Sendo assim, percebe-se que o poder aquisitivo determina a qualidade (quiçá a dignidade) do espaço físico em que se habita.

Diante dessas desigualdades e carências de serviços e equipamentos públicos, o Serviluz se tornou uma Zona Especial de Interesse Social (prioritária) do tipo 1, determinado no plano diretor participativo de Fortaleza (2009). A referida lei define no artigo 123 esse instrumento (ZEIS) como

[...] porções do território, de propriedade pública ou privada, destinadas prioritariamente à promoção da regularização urbanística e fundiária dos assentamentos habitacionais de baixa renda existentes e consolidados e ao desenvolvimento de programas habitacionais de interesse social e de mercado popular nas áreas não edificadas, não utilizadas ou subutilizadas, estando sujeitas a critérios especiais de edificação, parcelamento, uso e ocupação do solo.

A especificação do tipo 1 desse instrumento é disposto no artigo 126 da mesma lei, e determina que

[...] são compostas por assentamentos irregulares com ocupação desordenada, em áreas públicas ou particulares, constituídos por população de baixa renda, precários do ponto de vista urbanístico e habitacional, destinados à regularização fundiária, urbanística e ambiental.

Figura 1- Mapa de delimitação das ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social)

Obs.: a área que compreende o bairro do Serviluz está situado na marcação feita pelos autores.

Apesar da existência da lei municipal 14.020 do município de Fortaleza, o Plano Diretor Participativo, a efetivação tem se mostrado lenta, ou inexistente, na ótica das ZEIS (Zonas de Interesse Social). De fato, analisando as ocorrências recentes, tem-se conhecimento da posse dos conselhos gestores das ZEIS tipo 1 e 2 que aconteceu em novembro de 2018. Antes dessa posse não era possível elaborar o plano integrado de regularização fundiária dessas Zonas. Isso porque o artigo 268 do PDP (Plano Diretor Participativo, 2009) determina que:

Deverão ser constituídos, em todas as ZEIS 1 e 2, Conselhos Gestores compostos por representantes dos atuais moradores e do Município, que deverão participar de todas as etapas de elaboração, implementação e monitoramento dos planos integrados de regularização fundiária.

Parágrafo Único - Decreto Municipal deverá regulamentar a constituição dos Conselhos Gestores das ZEIS 1 e 2 determinando suas atribuições, formas de funcionamento, modos de representação equitativa dos moradores locais e dos órgãos públicos competentes.

Ou seja, se passaram quase dez anos para efetivar uma das prerrogativas da elaboração da regularização fundiária de ZEIS. Devemos lembrar que essa conquista foi à base de muita luta e reivindicações sociais, de movimentos sociais organizados, que buscavam por seus direitos, e ainda o fazem. Apesar das dificuldades, esse evento (a posse dos conselhos gestores) representou uma conquista importante para aqueles que estão nessa luta. Em entrevistas realizadas com moradores e membros dos conselhos percebemos que há esperança de um novo ritmo da efetivação do disposto no plano diretor.

Mais que uma lei municipal, ou lei federal, o direito à uma cidade sustentável, e que respeita as funções sociais das propriedades urbanas, é um direito constitucional. Percebe-se na realidade de Fortaleza, que o interesse social é o principal a se manifestar no sentido de efetivar as normas jurídicas que mencionamos aqui. Um forte exemplo desses movimentos é a “Frente De Luta Por Moradia Digna”, ele articula lideranças de diversos bairros fortalezenses, inclusive os conselhos gestores das ZEIS, com o objetivo de pressionar o poder público a realizar a parte que lhe cabe do plano diretor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ficou demonstrado que a cidade é um espaço construído pelo homem e representa uma extensão do seu ser. No entanto, por ser construída coletivamente, pressupõe conflitos entre interesses dos diversos grupos e organizações sociais, de modo que, por vezes, alguns interesses se sobrepõe em detrimento do bem-estar social. Com o uso do exemplo da pólis grega mostramos argumentou-se que, historicamente, a sociedade busca formas de transformar o espaço urbano em uma construção democrática. No caso da Grécia eles se utilizaram da filosofia política, enquanto na modernidade, o Direito funcionou como instrumento para tal fim.

Foi trazida uma análise jurídica do direito à cidade no Brasil com a finalidade de mostrar o seu caráter de direito subjetivo e coletivo. Inclusive a obrigatoriedade da participação popular na construção de planos diretores municipais, tendo com isso o objetivo de tornar a construção urbana mais democrática. Ao passo que observando-se a efetivação das leis que tratam do direito à cidade, na esfera de Fortaleza, percebemos que ela não se efetiva, ou tarda. Para justificar essa demora (ou inexistência) da efetivação, mostramos que há um interesse do capital em utilizar a urbanização a seu favor, prejudicando os moradores de classes mais baixas, predominantemente, o proletariado, ou “precariado”.

Ainda dentro da questão da efetividade da lei, questiona-se o papel do poder judiciário. Foi constatado, a partir da vivência com os movimentos sociais, que no atual cenário de Fortaleza, os estamentos sociais mais interessados na efetivação do direito à cidade preferem não judicializar o conflito por medo de maior demora ou decisão contrária ao seu interesse. No entanto, a pressão exercida por determinados movimentos sociais se mostra mais eficiente que um processo judicial. Esse é o ponto que deve ser mais explorado por aqueles que pretendem uma sociedade civil mais organizada, menos judicializada e possivelmente mais equitativa.

REFERÊNCIAS

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