OS USOS DO REGISTRO DO PATRIMÔNIO CULTURAL IMATERIAL PARA RECONHECIMENTO DE DIREITOS INTELECTUAIS COLETIVOS: O QUE DIZEM OS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS DO IPHAN SOBRE O LIVRO DOS SABERES

THE USES OF THE REGISTRY OF CULTURAL HERITAGE IMPOSED ON RECOGNITION OF COLLECTIVE INTELLECTUAL RIGHTS: WHAT IPHAN'S ADMINISTRATIVE PROCEDURES ABOUT THE BOOK OF KNOWLEDGE SAY

Rodrigo Vieira Costa

Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Professor de Direito Público da Universidade Federal Rural do Semi-Árido em Mossoró (UFERSA). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais da Universidade de Fortaleza (GEPDC/UNIFOR). Membro do Grupo de Estudos de Direito Autoral e Industrial da Universidade Federal do Paraná (GEDAI/UFPR). Membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais - IBDCULT. Membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares no Ceará - RENAP-CE. Membro do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais - IPDMS. Atualmente, realiza pesquisas nas áreas relativas aos direitos culturais, como patrimônio cultural, direitos intelectuais, incentivos e fomento à cultura, direitos dos trabalhadores da cultura, políticas culturais e Administração Pública da Cultura. Interessa-se igualmente por direito digital, pelo marco civil da internet, pelo impacto das novas tecnologias da informação e da comunicação no direito e pelas relações entre liberdade de expressão, privacidade e ambiente digital.

Frederico Augusto Barbosa da Silva

Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e graduado em Antropologia pela mesma universidade. Pesquisador do Instituto de Planejamento e Pesquisa (IPEA) desde 1997. Professor do Mestrado Profissional em Desenvolvimento e Políticas Públicas promovido pelo IPEA, em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz) e Escola de Governo em Saúde Núcleo Federal (Fiocruz) e Professor permanente do Mestrado Profissional em Políticas Públicas e Desenvolvimento do IPEA. Professor colaborador dos cursos de especialização e formação para carreiras da Escola Nacional de Administração Pública – ENAP.

Submetido em: 7 nov. 2018.

Aceito em: 3 jul. 2019.

Resumo: O presente artigo propõe-se a uma análise dos processos administrativos que tramitaram no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) relacionados a registro do patrimônio cultural imaterial (PCI). Busca-se avaliar em que medida o IPHAN promove o reconhecimento e proteção dos direitos intelectuais coletivos. Adota-se na pesquisa o método dedutivo, analisando-se, a partir de pesquisa bibliográfica e documental, as disputas envolvidas nos casos encontrados no Livro dos Saberes. Conclui-se que a atuação legal do IPHAN se dá a partir das reivindicações e demandas dos detentores oriundos do Registro, e que permanecem preponderantes os efeitos imediatos declaratórios de reconhecimento e valorização como finalidade precípua do Registro.

Palavras-chave: Direitos culturais. Patrimônio cultural imaterial. Registro. Livro dos Saberes.

Abstract: This article proposes an analysis of the administrative processes that were processed in the National Historical and Artistic Heritage Institute (IPHAN) related to the registration of intangible cultural heritage (CIP). It seeks to assess to what extent IPHAN promotes the recognition and protection of collective intellectual rights. The deductive method is applied in the research, analyzing, from bibliographical and documentary research, the disputes involved in the cases found in the Book of Knowledge. It is concluded that the legal action of IPHAN is based on the claims and demands of the holders coming from the Registry, and that the immediate declaratory effects of recognition and valuation as the main purpose of the Registry remain preponderant.

Keywords: Cultural rights. Intangible cultural heritage. Record. Book of Knowledge.

1. Introdução

Este trabalho é a segunda parte de pesquisa, já publicada anteriormente, cujo intuito a análise das políticas públicas do patrimônio imaterial a partir da dimensão do poder e da necessidade de pensar os instrumentos de políticas em seus usos cotidianos e negociados com os atores. Essa abordagem não é usual, especialmente no espaço discursivo do direito que se inspira em abordagens relacionadas à produção de argumentos que mobilizam tipos normativos (princípios, regras e normas de política), ligam à intenção da “melhor decisão” ou a narrativas únicas com a finalidade de oferecer uma imagem de racionalidade moral não apenas à decisão jurídica, mas também aos processos das políticas e à proteção e garantia de direitos. A centralidade do Estado nem sempre é incômoda, embora gere efeitos paradoxais no que tange à questão da democracia e da participação.

Adota-se na pesquisa o método dedutivo, analisando-se, a partir de pesquisa bibliográfica e documental, as disputas envolvidas nos casos encontrados no Livro dos Saberes.

No Livro dos Saberes, dentro da amostragem selecionada para a análise, a arena de conflitos centrados em apropriações indevidas de conhecimentos tradicionais registrados como patrimônio cultural imaterial (PCI) é bem maior do que no Livro das Expressões. Aqui, demonstra-se que os usos positivo e defensivo do PCI, mesmo antes e durante o Registro, são ferramentas eficazes contra usos abusivos dos bens culturais imateriais por parte de terceiros, quando se utilizam dos instrumentos convencionais da propriedade intelectual para tentar monopolizar o uso exclusivo do patrimônio cultural, ou se aproveitar de sua notoriedade e visibilidade para agregar valor a marcas ou produtos por eles já explorados comercialmente em detrimento dos detentores.

Ao invés disso, apesar da tomada de consciência legal dos detentores de alguns modos de saber-fazer via Registro do PCI, diante do esclarecimento de seus efeitos imediatos explícitos declaratórios e do receio da ineficácia para proteção de seus direitos intelectuais coletivos e produtos resultantes do seu savoir-faire, comunidades e grupos tradicionais optaram pela sobreposição do mecanismo de reconhecimento com instrumentos da PI, tais quais as indicações geográficas e marcas coletivas.

Por essas razões, dividiu-se a análise deste tópico entre a verificação preliminar dos casos conflituosos de reivindicação de direitos intelectuais coletivos, uso positivo e defensivo do PCI contra apropriação indevida, e os casos de usos de antropofagia da propriedade intelectual pelos bens imateriais registrados.

2. A propriedade intelectual contra o patrimônio cultural imaterial: o caso da viola-de-cocho

A proteção do modo de fazer a viola-de-cocho requerida pelas comunidades artesãs dos Estados do Mato Grosso e do Mato Grosso do Sul e de musicistas dos estilos tradicionais do cururu e siriri ao IPHAN, por meio do tombamento, na segunda metade da década de 1990 do século passado, foi o fato social que impulsionou a criação de um instrumento jurídico adequado à salvaguarda do patrimônio cultural imaterial no Brasil, in casu, o próprio Registro do PCI. O requerimento na esfera federal deu-se como estratégia de grupos sociais tradicionais, músicos e dançarinos dos estilos para obter proteção de seus direitos coletivos sobre o saber-fazer, diante de um pedido de registro de Marca no INPI, no ano de 1996, por um etnomusicólogo (DIANOVSKY, 2013, p. 26).

Na época, o IPHAN negou o pedido, pois o tombamento era adequado somente à proteção de bens materiais, móveis e imóveis. O Registro desse saber como bem cultural imaterial brasileiro veio, anos depois, quando, para se defender de apropriação indevida de terceiro mediante uso de instrumento da propriedade intelectual, grupos tradicionais, com apoio de organizações da sociedade civil, incorporaram a ideia positiva da existência de direitos intelectuais coletivos associados ao patrimônio cultural imaterial. A mobilização social contra uso exclusivo individualizado de marca que alcançava o nominativo viola-de-cocho dispôs de estratégias jurídicas através do instrumento de proteção do patrimônio cultural até então disponível, o tombamento, e acelerou as tratativas do IPHAN para se pensar a criação do que viria a ser o Registro do PCI.

Embora este fato seja apenas relatado no processo administrativo do Registro do PCI, ele foi determinante para que o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular –

CNFCP auxiliasse o embargo do registro de Marca, através de pesquisas que justificaram posteriormente o reconhecimento e a valorização do saber (IPHAN, 2004c, p. 215; VIANNA et. al., 2011, p. 61), advertindo sobre os riscos do fim da matéria-prima da viola, do desaparecimento do próprio saber e da inserção de modelos do instrumento musical no mercado de artesanato fora do seu contexto simbólico (IPHAN, 2004c, p. 98).

Apesar da importância da disputa em torno da apropriação do modo de fazer a viola-de-cocho via registro de Marca, o pedido de reconhecimento por meio do Registro do PCI apresentava essas motivações dissociadas expressamente do caso, referendando a pesquisa do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, realizada com o emprego da metodologia do INRC, com a anuência de mais de cinquenta declarações de mestres-artesãos instrumentistas detentores do saber e abaixo-assinado de representantes de grupos praticantes do cururu e do siriri.

O Anexo I do processo administrativo do Registro da viola (IPHAN, 2004c) documenta e detalha o caso de apropriação indevida. Um etnomusicólogo, sócio da empresa Viola-de-Cocho Produção Artística LTDA, requereu ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual – INPI (1996) o registro de marca mista que continha o nominativo Viola-de-Cocho com exclusividade para serviços de ensino e de educação de qualquer natureza e grau, diversão, sorteio, jogo, organização de espetáculos em geral, de congresso e de feira e outros serviços prestados sem finalidade lucrativa, serviços de diversão, entretenimento e auxiliares, serviços de organização de feira, exposição, congresso, espetáculo artístico, desportivo e cultural e serviços de caráter desportivo, recreativo, social e cultural, sem finalidade lucrativa.

Diante da preocupação com a impossibilidade de não poder mais fazer uso do nome em eventos ou ter que pedir autorização de uso, por meio de contratos e pagamento de remunerações ao empresário, violeiros, músicos e outras organizações da sociedade civil de natureza cultural, no Fórum Cultural Viola-de-Cocho de Mato Grosso, promoveram ampla mobilização conta o pedido. No INPI, a Presidenta da Fundação Vale do Sol ingressou com impugnação ao Registro da Marca, com apoio da Associação Folclórica de Mato Grosso, Museus de Arte e Cultura Popular.

Como estratégia para fundamentação da impugnação, acompanhado de ampla mobilização popular para impedir o registro de Marca no INPI, anteriormente, os violeiros requisitaram no Estado do Mato Grosso o tombamento estadual da viola-de-cocho. O que não ocorreu na esfera federal depois, aconteceu antes no âmbito estadual, pois o bem, não obstante a inadequação do mecanismo, foi tombado pela Lei Estadual nº 6.772, 10 de junho de 1996. Em Mato Grosso do Sul, também houve tombamento, decorrente de projeto de valorização do modo de saber fazer que envolveu instituições universitárias, governo federal, empresas públicas e instituições locais. (IPHAN, 2004c, p. 99)

Com o tombamento deste patrimônio imaterial na esfera estadual, o pedido de impugnação dos violeiros no INPI afirmava, em face do artigo 59 do antigo Código de Propriedade Industrial, que se tinha o receio de que os grupos tradicionais e os músicos não pudessem mais utilizar o nominativo viola-de-cocho, pois o direito marcário garantiria, ao proprietário do sinal distintivo, seu uso exclusivo em todo território nacional para distinção de seus produtos, mercadorias e serviços de outros semelhantes na atividade requerida. Seguindo essa orientação, a “monumentalidade deste PCI”, comprovada pelo tombamento estadual, se afirmava a proibição absoluta, prevista pelo direito marcário, ou seja, o signo não seria registrável por estar legalmente entre as vedações do Código de Propriedade Industrial que protegiam direitos e interesses transindividuais e o interesse público (OLIVEIRA, 2004, p. 25). Existia o dispositivo do artigo 65, inciso I, que excluía monumentos da abrangência do direito marcário – hoje correspondente ao artigo 124, inciso I, da LPI, que dispões que não são registráveis “brasão, armas, medalha, bandeira, emblema, distintivo e monumento oficiais, públicos, nacionais, estrangeiros ou internacionais, bem como a respectiva designação, figura ou imitação”.

Além disso, tais quais os detentores, hoje em dia, solicitam ao IPHAN providências para defesa de seus direitos associados ao PCI, a Associação Folclórica de Mato Grosso pressionou a Secretaria de Cultura para que se manifestasse no processo de Registro de Marca. Ao processo no INPI (1996), foram juntados moção de repúdio, assinada Ganzá – Associação Diamantinense de Cultura, Associação Folclórica de Rosário Oeste, Associação Folclórica de Alto Paraguai, Grupo Musical Semente da Terra, Grupo Musical Som da Terra, e vários ofícios da Vanguarda Nativista, do Grupo Musical Sarã e da Coordenação do Curso de Educação Artística da Universidade de Cuiabá endossando a impugnação com o argumento de que a viola não poderia ser privilégio individual e exclusivo de terceiro estranho às tradições do seu fazer, mas “bem subjetivo” de quem transmite e cultua a tradição do cururu e do siriri, isto é, tocadores e suas famílias a quem são transmitidas o ofício.

Diante da mobilização e da pressão dos detentores, mesmo infrutífero o tombamento na esfera federal, em 1998, o pedido de marca foi indeferido por erro material, ou seja, a marca não possuiria suficientemente cunho distintivo fazendo uso de nome comum, de acordo com o que dispõe art.124, inciso VI (proibição absoluta) da Lei de Propriedade Industrial (LPI) (INPI, 1996; IPHAN, 2009a, p. 75). Porém, após recurso da empresa interessada, o INPI concedeu a marca somente quanto ao seu aspecto figurativo, excluindo o elemento nominativo, por suposto em face das reivindicações dos violeiros e das entidades de proteção do patrimônio cultural.

Mesmo impulsionado por este fato e meio a legislações de proteção da propriedade intelectual na esfera individual, os elaboradores do Decreto nº 3.551/2000 optaram por excluir das suas normas dispositivos de proteção de direitos intelectuais coletivos (DIANOVSKY, 2013, p. 28). Nessa perspectiva, abriram-se as portas para apropriações individuais de patrimônios imateriais coletivos, bem como para que se sustentasse, durante logo tempo, que os efeitos do Registro do PCI seriam apenas declaratórios, com o reconhecimento do bem e a criação de obrigações do Estado para dar suporte logístico, financeiro e humano para sua continuidade. Assim, não se surpreende com a conceituação do mecanismo, presente no processo administrativo do Registro da viola-de-cocho, anos depois do episódio, como “uma ação complementar ao esforço já empreendido de recolher, sistematizar, proteger e salvaguardar conhecimentos tradicionais testemunhos significativos da pluralidade cultural da nação” (IPHAN, 2004c, p. 99).

Durante o processo do Registro da viola, na fase final da instrução técnica, ainda que o parecer do Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI) constatasse os usos dissociados e descontextualizados dos interesses das comunidades detentoras dos saberes (IPHAN, 2004c, p. 164), fez-se questão de frisar advertência de que o Registro não criava, conferia ou reconhecia direitos, tampouco se igualava a mecanismos da propriedade intelectual:

O Registro não corresponde a uma patente de origem, nem visa atestar a autenticidade de um bem cultural. Por se referir a bens de natureza imaterial em sua dinâmica, ‘vivos’ portanto, o Registro não pretende sua ‘cristalização’, no tempo ou no espaço; pelo contrário, aceita e incorpora as atualizações que venham ocorrendo sejam elas de forma e/ou conteúdo.

No processo de Registro se reconhece, destaca, descreve, referência e, finalmente, se titula determinado bem cultural como de todos os brasileiros. Não é um procedimento de caráter excludente, pelo contrário, é inclusivo na medida em que favorece a que outros brasileiros nele se reconheçam e com ele se identifiquem.

[...] Por todo o exposto e, considerando que:

2. a titulação de Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro não outorga título de propriedade, originalidade ou exclusividade às comunidades de praticantes ou detentoras desse determinado bem cultural (IPHAN, 2004c, p. 207).

O parecer considera somente a criação de um direito difuso de toda sociedade ao patrimônio cultural por meio da titulação, mas nega o mesmo status jurídico de sujeito de direito a quem detém o saber registrado, o transmite e é (se sente) responsável por suas formas de produção e reprodução. De fato, não cria obrigações aos detentores, mas restringe o ato de reconhecimento ao aspecto da valorização e visibilidade, negando o alcance redistributivo de direitos e garantias materiais que, se protegidos e declarados, só fortalecem a salvaguarda do PCI.

Isso não foi suficiente para afastar as interpretações particulares que os detentores fizeram do Registro do PCI. A tentativa de apropriação individual do pesquisador desepertava e mobilizava interesses exclusivistas em parte dos grupos sociais tradicionais no uso do mecanismo. Após o Registro, Associação Folclórica de Mato Grosso, considerando o caso do INPI, o tombamento estadual, a territorialidade, reivindicou em pedido de reconsideração que o patrimônio cultural imaterial reconhecido se restringisse ao Estado do Mato Grosso (IPHAN, 2004c, p. 196-197), imaginando que o instrumento se assemelharia a indicações geográficas. Em resposta, o IPHAN esclareceu que o saber não limitava a um contexto geográfico específico, podendo ser encontrado nos dois Estados mato grossenses. Além disso, apoiou-se no critério da relevância nacional para afastar a oposição da associação, reafirmando o caráter de patrimônio cultural brasileiro do savoir-faire, e não somente estadual.

Quanto ao conflito envolvendo os grupos tradicionais de violeiros e a empresa, quanto ao Registro de Marca, no processo do Registro, não chegou a ser suficiente para modificar a interpretação do IPHAN sobre os efeitos do mecanismo. Assim, também, a questão não foi problematizada a esse ponto, como se depreende do parecer do DPI. Na fase decisória, o Conselho Consultivo ratificou o parecer do relator que resume o litígio:

Em meio à permanente ameaça de diluição dos significados das expressões tradicionais frente às novas demandas colocadas pela cultura de massa, as rodas tradicionais continuam acontecendo, e a viola-de-cocho, amplamente conhecida e reconhecida, foi tombada como patrimônio nos dois estados da federação, o que reafirma seu papel de símbolo de identidade cultural. A recente constituição da figura do registro patrimonial de bens culturais de natureza imaterial no âmbito do Estado instituiu, então, novos mecanismos de salvaguarda para o sistema cultural que compreende o instrumento. Em Mato Grosso, o processo de tombamento foi deflagrado com reação a uma solicitação provisória de registro da marca “viola-de-cocho” junto ao Inpi, por um estudioso de música de Cuiabá, na década de 1990. Após ampla mobilização e protesto por parte dos setores ligados à cultura local, a solicitação foi indeferida, e o bem, em seguida, tombado. Em Mato Grosso do Sul o tombamento veio como consequência de um projeto de fomento e valorização da tradição artesanal e musical que estava invisível no estado. (IPHAN, 2009a, p. 71)

O conflito envolvendo a tentativa de apropriação individual da viola-de-cocho por um estudioso da música demonstra que não apenas se socorre do Registro para interromper iniciativas dessa natureza, mas dos mecanismos de proteção do patrimônio cultural à disposição dos detentores dos saberes, de acordo com a estratégia dos atores sociais mobilizados para garantir a continuidade de seu modo de saber-fazer de forma coletiva, ampla e participativa. Igualmente, esses instrumentos jurídicos não foram os únicos acionados para impugnar o registro de marca no INPI intentado pelo musicólogo; os interessados lançaram mão de procedimentos da própria autarquia para requisitar o indeferimento do pedido com base nas limitações do direito marcário previstas na Lei de Propriedade Industrial.

Os conflitos entre salvaguarda do PCI e a propriedade intelectual, mormente com o direito marcário e seus direitos conexos, têm ganhado proporções. É frequente o pedido de registro de marcas nominativas com nomes sagrados de povos indígenas e comunidades tradicionais. Como visto no caso da viola-de-cocho, apesar da apreensão de foliões e dos organizadores da festa e de não se tratar de marca, a LPI têm regras absolutas de proibição de registro de signos de natureza pública, tais quais manifestações culturais populares. Em síntese conclusiva, Gonzaga Adolfo e Aline Leal Fontanella (2011) defendem, semelhantemente aos violeiros, que expressões culturais tradicionais não poderiam ser registráveis pelo direito marcário e dos nomes de domínio para atender interesses econômicos de terceiros, pugnando pela atuação dos órgãos de proteção do PC:

Embora preserve o evento e, consequentemente, os elementos que o compõem (dentre eles, os bonecos gigantes), a legislação não define, especificamente, o que o caracteriza. Isso porque a cultura é um processo dinâmico e vivo, sendo, possivelmente, inviável torná-lo estanque a padrões imutáveis – na contramão, estar-se-ia impedindo o desenvolvimento da própria cultura. A priori, portanto, não há impedimento ao desfile de bonecos realizado de forma paralela, observadas as condições e restrições municipais e estaduais cabíveis ao evento.

Por outro lado, a Lei de Propriedade Industrial impede o registro de marca alusiva à manifestação cultural (como se pode depreender da leitura de seu artigo 124, inciso XIII: nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo, artístico, cultural, social, político, econômico ou técnico, oficial ou oficialmente reconhecido, bem como a imitação suscetível de criar confusão, salvo quando autorizados pela autoridade competente ou entidade promotora do evento). No caso em questão, não houve o registro de marca, mas de nome de domínio relacionado a evento cultural. Trata-se de institutos diversos, mas estreitamente correlacionados nestes tempos de acesso global à Internet. Por isso, a legislação aplicável garante ao detentor do registro da marca, também, o registro do respectivo nome de domínio. Tal nome de domínio estaria, nessa perspectiva, entre aqueles direitos que podem ser chamados de conexos ao direito de propriedade intelectual, ou, mais propriamente, afins ao Direito Marcário. Embora, ao digitar-se determinado endereço, esteja-se, na verdade, acessando aqueles dados, isso ocorre, em última análise, a partir da consagração de determinado nome, seja civil empresarial, ou de evento cultural.

Neste caso, trata-se de evento cultural tradicional cujo registro de marca não foi feito – até porque, em princípio, é inviável, considerando-se o impedimento posto pelo artigo 124 supracitado. Todavia, a mesma regulamentação aplicável ao registro de nomes de domínio prevê, no inciso IV do seu art. 3.º, que ‘o domínio escolhido pelo requerente não deve tipificar nome não registrável’.

Entender diferentemente permite a abertura de uma brecha para a descaracterização da expressão cultural tradicional não em prol da própria evolução da cultura, mas em face de interesses econômicos privados, que, se podem ser legítimos, é claro, devem obedecer à tutela cultural da coletividade e de suas criações.

Assim, é relevante a reflexão no sentido de que, embora a manifestação cultural possua proteção legal, cabe ao órgão responsável muito mais que a mera certificação de tal fato, mas a responsabilidade pela sua manutenção e pela inocorrência de sua descaracterização nos moldes como originalmente pretendido.

Pode-se dizer que Registro do PCI por si só não produziria efeitos suficientes para a proteção dos bens imateriais e não teria força jurídica vinculante para interromper procedimentos de registros de Marcas ou de nomes de Domínio que, apesar das vedações legais, intentassem garantir o direito exclusivo de utilizar signos e nomes oriundos de conhecimentos e expressões tradicionais. Dessa maneira, como se verá no uso da PI a favor dos detentores, o Registro, por enquanto, ainda que possua efeitos mediatos implícitos constitutivos, deve ser auxiliado e sobreposto por outros mecanismos (TELLES, 2007, p. 13) a fim de resguardar os direitos culturais coletivos de povos, grupos e comunidades tradicionais.

Por fim, averígua-se que o IPHAN não é a única instância estatal responsável pela observância da concretização das normas de reconhecimento do PCI. O INPI e outras autarquias federais também se deparam com demandas de reivindicações de direitos intelectuais coletivos, usos defensivos do PCI contra apropriações indevidas da PI etc. Por isso, o mecanismo do Registro necessita de atualizações que prevejam atuações conjuntas, compartilhadas ou interinstitucionais para a garantia da salvaguarda do PCI.

3. O caso do ofício das Baianas de Acarajé

Ao lado da viola-de-cocho, em 2004, o ofício das Baianas de Acarajé foi registrado no Livro dos Saberes, fruto de pesquisa de identificação do INRC realizada pelo CNFCP, no projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular, denominado “Acarajé em Salvador – técnicas de feitura do acarajé e seu universo simbólico”, e da solicitação de organizações da sociedade civil de afrodescendentes e representativas das baianas para o reconhecimento do fazer culinário a fim de valorizá-las e frear a massificação do bolinho pelo turismo, pelo comércio de bares e restaurantes e pela indústria alimentícia.

A principal reivindicação das baianas não é propriamente por direitos intelectuais coletivos através do Registro, mas pela garantia que o mecanismo lhe conferiria para uso dos logradouros públicos para venda de Acarajé. Não obstante, apresentou ao IPHAN demanda nesse sentido para impedir que empresa comercializasse os bolinhos congelados.

As baianas, desde o Registro de seu PCI, portam as certidões que lhes foram distribuídas pelo IPHAN como um documento de autenticidade do fazer do acarajé, bem como de status honorífico “para garantirem seus locais de venda e não serem confundidas com vendedores ‘ambulantes’ quaisquer” (ALENCAR, 2010, p. 31). Por isso, desenvolveram a expectativa, como os demais detentores de saberes tradicionais em outros casos, que o Decreto nº 3.551/2000 as protegesse da concorrência predatória do mercado e das constantes modificações na organização dos espaços da cidade de Salvador que tradicionalmente ocupam para a venda do bolinho de feijão fradinho.

Em trecho da pesquisa do INRC que embasou o reconhecimento desse fazer, percebe-se as mudanças provocadas pelo Registro entre os detentores, assim também abertura para identificação de efeitos amoldados juridicamente a reivindicações de direitos:

Esse decreto é uma espécie de conquista resultante de longo processo de amadurecimento da legislação no sentido de aperfeiçoar os instrumentos de proteção e salvaguarda de parte do patrimônio cultural não suscetível ao tombamento e ao direito autoral. Não cria instrumentos fechados, normativos e restritivos, mas abertos aos pontos de vista e expectativas dos produtores de tradições culturais específicas. Pressupõe as dinâmicas próprias dessas tradições, sem pretender engessar suas formas e conteúdos no tempo e no espaço (IPHAN, 2004a, ANEXO I, p. 3).

Antes do Registro, o Decreto Municipal de Salvador nº 12.175, de 25 de novembro de 1998 (IPHAN, 2007a, p. 67 e ss.), já regulamentava o comércio informal das baianas de acarajé e mingau nos logradouros públicos da capital baiana. Mais do que mecanismo de proteção do patrimônio cultural, trata-se de fato de normativa que se preocupa com a organização do espaço público, com questões atinentes à saúde do consumidor e fiscalização da vigilância sanitária, obtenção de alvará para funcionamento, regras de instalação e conservação dos tabuleiros e infrações administrativas e as respectivas sanções.

No entanto, curioso nesta norma secundária é a presença de disposições que obrigam as baianas a trajarem indumentária típica e que descrevem como característica exclusiva e essencial desse comércio a culinária local, constituída de comidas feitas à base do dendê e do mingau. Tanto que se constitui como infração administrativa comercializar produtos alimentícios de outra natureza e usar vestimenta em desacordo com a tradição das baianas. Em complementaridade, o Município de Salvador, através de sua Secretaria de Serviços Públicos, emitiu a Portaria nº 171/99, que padronizou os equipamentos usados para a atividade como o tabuleiro e o sombreiro, e determinou a obrigatoriedade do uso das peças típicas do vestuário das baianas, descrevendo em pormenores as especificações técnicas das roupas, inclusive quando utilizadas em festas.

O Registro do PCI não traz qualquer obrigação aos detentores de expressões e saberes tradicionais, somente ao Poder Público. Ambas as normas citadas criam obrigações que são estranhas à salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, que se assenta no equilíbrio entre mutação e a continuidade do bem, sem maiores intervenções do Estado, nem direcionamento de como devem transmitir ou praticar seus conhecimentos acerca do modo de saber-fazer.

Porém, o objetivo dessas normas de conduta é afirmar a identidade das baianas em seu fazer tradicional, contra as apropriações do mercado e restrições de controle sanitário, na frente das quais são vulnerabilizadas ou vítimas da intolerância religiosa e racial. O reconhecimento de seu saber-fazer é maneira de assegurar a continuidade do ofício associado à matriz africana de suas origens e de suas profissões de fé. A gentrificação nas capitais e a padronização de atividades comerciais tradicionais descaracterizaram elementos essenciais para transmissão desses modos de fazer. Nesse sentido, ratificado pelo Conselho Consultivo, foi o Parecer do DPI (IPHAN, 2004a, v. II, p. 134-138) ao final da fase de instrução do Registro do Ofício das Baianas de Acarajé:

A par disso, o foco do Registro no Oficio das Baianas de Acarajé, em Salvador, BA, é imprescindível à salvaguarda dessa tradicional ocupação, mais que do próprio acarajé. Ambos encontram-se ameaçados de fragilização, pela apropriação comercial para consumo massivo desse saber ancestral, associado às normas de controle sanitário do poder público, invariavelmente insensível quanto aos aspectos culturais dos fazeres populares tradicionais, questões suficientemente descritas no processo e adiante comentadas. (p. 134)

[...]

Como grupo social integrante das camadas populares, as baianas de acarajé sofreram marginalizações e vivenciaram perseguições em razão de opções religiosas. Ao longo do tempo e em maior ou menor intensidade também receberam questionamentos quanto à qualidade e às condições de higiene de seus produtos.

A partir do reconhecimento da sociedade baiana do valor do acarajé e de outras comidas baianas como parte do sistema culinário regional, bem como da ocorrência de sucessivas crises econômicas no país que geraram a expansão moderada do comércio informal, ocorreu urna significativa ampliação do número de produtores e vendedores desse oficio (p. 137).

A apropriação e ressignificação do produto cultural, que não podem ser refreados, com sinais de mercantilização e domesticação, embora possam trazer benefícios econômicos e ascensão social significativa para algumas das baianas, trazem consigo uma ameaça de homogeneização de urna prática, que durante muito tempo, teve as baianas de tabuleiro como únicas transmissoras. Apresentam ainda o risco de urna certa limpeza de traços culturais indesejáveis pelos setores dominantes da sociedade, bem como de banalização consumista das comidas de baianas (p. 138).

Ainda sem resultados conclusivos acerca da demanda feita pelas baianas de acarajé ao final do ano de 2015, mas cujos pressupostos demonstram o uso do Registro pelos detentores tradicionais com o objetivo de ver tutelados direitos intelectuais coletivos, é ofício enviado ao IPHAN pela Associação de Baianas de Acarajé e Mingau do Estado da Bahia requisitando providências da autarquia para inibir o uso do nominativo “acarajé” fora do contexto tradicional registrado como bem cultural imaterial.

As baianas expressamente solicitaram medidas protetivas da autarquia “defendendo este grupo contra a apropriação indébita de seus saberes” (IPHAN, 2015a, p. 01) para a defesa dos seus direitos intelectuais e morais sobre o acarajé. Mas não termina aí, a estratégia é se valer da própria norma constitucional do § 1º do artigo 216, juntamente ao Registro, que prevê outras formas de acautelamento as quais o Poder Público pode utilizar diante da necessidade de proteção do patrimônio cultural ou insuficiência dos mecanismos existentes. Daí porque a providência principal refere-se à manutenção do nome de domínio “acarajé” sob o poder das baianas, muito embora o pedido tenha sido realizado por uma associação que representa somente os indivíduos ou pessoas jurídicas a ela vinculados.

A maior queixa já tinha sido antecipada pelos estudos preliminares que embasaram o ofício como referência cultural brasileira, isto é, a transformação do tradicional bolinho em mercadoria da indústria alimentícia de congelados e, consequentemente, o nominativo acarajé associado a domínios de sítios eletrônicos privados e marcas de empresa aparentemente especializada em transformação da culinária tradicional baiana em produto de supermercado. Além disso, ratificaram a mesma preocupação exposta no pedido do Registro e no INRC da mudança do nome do acarajé para “bolinho de Jesus” em virtude das mudanças da orientação de fé religiosa de algumas baianas (IPHAN, 2015a, p. 02).

O fundamento da requisição é justamente o argumento a respeito dos efeitos que o Registro traria após a inscrição do bem em um dos Livros. Por outro lado, há um apelo à observância ao princípio da continuidade histórica do bem e a ameaça de que essas apropriações sejam obstáculos para a solidariedade intergeracional, ou seja, a transmissão desse saber para as atuais e futuras gerações.

Outra crença do requerimento é baseada nas próprias práticas administrativas do IPHAN, que se tornaram precedentes para invocar sua atuação em casos semelhantes. A atuação da autarquia no exercício de seu poder de polícia, baseado pela competência legal e infralegal, produziu situações nas quais serão recorrentes a reivindicação dos detentores dos conhecimentos tradicionais para que ela haja de acordo com o princípio jurídico da isonomia, em conflitos que envolvam risco ou haja potencialidade de dano ao bem imaterial, ainda que a singularidade de cada um vezes não autorize o mesmo tratamento dado a situações de naturezas diversas em casos distintos que possivelmente envolvam apropriação por terceiros (IPHAN, 2015a, p. 03).

Diante disso, a associação, para garantir os direitos das baianas, fez uso exemplificativo de rol de casos nos quais o IPHAN tratou o Registro como garantidor e efetivador de direitos culturais, quais sejam a atuação diante do uso comercial dos grafismos dos Wajãpi por empresa de papel de paredes e a notificação à multinacional Coca Cola para que se abstivesse de criar um refrigerante com a marca Crush Cajuína em clara referência à bebida proveniente do caju cujo modo de saber-fazer é salvaguardado a partir das práticas de produção no Estado do Piauí.

A estratégia da ABAM serve como ponto chave dos efeitos mediatos implícitos constitutivos do Registro, mas, por certo, não tem o compromisso, dentro dos interesses em jogo, em sopesar e comparar cada uma das situações aludidas na denúncia ao IPHAN para exigi-lo o mesmo tratamento. É certo, por outro lado, que a criatividade dos usos pelos detentores e reivindicações dessa natureza demonstram também a necessidade da regulamentação jurídica do âmbito de proteção de expressões e conhecimentos tradicionais a partir mesmo do Registro do PCI.

Não foi somente esta vez que as baianas fizeram uso ampliado do Registro. Além da reivindicação de direitos intelectuais coletivos, em outras duas questões se valeram do ato declaratório do mecanismo de reconhecimento: na defesa de seus direitos de imagem associados à marca e na garantia do espaço público para venda de seus produtos durante a Copa do mundo no Brasil.

O primeiro caso refere-se à associação da imagem das baianas e do seu fazer à marca de empresa de refrigerantes interessada no patrocínio da atividade tradicional. Em contrapartida, a patrocinadora reformaria e manteria durante um ano o Memorial das Baianas que carecia de financiamento e de recursos para funcionamento após o seu encerramento em 2011, fruto do término de convênio entre o IPHAN e a ABAM, oriundo do Programa Cultural Viva (QUEIROZ, 2016, p. 206). Após se inteirar dos interesses da empresa em utilizar referências às práticas culturais das baianas fora do contexto no qual houve o registro do ofício das baianas de acarajé, a própria associação representativa das baianas solicitou ao IPHAN que a auxiliasse na elaboração de contrato de parceria, o que ocorreu, mas conforme a previsão das ações no “Termo de Referência de Plano de Salvaguarda” da Autarquia e a apresentação à empresa do Programa Nacional de Patrimônio Imaterial.

Porém, segundo o relato de Hermano Queiroz (2016, p. 208), após as orientações e sugestões de modificação do contrato pelo IPHAN, a ABAM não se satisfez por completo com o nível de intervenção nas tratativas. Por outro lado, uma segunda versão contratual enviada pela empresa sequer atendia às solicitações de alteração contratual requisitadas sobretudo com a adoção de campanhas publicitárias que poriam “a comunidade interessada em situação de total vulnerabilidade, sobretudo em razão da insegurança jurídica que marca uma contratação tão permeada de dispositivos abertos e fluidos e cuja publicidade é contratualmente vedada sem a necessária motivação para tanto” (QUEIROZ, 2016, p. 212).

Ademais, ainda que estivessem lidando com uma autarquia federal, e com o fato de o contrato necessariamente envolver o Município de Salvador por versar sobre uso de espaços públicos ocupados pelas baianas, dos quais, sem a autorização administrativa devida, perderiam sua licença, e de o ente federado ser o proprietário do imóvel do Memorial, a proposta continha cláusula de sigilo e confidencialidade, o que violaria o princípio jurídico-administrativo da publicidade e o direito de acesso à informação dos cidadãos nos negócios jurídicos dos quais participem a Administração Pública (QUEIROZ, 2016, p. 212-213).

Nessa esteira, Hermano Queiroz (2016, p. 213) questiona os limites dos supostos benefícios econômicos que um contrato dessa natureza traria aos detentores de saberes tradicionais, quando, em verdade, comprometeria sua participação nos próprios desígnios do bem, sem descaracterizá-lo, ainda que se admita a própria possibilidade de ressignificação e mutabilidade. Porém, quaisquer mudanças têm de partir de contextos de interculturalidade, criatividade e inovação nos quais os próprios sujeitos coletivos participem em condições de igualdade com os demais atores sociais. No entanto, o Registro assegura ações de continuidade que podem ser comprometidas pela comercialização em termos exclusivistas por terceiros que desconhecem sua dinâmica ou dela não tem qualquer compreensão, tampouco faz questão de ter, pois essa linguagem da descaracterização não os preocupa nem os atinge.

O caso ainda enfatiza, segundo Hermano Queiroz (2016, p. 213), uma outra dimensão: o ingresso do Poder Público nos papéis não apenas de mediador entre as partes – de um lado as baianas, de outro a empresa de refrigerantes – mas de diretamente interessado na relação jurídica, tendo em vista sua responsabilidade enquanto agente de salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. Não se sabe ao certo se o pacto fora firmado, mas, em outras proporções, conforme Hermano Queiroz (2016, p. 214), a situação voltou a se repetir em um segundo caso.

4. O caso da produção tradicional e das práticas socioculturais associadas à Cajuína do Piauí e o Refrigerante de Caju

Assim como o fazer do ofício das Baianas, do Queijo de Minas, das Paneleiras de Goiabeiras (IPHAN, 2008b, p. 76), outros bens registrados como expressões, tais quais o Carimbó (IPHAN, 2008a, v. I, p. 09) e o Ritxòkò, a produção artesanal da cajuína é alvo da homogeneização do mercado para atendimento de consumo massificado, bem como da tentativa de transformação do processo tradicional em técnica de escala industrial.

A iniciativa em torno do Registro da cajuína é resultado de processo histórico antigo. Estudos multidisciplinares sobre os usos e os derivados do caju como patrimônio cultural estavam presentes nas ideias de Aloísio Magalhães em um dos trabalhos de pesquisa do convênio do Centro Nacional de Referência Cultural, como um dos referenciais básicos da dinâmica cultural brasileira (IPHAN, 2008b, APENSO III). Segundo o antigo gestor do IPHAN (MAGALHÃES, 1985, p. 223), “a diversidade de usos é tal que ele já saltou para fora do uso direto e já tem os usos simbólicos.”. A representatividade do caju para a região nordestina demonstrada nesses estudos anteviu a patrimonialização de técnicas e modos de saber-fazer, dentre eles a produção do famoso vinho de caju fabricado, desde o final do século XIX, pela Fábrica de Vinhos de Caju Tito Silva que viera falir já no início do período da Ditadura-Civil Militar de 1964.

Com certa mudança de orientação quanto aos valores e critérios de seleção dos bens culturais, dentro da perspectiva de tecnologias patrimoniais, dinâmicas culturais e contextos socioeconômicos, defendida por Aloísio Magalhães, o edifício da fábrica da empresa no Estado da Paraíba foi tombado em 1984. Uma tentativa de salvaguardar a técnica do fazer, porém com um instrumento de proteção ao patrimônio cultural inadequado: o tombamento. No entanto, à época, como visto anteriormente, inexistia mecanismo que pudesse suprir essa ausência. Décadas mais tarde, os produtores de cajuína do Estado do Piauí recorreram ao Registro do intangível para tutelar o processo de produção.

O processo artesanal é semelhante entre os produtores, mas o produto final pode ser diferente a ponto de interferir no sabor, a depender do núcleo produtor. Segundo o pedido de Registro da CAJUESP (IPHAN, 2008b, v. 1, p. 07), o processo de fabricação era comunitário familiar, de pequenos e médios produtores, ia desde a colheita até o engarrafamento da bebida para consumo, mas, paulatinamente, foi acrescido de elementos de lógica agroindustrial de mercado, contudo o saber-fazer artesanal em si servia de freio para modificações mais bruscas da cajuína como a gaseificação. Porém, as inovações trazidas com ideias sobre segurança alimentar e saúde, aliada a busca por novos nichos de consumidores teriam feito com que grandes empresas buscassem empreender a partir de produtos como a cajuína, o que poria em risco e comprometeria o conjunto de práticas e relações simbólicas engendradas no seu fazer.

Na justificativa do pedido, apoiada através de abaixo-assinado de cooperativas e associações de produtores, a expectativa é que o Registro resguardasse direitos difusos e coletivos relativos ao uso desse modo de saber-fazer. A produção da cajuína apenas baseada na técnica poderia comprometer a qualidade do produto (IPHAN, 2008b, v. 1, p. 07).

Solicitamos, por conseguinte, ao Presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (IPHAN), o registro do modo de fazer tradicional da CAJUÍNA como patrimônio cultural brasileiro, como forma de contribuir para preservação e salvaguarda da nossa identidade local, assim como para fomentar políticas voltadas à qualidade do produto, uma vez que sua produção tecnificada poderá comprometer sua qualidade enquanto um produto da nossa tradição cultural. Por outro lado, esse pedido visa à criação de uma política de inclusão social na medida em que o fazer tradicional da cajuína vem assegurar a participação da pequena agricultura familiar. Mesmo em termos mercadológicos, somente preservando e salvaguardando o modo tradicional de fazer a cajuína poderemos diferenciá-la qualitativamente dos sucos e refrigerantes industrializados e assim garantir seu sabor inigualável. Da mesma forma, para atender as demandas do mercado interno e externo ao preservar seu modo de fazer tradicional, ao preservar seu modo de fazer tradicional estaremos ampliando esta oportunidade a milhares de famílias de pequenos produtores.

Diante do pedido, a Câmara do Patrimônio Imaterial requereu o registro de todo o complexo cultural do Caju. A Técnica que atuou nas pesquisas sobre o pedido inicial e o DPI requereram reconsideração em virtude da relação identitária entre a população do Piauí e a cajuína, que não se estendia para outros produtos derivados do caju, tampouco esse elo era encontrado em todos os Estados fabricantes de cajuína ou cultivadores do caju. No Estado do Piauí, o Decreto nº 13.068, de 15 de maio de 2008, declarou o modo de fazer a cajuína como de relevante interesse cultural, passando a integrar formalmente o patrimônio cultural piauiense.

Durante o processo do Registro do modo de fazer a cajuína, a Superintendência do IPHAN no Estado do Piauí, por meio de matérias jornalísticas e denúncias de pequenos produtores, recebeu a notícia de que a empresa multinacional Coca-Cola lançaria um refrigerante gaseificado à base de guaraná e suco de caju, nos Estados do Piauí e do Ceará, sob a designação “Crush Cajuína”. A escolha do nome e dos componentes, segundo as informações do IPHAN, não foi à toa, mas baseadas em pesquisa de mercado que demonstravam o apreço das populações dos Estados do Nordeste pela cultura do consumo de derivados do caju (IPHAN, 2011b, p. 19-20).

A Superintendência, atendendo aos reclames dos produtores, encaminhou pedido ao Departamento de Patrimônio Imaterial do IPHAN para que tomasse providências. O fundamento do requerimento não apenas mencionava que o modo de saber-fazer da cajuína estava em processamento para registro como bem cultural imaterial brasileiro, quanto o uso do nominativo, apesar de ser de domínio público, estava associado a produto artesanal e tradicional que se vinculava a tipo de bebida diversa. Tanto o IPHAN quanto os detentores do saber demonstraram preocupação com a apropriação indevida do nome cajuína, pois poderia comprometer a transmissibilidade do bem a futuras gerações, em virtude da confusão que o lançamento do refrigerante poderia ocasionar entre a bebida fruto do caju e o gaseificado. Além disso, poderia comprometer até a produção artesanal da cajuína que não teria condições de concorrer com a indústria de refrigerantes em larga escala, e também até a relação identitária entre o povo piauiense e a bebida do caju, além dos riscos de padronização (IPHAN, 2011b).

Dentre os encaminhamentos requeridos ao DPI pela Superintendência, encontram-se pedidos de providências jurídicas de notificação da multinacional para conhecimento de suas intenções com o novo refrigerante e à procuradoria jurídica da União para saber que medidas se poderia adotar para impedir o uso do nome cajuína (IPHAN, 2011b). Segundo o Parecer do Conselho Consultivo (IPHAN, 2008b, v. 3, p. 444) já para decisão do ato final do Registro, o ano de 2011 foi praticamente preenchido com a preocupação em torno do lançamento de produto que poderia contribuir para aumentar o risco de desaparecimento do processo tradicional de feitura da bebida.

A mobilização em torno da proteção da cajuína como patrimônio cultural envolveu a população do Estado do Piauí, produtores, intelectuais, acadêmicos e resvalou também nos poderes instituídos tal qual a Assembleia Legislativa Estadual na qual parlamentar convocou audiência pública para discutir a apropriação da cajuína pela empresa (IPHAN, 2011b, p. 25-26). A multinacional emitiu nota pública na qual se manifesta que nunca teve a intenção de requerer a “patente” do termo ou registrar a marca nominativa. Contudo, defendendo que o uso da palavra cajuína era absolutamente livre, muito embora não fizesse parte dos direitos sobre a marca “Crush” da qual é proprietária. (IPHAN, 2011b)

A própria Superintendência do IPHAN no Piauí notificou a empresa (IPHAN, 2011b, p. 21) para que prestasse esclarecimentos acerca do refrigerante, informando que não se tratava de cajuína e que havia processo de Registro da bebida derivada do Caju em curso. A multinacional requisitou os dados sobre os procedimentos do mecanismo (IPHAN, 2011b, p. 29), mas em seguida desistiu da produção do gaseificado, supostamente pela repercussão negativa em sua imagem diante do caso.

O caso, em relação aos demais, demonstra que, antes mesmo da conclusão do Registro, a defesa do modo de saber ainda não declarado como bem imaterial, por parte dos detentores do conhecimento do processo da cajuína, da mobilização popular e da ação administrativa do IPHAN, houve extensão dos efeitos da salvaguarda pretendida que demoveu a empresa de seguir adiante com seu empreendimento. Tanto a crença dos produtores da cajuína quanto do IPHAN, eram a de que, semelhante ao tombamento provisório, o simples fato de estar em curso o procedimento administrativo era suficiente para limitar ato de terceiros que pudessem comprometer a salvaguarda do bem.

Ainda assim, a busca pelas providências, que não foram necessárias, revelam que mesmo diante da incerteza jurídica, em última instância, o dever legal de proteção do patrimônio cultural autorizava o IPHAN a buscar uma solução. É certo, porém, que desde 2008, no âmbito estadual, o modo de fazer a cajuína foi declarado como de relevante interesse cultural, mas sob o ponto de vista dos encaminhamentos e dos argumentos jurídicos declinados pela Autarquia e pelos detentores, esse fato conferiu apenas maior reforço à organização das vozes contrárias ao refrigerante, mas não suscitou efeitos que sobrepujassem a crença na eficácia provisória, baseada na existência do processo de Registro.

Por outro lado, em relação aos detentores do saber-fazer, não apenas o encaminhamento de soluções junto ao IPHAN, mas reivindicações sobre o uso do nominativo associado ao produto tradicional, seriam a relação que certificaria seu processo e origem, o que a produção de refrigerante distinto da bebida ocasionaria confusão entre elementos distintivos e a qualidade característica da cajuína. Nesse sentido, os produtores inconscientemente estavam a reclamar efeitos provisórios do Registro e creditar tipos de certificação exclusiva que, no campo da propriedade industrial, somente a indicação geográfica ou a marca coletiva registrada diante do INPI poderiam dar. Talvez por isso, posteriormente, associações e cooperativas de produtores de caju tenham recorrido quase que concomitantemente ao episódio [abril de 2012] à indicação de procedência (INPI, 2014).

De outro modo, a empresa sustentou o argumento do domínio público para uso indistinto do nome, bem como deixou implícito a possibilidade do registro da marca junto ao nome do refrigerante já existente, sem considerar sua vinculação ao modo de saber-fazer da cajuína, ideia semelhante à conduta que resultou na marca individual viola-de-cocho, mas recebeu a impugnação dos violeiros que conseguiram junto ao INPI a remoção de exclusividade do uso quanto ao nominativo associado ao bem cultural imaterial.

Outro aspecto a ser destacado, é o da participação popular na proteção do patrimônio cultural, alicerçando a estratégia dos detentores e da autarquia federal para impedir a apropriação indevida que pusesse em risco às práticas socioculturais da Cajuína antes mesmo que o Registro acontecesse. É prova de que o conceito de patrimônio cultural do artigo 216 da Constituição Federal não apenas confere direito cultural coletivo aos bens declarados pelos mecanismos nela previstos, mas se trata de norma igualmente de garantia cujo exercício de cidadania ativa funciona igualmente como forma embrionária de acautelamento comunitário e dever de proteção estatal.

Já se encontrava no Dossiê acerca dos estudos realizados para o registro da cajuína recomendação para ações de salvaguarda (IPHAN, 2008b, p. 194) que defendessem os produtores contra grandes empresas da indústria alimentícia:

2) A disseminação da arte de fazer cajuína por novas categorias sociais, que só agora têm acesso a seus implementos, é positiva e pode significar uma geração de renda, de segurança alimentar, de melhoria da saúde da população e, consequentemente, do desenvolvimento do Estado do Piauí. Para que este desenvolvimento seja o mais equitativo possível, é importante que as autoridades locais criem um arcabouço jurídico e condições de possibilidade, de modo a evitar ações de grandes empresas que têm buscado monopolizar outras fontes deste tipo de bebida tanto na esfera das águas minerais quanto de produção de frutas como o guaraná.

A ameaça da entrada de grandes capitais no Estado com a intenção de monopolizar ou ao menos colonizar a produção da cajuína não é tão absurda assim, diante da enorme pressão do mercado por esse tipo de produto (ver artigos anexados). A melhor maneira de se defender dessa tendência de mercado é o fomento da pequena produção, privilegiando o imenso contingente de novos proprietários de terras nos assentamentos e produtores na agricultura familiar.

Outro aspecto relevante do processo, presentes no parecer do DPI (IPHAN, 2008b, p. 406-410), ao final da instrução técnica do Registro, é notar a presença de outros atores EMBRAPA, BNB, EMATER, SEBRAE, atuando como parceiros dos produtores interessados no Registro e do IPHAN, em auxílio a pontos voltados para inserção dos produtos desse modo de fazer no mercado.

Ao mesmo tempo em que essas parcerias colaboraram na salvaguarda do PCI e ajudaram os pequenos produtores a organizar a sua produção, é fato que muitas das orientações técnicas recebidas eram no sentido de padronizar a produção de acordo com a visibilidade criada pelo mecanismo do Registro, visando o mercado externo e migrar para transformação do fazer artesanal para indústria de grande porte, excluindo o caráter familiar do savoir-faire, incrementando insumos, infraestruturas e introduzindo novas variedades do caju.

Ao lado de outros bens imateriais registrados como saber-fazer, os detentores da produção tradicional, além de terem feito uso positivo e defensivo da proteção do patrimônio cultural imaterial contra tentativa de apropriação indevida, associaram propositivamente o Registro do PCI às indicações geográficas. O processo de requisição no INPI foi financiado e orientado pelo SEBRAE e pelo BNB que integraram a rede de parcerias para o Registro.

Esta alternativa de uso da indicação geográfica associada ao Registro do PCI está se tornando frequente pelos detentores, diante das incertezas, inseguranças e desilusões sobre os efeitos imediatos explícitos declaratórios do mecanismo de reconhecimento. De certa forma, a utilização retoma as primeiras versões do Decreto nº 3.551/2000 nas quais a certidão do Registro conferiria direitos exclusivos sobre determinado fazer identificável em localidade geográfica.

Como se vê, a política de do PCI recorre à sobreposição de instrumentos jurídicos e de ações sociais. A atuação pública e da sociedade civil se adicionam em camada estratigráficas. Os instrumentos jurídicos são experimentados e vão sendo ajustados às necessidades de cada situação.

5. O caso do Ofício das Paneleiras de Goiabeiras

O ofício das Paneleiras de Goiabeiras, juntamente com a Arte Kusiwa dos Wajãpi, foi um dos primeiros bens a serem registrados, segundo o mecanismo de reconhecimento e valorização do Registro do PCI (IPHAN, 2002a). A motivação central do pedido da Associação das Paneleiras de Goiabeiras era proteger o modo artesanal de fazer panelas de barro, em virtude de conflito inicialmente surgido como questão ambiental, com a instalação de obra de saneamento em local de onde extraem a argila para fabricação dos utensílios domésticos usados para cozinhar a moqueca e a trota capixaba, que se iniciou antes do reconhecimento como patrimônio brasileiro.

Desde o início da década de 1990, o Estado do Espírito Santo tinha projeto de implantação de um aterro sanitário em terreno usado pelas Paneleiras de Goiabeiras para extração de sua matéria-prima. Após intensa mobilização social ao final dos anos noventa, com apoio dos meios de comunicação, secretarias de governo do Município de Vitória requereram o tombamento da área, pelo valor cultural depositado pelas Paneleiras na região. Se por um lado havia a defesa do Estado do direito à saúde em benefício de numerosa parcela da população, de outro havia a reivindicação de direitos culturais pelas detentoras do ofício (QUEIROZ, 2016, p. 186-187). Como resultado dessa mobilização, a Companhia Espírito-Santense de Saneamento – CESAN comprometeu-se a suspender o projeto até que fossem realizadas pesquisas de solo para encontrar outras potenciais fontes de argila para as Paneleiras, o que não obteve resultados positivos.

Novamente, em 2001, um ano após a edição do Decreto nº 3.551/2000, a CESAN retomou o projeto. À época, a Associação foi ao Ministério Público Estadual do Estado do Espírito Santo para garantir que obra de saneamento da Companhia Espírito-Santense de Saneamento, no Vale do Mulembá, não comprometesse a extração da argila que é matéria-prima para a produção de panelas de barro (IPHAN, 2002a, v.II, p. 25). A entidade procurou encontrar soluções na própria Lei Municipal de Vitória para Preservação dos Bens e Material de Cultura.

A CESAN e a Secretaria de Estado e Obras Públicas do Espírito Santo firmaram acordo com a Associação, na modalidade permissão de uso (IPHAN, 2002a, v.II, p. 121-123), para que as paneleiras pudessem ocupar a área do Vale na qual tradicionalmente trabalhavam e explorar a jazida de argila que poderia ser comprometida com a estação de tratamento. A Secretaria de Transportes e Obras Públicas concordou em envidar esforços nacionais e internacionais para que as panelas de barro recebessem selo de qualidade, se instalassem no aeroporto para comercialização de suas criações, e que fosse garantida a máxima publicidade do ofício em material publicitário e de propaganda responsáveis por difundir a cultura do Estado.

Essas providências só foram tomadas após a atuação do IPHAN no caso. Com expectativas em torno da constituição de direitos, em março de 2001, a Associação das Paneleiras de Goiabeiras solicitou o Registro do seu ofício como modo de fazer panelas de barro. As Paneleiras tinham a compreensão que o mecanismo de reconhecimento e valorização de bens culturais imateriais garantiria a continuidade da extração da argila e o fabrico das panelas no local tradicionalmente por elas ocupado.

Diante do risco da perda do patrimônio, antes do requerimento, com base no argumento de pesquisa do INRC em curso, a 6ª Superintendência Regional do IPHAN (IPHAN, 2002a, p. 114) encaminhou notificação à CESAN ressaltando a importância da matéria-prima no processo de identificação do ofício como PCI. Já no transcurso do Registro, em junho de 2001, o referido termo de permissão de uso fora assinado, depois de intensas negociações entre a APG e a CESAN. O Termo sopesa os direitos culturais das paneleiras, garantindo a continuidade do ofício com acesso ao barreiro, e os direitos sociais da população capixaba à saúde, com a construção, instalação e funcionamento da estação de tratamento de esgoto.

Para além da questão do barreiro, algo identificado no INRC, também presente nas preocupações das ações de salvaguarda pós-Registro, foi a crescente demanda pelas panelas e a valorização do ofício. A visibilidade criada pela reputação e notoriedade do saber-fazer e sua continuidade histórica, pelos litígios e a defesa dos direitos culturais das Paneleiras, e pelo Registro, alertou às detentoras para a necessidade de proteger seu saber de maneira coletiva. De início, o mecanismo do Registro do PCI se apresentou como solução, porém o processo de titulação encarregou-se de desmistificar suas interpretações sobre os efeitos do instrumento.

Assim, reforçando ideia advinda com a construção do Decreto nº 3.551/2000, o Parecer do Conselho Consultivo (IPHAN, 2002a p. 274), ao traçar seu histórico de formulação, trata a questão da propriedade intelectual coletiva como embaraço não resolvido. Segundo o parecerista (IPHAN, 2002a p. 275), trata-se de frente adiada de maneira declarada em função “da imbricação da matéria no horizonte jurídico-político mais amplo: o da regulação das novas frentes de direitos coletivos emergentes”, ainda que o IPHAN tivesse ciência das expectativas das paneleiras diante dos conflitos com o barreiro e o aumento da procura pelo mercado por suas panelas e, consequentemente, o crescente número de falsas atribuições a outros tipos de panela. Segundo o relator do Conselho, na fase decisória (IPHAN, 2002a p. 275):

O quarto embaraço se configurava no tocante às formas de articulação de uma eventual salvaguarda de práticas sociais ou ‘monumentos vivos’ com a lógica do mercado capitalista hegemônico nas sociedades modernas. particularmente sob a forma de direitos de ‘propriedade intelectual’ dotados de valor de troca. A matéria é lindeira aos novos direitos ao patrimônio genético e importa em decisões nacionais inextricáveis das condições internacionais em que vêm se estabelecendo – com grandes tensões –essas novas relações, não convencionais, entre mercado e propriedade.

Por essa frustração com o Registro do PCI, as Paneleiras recorreram à Indicação Geográfica (IG) para proteger os produtos do seu fazer. A combinação do mecanismo de reconhecimento associado à indicação de procedência pode ser sintetizada no reforço conferido pela IG presente em cartilha distribuída pelo SEBRAE (2011, p. 16), parceiro técnico da APG no registro junto ao INPI, para divulgar o ofício: “A IG constitui um instrumento de desenvolvimento econômico que convém ser preservado e protegido. É um bem público, um patrimônio nacional, cujo uso é restrito aos produtores e prestadores de serviços estabelecidos no local”.

Antes da adoção da indicação de procedência, no próprio processo do Registro, havia notícia de que o Governo do Estado do Espírito Santo criou o selo “Raiz da Cultura Capixaba” para certificar a autenticidade das panelas produzidas pelos membros da associação. A grande preocupação era que o selo pudesse ser falsificado. Diferentemente da indicação geográfica, o selo tinha a finalidade de valorizar o trabalho das paneleiras, mas o próprio Estado do Espírito Santo admitiu, a partir do seu uso, combater a falsificação e fiscalizar o uso do selo, recorrendo, quando necessário, aos órgãos de segurança pública.

Nesse sentido, o Registro do PCI e as IGs, propositivamente, fortalecem a sustentabilidade do bem cultural imaterial. Enquanto o Registro agrega valor cultural e identitário, as indicações agregam valor econômico aos produtos do saber-fazer tradicional, com vistas a protegê-los de imitações e certificar o consumidor sua proveniência (IPHAN, 2006c, p. 102).

6. O caso do modo artesanal de fazer Queijo de Minas

Outro caso de associação propositiva entre Registro do PCI e IGs, como meio de fortalecer a proteção aos conhecimentos tradicionais de seus detentores, é o do reconhecimento do modo de saber-fazer o Queijo de Minas, queijo de leite cru – artesanal – produto associado a regiões geográficas delimitadas no Estado de Minas Gerais. Inicialmente, o pedido de reconhecimento no IPHAN restringia-se somente ao queijo da região do Serro, sendo posteriormente ampliado. Como visto anteriormente, muito embora tenha ocorrido essa extensão, as associações de produtores de duas das regiões reconhecidas como centros desses savoir-faire requisitaram no INPI indicações de procedência distintas, cada qual com o nome geográfico de sua área no território mineiro.

A primeira delimitação geográfica apenas referente à região do Serro já se encontrava nos documentos comprobatórios da justificativa do Registro do bem imaterial (IPHAN, 2006e, v. 1, p. 44). A instrução inicial do pedido ressaltou a dificuldade de empreender medidas contra a exploração indevida do queijo diante da inexistência de qualquer tipo de certificação de origem (IPHAN, 2006e, v. 1, p. 45). Porém, não obstante a expectativa de efeitos similares com o Registro, não havia delimitação geográfica bem definida, nem referência à legislação sobre indicação geográfica no requerimento. Todavia, dentre as causas do pedido, a ênfase maior estava na descaracterização do produto (IPHAN, 2006e, v. 1, p. 49), em virtude do choque entre exigências sanitárias e os valores culturais na produção do bem, ausência de certificação de origem e padronização do processo artesanal. Igualmente o caso das Paneleiras, aqui também há colisão entre o direito objetivo de todos à saúde e o direito coletivo dos produtores à cultura.

Dessa forma, o pedido inicial pugnava pela necessidade de normas de vigilância sanitária que fossem compatíveis com a natureza do bem (IPHAN, 2006e, v. 1, p. 54). Para tanto, espelhava-se no tratamento conferido pela legislação francesa a produtos tradicionais, a fim de que o Registro tivesse consequências similares aos registros de certificações de origem e denominações de origem controlada. Nesse caminho, alertava para os usos indevidos da denominação “Queijo do Serro” com a industrialização e massificação da produção do queijo, comprometendo seu aspecto artesanal.

Segundo o pedido, o Queijo Minas do Serro sofria com investigações do Ministério Público Estadual, que, mesmo em 2001, ainda aplicava o Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal, do Decreto nº 30.961, de 29 de março de 1952. De acordo com a norma, o queijo só poderia ser de leite integral, padronizado ou pasteurizado, o que punha o queijo do Serro em situação de ilegalidade.

Outras regulamentações sanitárias posteriores, como a Resolução nº 7, de 28 de novembro de 2000, conjugada com Portaria Ministerial nº 574, 08 de dezembro de 1998, disciplinaram o processo produtivo de variações do Queijo Minas, dentro eles o do Serro, mas aplicaram técnicas incompatíveis com as tradicionais, dentre elas a do período de maturação e uso de utensílios de madeira. Em 2002, o Estado de Minas Gerais conjugou os interesses dos produtores rurais com uma maior atenção à saúde do consumidor, conforme o dossiê do Registro (IPHAN, 2006a, p. 59): “O Estado – por suas empresas e institutos – e associações de produtores melhoraram as condições de produção do queijo artesanal investindo em controle sanitário do rebanho e melhoria das queijarias das fazendas”.

A Lei do Estado de Minas Gerais nº 14.185, de 31 de janeiro de 2002, apesar de dispor sobre o processo de produção do Queijo Minas, definiu o queijo como tradição histórica e cultural da região na qual fosse produzido. Essa legislação inovou ao prever mecanismo semelhante à certificação de origem, no qual os produtores artesanais poderiam ostentar o nominativo no produto ou na embalagem do produto que atendesse as regras de processamento previstas na lei e as características específicas do seu regulamento (Decreto nº 42.645, de 5 de junho de 2002), assim como aquele que fosse produzido nas áreas demarcadas poderiam gravar a indicação da região de origem (IPHAN, 2006a, p. 116). Outras normas complementares, como a Portaria nº 518, de 14 de junho de 2002 sobre requisitos básicos das instalações, materiais e equipamentos, para a fabricação do queijo minas artesanal, e a Portaria nº 523, de 3 de julho de 2002, sobre condições higiênico-sanitárias e boas práticas na manipulação e fabrico do queijo, não foram suficientes para retirar a produção artesanal da listagem de atividades clandestinas contra a saúde pública.

Há manifestação da Secretaria de Cultura de Minas, no processo do Registro, nutrindo a crença de que o registro poria fim às exigências burocráticas da vigilância sanitária. Curiosamente, apesar do apelo social do requerimento, o pedido teve que ser complementado com a declaração formal e a anuência das comunidades envolvidas (IPHAN, 2006e, v. 1, p. 70). Como apoio, houve abaixo-assinado de campanha de entidades engajadas na campanha de valorização do Serro, de pessoas vinculadas ao setor queijeiro, produtores, comerciantes e agentes de turismo, figuras públicas de Minas empenhadas na defesa do PC (IPHAN, 2006e, v. 1, p. 82). Desde a fase de instrução, o DPI do IPHAN (IPHAN, 2006e, v. 3, p. 395-396, grifos em itálico originais), em seu parecer técnico, já ventilava como medida de salvaguarda o registro do queijo como IG:

Os produtores têm procurado se associar e adotar medidas que lhes garantam os certificados emitidos pelas agências do poder público. Mas, há objetivos a longo prazo. Um deles é chegar a padrões como os sistemas europeus de denominação de origem, especificamente o modelo francês de Origem Controlada. A Denominação de Origem Controlada (Appellation d’Origine Controlée) protege o produto.

A sobreposição entre IG e Registro do PCI para valorização do bem cultural imaterial e fortalecimento econômico da atividade de queijeiro, foi posta nas recomendações de salvaguarda do relato técnico do DPI (IPHAN, 2006e, v. 3, p. 396), nos seguintes termos: “Fomentar estudos, reuniões e parcerias que venham a permitir a aplicação de legislação referente à Denominação de Origem Controlada e Certificação Geográfica”.

Em virtude da conclusão técnica dos estudos do INRC sobre o modo de fazer, o IPHAN concluiu que o conhecimento tradicional era compartilhado também nas regiões da Canastra, Salitre/Alto Paranaíba. Por isso, houve ampliação do pedido inicial para reconhecimento do Queijo Minas do Serro. Essa mudança foi objeto de contestação por parte dos subscritores do requerimento do Registro, muito em razão da crença que o mecanismo conferiria aos produtores da região certificação similar às IGs. Contudo, como já visto anteriormente, o Registro manteve a extensão geográfica ampliada, e, posteriormente, se desdobrou, até o presente momento, em duas indicações de procedência distintas a pedido de produtores com interesses diferentes que participaram do processo de reconhecimento do queijo como bem imaterial.

Não obstante a expectativa e o conflito entre os produtores de queijo de regiões distintas, em discussão na Câmara do Patrimônio Imaterial, o DPI (IPHAN, 2006e, v. 4, p. 408) sinalizou aos detentores os efeitos imediatos do Registro, esclarecendo a finalidade da titulação:

[...] os pedidos de registro de comidas, quase sempre voltados para o reconhecimento da originalidade, autenticidade e autoria exclusiva de suas receitas [...] só se constituem patrimônio cultural no contexto de celebrações, de rituais, de formas de sociabilidade, de conhecimentos tradicionais socialmente partilhados, isto é, de saberes e fazeres criados, recriados, reiterados e transmitidos coletivamente, por grupos sociais identificados.

Além disso, houve o aumento de apoios ao Registro a posteriori, porém, muitos deles, ainda contestando a ampliação da ambiência territorial da referência cultural. A mobilização ocorreu após a Ex-Presidenta da Associação dos Amigos do Serro, a advogada Maria Coeli Simões, utilizar-se do prazo do Aviso no DOU para contestar a ampliação do Registro, em virtude da descaracterização do pedido original. Para a associação, cada queijo deveria ter um registro específico, já que houve ampliação do objeto de proteção a partir dos estudos realizados pelo IPHAN (2006e, v. 4, p. 410-412). Isso não ocorreu, mas influenciou a concessão de duas indicações de procedência distintas no INPI.

Longe das dissidências, o Parecer do Conselho Consultivo foi favorável à inscrição do modo de fazer Queijo Minas como referência cultural nas regiões do Serro, da Canastra e Salitre/Alto Paranaíba. Sem adentrar na questão dos efeitos assemelhados às IGs, permaneceu vinculado à descrição do modo de saber-fazer.

O caso do Queijo Minas, juntamente com os demais apresentados neste tópico, demonstra como a salvaguarda do PCI, através do mecanismo de reconhecimento e valorização do Registro, sobreposta a instrumentos da propriedade intelectual de uso coletivo, pode prevenir litígios com terceiros estranhos a continuidade e transmissão dos bens culturais imateriais que se apropriam indevidamente de expressões e conhecimentos tradicionais. Ainda assim, tratam-se de mecanismos cujo cerne é criar proteções para explorações comerciais dos produtos resultantes dos processos de formação, produção e reprodução cultural, vistos como mercadorias, independentemente de seu valor simbólico, de memória e identidade e de seu elemento de composição para sua perpetuação entre novas gerações de detentores em seus povos, comunidades e grupos tradicionais. Não há, de pronto, a dissociação entre valores culturais e econômicos, questiona-se somente o superdimensionamento dos segundos em detrimento dos primeiros.

Nesse sentido, inobstante a interpretação jurídica dos detentores e/ou seus direitos costumeiros a desvelarem efeitos mediatos implícitos constitutivos do Decreto nº 3.551/2000, a norma regulamentar do instrumento de reconhecimento demonstra-se frágil para traçar limitações a terceiros que fazem de expressões e conhecimentos tradicionais, objeto de exploração econômica frente ao mercado ou outros usos que ocasionem danos culturais coletivos a formas de organização social e modos de vida dos detentores, dado a ocidentalização do quadro jurídico moderno que privilegia a apropriação do comum, a livre iniciativa de mercado e o direito de propriedade.

Dessa forma, depreende-se da análise deste conjunto de casos que é necessária uma mudança legislativa na configuração normativa do Registro do PCI, no âmbito federal, para previsão expressa, em seus efeitos, de direitos intelectuais coletivos especiais de povos, comunidades e grupos tradicionais sobre seu PCI[1]. Se, por outro lado, a razão do Registro é reconhecer e valorizar, ainda assim, nada obsta a criação de legislações específicas para, assim como as IGs e as Marcas Coletivas, serem a ele associadas. Nas palavras de Regina Abreu (2009, p. 40-43),

Não se trata mais de expressar um caráter jurídico definidor de propriedade estatal ou privada de um recurso material, mas sim de bens materiais e imateriais, cujo valor reside fundamentalmente na possibilidade na necessidade de seu uso coletivo, garantindo o mais amplo possível acesso da população a eles, posto que constituem recursos essenciais para a garantia de vida digna da população humana, inclusive as futuras gerações

[...]

 O grande desafio consiste em criar uma legislação que compreenda interesses coletivos, uma vez que o conjunto de leis sobre propriedade intelectual protege apenas a criação individual.

Esta recomendação não é nenhuma novidade. Está prevista normativamente no Plano Nacional de Cultura (Lei nº 12.343/2010), entre as estratégias e ações para o fortalecimento da institucionalização das políticas culturais e intensificação do planejamento de programas e ações voltadas ao campo cultural a fim de consolidar a execução das políticas públicas para cultura.

1.9.5 Criar marcos legais de proteção e difusão dos conhecimentos e expressões culturais tradicionais e dos direitos coletivos das populações detentoras desses conhecimentos e autoras dessas manifestações, garantindo a participação efetiva dessas comunidades nessa ação.

[...]

1.9.9 Promover a defesa de direitos associados ao patrimônio cultural, em especial os direitos de imagem e de propriedade intelectual coletiva de populações detentoras de saberes tradicionais, envolvendo-as nessa ação.

1.9.10 Garantir aos povos e comunidades tradicionais direitos sobre o uso comercial sustentável de seus conhecimentos e expressões culturais. Estimular sua participação na elaboração de instrumentos legais que assegurem a repartição equitativa dos benefícios resultantes desse mercado.

1.9.11 Estabelecer mecanismos de proteção aos conhecimentos tradicionais e expressões culturais, reconhecendo a importância desses saberes no valor agregado aos produtos, serviços e expressões da cultura brasileira. (BRASIL, 2010)

Ainda que não se trate de criar outros exclusivos de propriedade intelectual, o patrimônio cultural imaterial não deixa de ser um common que precisa ser regulado por uma ideia de res universitatis (LIXINSKI, 2013, p. 204), isto é, domínios não exclusivos cujos sujeitos coletivos responsáveis por sua continuidade e transmissão dispõem de controles de governança e de limites de disponibilidade de bens culturais imateriais a terceiros estranhos a suas comunidades tradicionais.

7. Considerações finais

É sob o signo da participação popular que se desenvolve a interpretação dos detentores sobre o ato declaratório do Registro, conferindo-lhe efeitos para além do título e certificação de “Patrimônio Cultural Brasileiro” e das obrigações de apoio e fomento do Poder Público. Nesse quadro, são redesenhados os papéis do Estado e de sua atuação, quanto aos efeitos para reconhecimento de direitos intelectuais coletivos, especialmente no do IPHAN no âmbito da Política de Salvaguarda, de quem se passa a esperar ações de assessoramento dos detentores e o acompanhamento de eventuais medidas judiciais e extrajudiciais para proteção de bem cultural ameaçado de dano ou lesionado, conforme se pode depreender dos relatórios de avaliação do histórico da salvaguarda de bens culturais imateriais na esfera federal.

Ainda assim, até hoje há limites de diferentes ordens na atuação dos órgãos públicos e citados um deles, qual seja, a inexistência no âmbito do IPHAN de normas para instauração de processos administrativos para averiguar a ocorrência de danos ou ameaças aos bens culturais imateriais registrados, tampouco a legislação penal brasileira tipifica crimes contra o patrimônio cultural imaterial, atendo-se aos atos comissivos contra os bens culturais materiais.

Constatou-se que, em boa parte dos casos analisados, os usos que se faz do Registro, atestando seus efeitos mediatos implícitos constitutivos, surgem da necessidade dos detentores de se protegerem de apropriações privadas de terceiros agentes do mercado, isto é, da reificação da dinâmica processual dos bens culturais imateriais, de seus produtos e resultados, ou dos bens materiais a eles associados. Assim ocorreu nos casos da Viola-de-Cocho, da Cajuína do Piauí, das Baianas de Acarajé. Quando não, se trata do Estado violando o princípio da mínima intervenção, como no caso do ofício das Paneleiras de Goiabeiras, do Queijo de Minas e, novamente, do ofício das Baianas. Isso não significa que esses bens culturais imateriais não tenham valor econômico, ou que os produtos resultantes dessas expressões e modos de saber-fazer também não o possuam, mas que, para os sujeitos coletivos detentores, de alguma maneira, o Registro implica em direitos sobre eles e, consequentemente, se traduzem em formas de controle e governança dos seus usos.

O Registro e, mais do que ele, as ações de proteção têm diferentes sentidos. É o que se apresentou em casos como o da Viola-de-Cocho em que, antes mesmo do Registro, os violeiros e tocadores da cultura popular mato-grossense, fundamentados na proteção do patrimônio cultural, obtiveram vitória parcial no INPI para impedir o registro de marca mista com o nominativo da viola.

Concluiu-se, de todo modo, que a atuação legal do IPHAN foi amoldada, tendo em vista as reivindicações e demandas dos detentores oriundos do Registro. Porém, essa responsabilidade não está limitada à sua esfera de atuação, sendo necessária a interlocução e o compartilhamento de competências com outros órgãos e entidades, como o INPI, as autarquias e órgãos ambientais, dentre outros.

Diante desse quadro, apesar das potencialidades dos usos constitutivos do Registro por detentores de bens culturais imateriais registrados, permanecem, diante da atual regulamentação, preponderantes os efeitos imediatos declaratórios de reconhecimento e valorização como finalidade precípua do instrumento. Ainda que não haja mais lugar para afirmação de que o mecanismo não protege ou não é fonte normativa para criação de direitos, em virtude dos casos conflituosos analisados, conclui-se que é necessário reinventar os termos do Registro e do PNPI para abranger a proteção de direitos culturais coletivos, especialmente os intelectuais.

Isso exige do IPHAN, igualmente, outra mudança de percepção a respeito da salvaguarda. Porém, essa proposição deve ser discutida, avaliada e deliberada em ambiente democrático, tendo em vista precipuamente os direitos dos detentores, povos, grupos e comunidades tradicionais, mas também da sociedade, de seus direitos difusos de acesso e fruição, envolvendo os mais variados setores, desde os órgãos de proteção do PC e da PI, bem como organizações-não governamentais, técnicos, Conselho Consultivo do PC e os poderes legitimamente constituídos.

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[1] A Constituição do Estado Plurinacional Comunitário da Bolívia reconhece como direito das nações e povos indígenas originários campesinos de seu território, no artigo 30 (11), a propriedade intelectual coletiva desses sujeitos de direito sobre seus saberes, ciências, conhecimentos, assim como a valorização, uso, promoção e desenvolvimento. Nessa perspectiva constitucional, a proteção da propriedade intelectual coletiva e a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial caminham lado a lado. O Estado boliviano protege expressões e conhecimentos de seus sujeitos coletivos em duas frentes, a do reconhecimento e valorização da identidade (artigo 100. I), tal como faz a Constituição Federal de 1988 e o Registro do PCI, apoiada por ações de fomento, promoção, difusão (artigos 98.II e 99.II), e a da proteção de direitos exclusivos sobre seus saberes e conhecimentos. Segundo o artigo 100. II, os conhecimentos tradicionais integrantes da diversidade cultural boliviana, base essencial do Estado Plurinacional, são protegidos mediante o registro da propriedade intelectual que salvaguarde os direitos intangíveis de nações, povos indígenas, povos originários campesinos e comunidades interculturais e afrobolivianas. Para os bolivianos, o patrimônio cultural do povo é inalienável, inembargável e imprescritível (artigo 99.I). Ao lado da propriedade intelectual individual, conforme o artigo 102, o Estado também confere proteção à propriedade intelectual coletiva a obras e invenções, nos termos da lei.