APONTAMENTOS SOBRE A IDEIA DE JUSTIÇA EM AMARTYA SEN

APPOINTMENTS ON THE IDEA OF JUSTICE IN AMARTYA SEN

Rholden Botelho de Queiroz

Mestre e doutorando em Direito pela Universidade Federal do Ceará, Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado do Ceará. E-mail: rholdenbq@yahoo.com.br.

Submetido em: 12 fev. 2019.

Aceito em: 28 ago. 2019.

Resumo: O objetivo central do presente estudo é realizar uma análise crítica acerca da obra “a ideia de justiça”, de Amartya Sen. Em que medida sua abordagem de cunho comparativa, pautada pelo debate público e focada nas capacidades (aptidão para levar a vida que se tem razão para valorizar) responde de forma adequada ao imperativo por ele buscado de promover a justiça ou afastar situações de injustiça patente. Será comparada a sua concepção de justiça com uma centrada no reconhecimento da dignidade da pessoa humana como parâmetro universal do justo.

Palavras-chaves: Justiça. Racionalidade. Debate. Capacidades. Dignidade da pessoa humana.

Abstract: The central objective of the present study is to carry out a critical analysis of Amartya Sen's work "The Idea of ​​Justice." To what extent does his comparative approach, guided by public debate and focused on the capabilities (ability to lead a life one has reason to value) responds adequately to the imperative he seeks to promote justice or to remove situations of obvious injustice. His conception of justice will be compared with one focused on the recognition of the human dignity as a universal parameter of the just.

Keywords: Justice. Rationality. Debate. Capabilities. Human dignity.

1.  Introdução

Amartya Sen é, sem dúvidas, um dos pensadores mais influentes do mundo contemporâneo. Sua contribuição lhe rendeu o prestigiado prêmio Nobel de economia (1998), por seus estudos sobre a fome e a pobreza, tendo inclusive contribuído para a instituição do sistema de avaliação baseado no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) como índice para aferir o desenvolvimento das nações em contraponto às métricas baseadas apenas em aspectos econômicos como o PIB (Produto Interno Bruto).

Em 2009, publicou uma obra dedicada à ideia de justiça, na qual se contrapõe às teorias da justiça que reúne sob a denominação de “institucionalismo transcendental”, defendendo uma abordagem comparativa, que propicie a efetiva melhora dos níveis de justiça ou redução das injustiças.

No presente estudo, analisaremos a pertinência de sua concepção de justiça, contrapondo-a a uma baseada no reconhecimento da dignidade da pessoa humana como critério universal do justo, investigando em que medida a abordagem de Sen é capaz de responder satisfatoriamente ao objetivo de promover a justiça.

2.  Institucionalismo transcendental versus abordagem comparativa

O ponto central da argumentação de Sen reside na distinção entre concepções de justiça que ele reúne sob a designação “institucionalismo transcendental” e concepções de justiça que realizam uma abordagem comparativa. Numa concepção de justiça institucionalista transcendental, busca-se engendrar quais seriam as instituições perfeitamente justas. Ou seja, que tipo de instituições se deveria buscar para se obter a justiça ideal. O maior expoente dessa forma de análise seria John Rawls, e é contra sua teoria da justiça que Sen (2011, capítulo 2) dirige suas críticas mais contundentes.

De acordo com Sen (2011, p. 36), o institucionalismo transcendental apresentaria duas características:

Primeiro, concentra a atenção no que identifica como a justiça perfeita, e não nas comparações relativas de justiça e injustiça. Ela (abordagem do institucionalismo transcendental) apenas busca identificar características sociais que não podem ser transcendidas com relação à justiça; (…) Segundo, na busca da perfeição, o institucionalismo transcendental se concentra antes de tudo em acertar as instituições, sem focalizar diretamente as sociedades reais que, em última análise, poderiam surgir.

Sen entende que não há vantagem em ficar discutindo que modelo de instituições e regras seriam perfeitamente justos, enquanto pouca energia é gasta para solucionar as situações reais de injustiça vivenciadas no mundo e que são facilmente perceptíveis por todos.

Assim, ele defende que, em vez de estabelecer os moldes das instituições perfeitamente justas, uma teoria da justiça deveria partir de uma abordagem comparativa endereçada às realizações sociais, resultantes de instituições reais, comportamentos reais e outras influências. De acordo com Sen (2011, p. 37-38), esse tipo de abordagem foi utilizada por expoentes do iluminismo como Adam Smith, Marquês de Condorcet, Jeremy Bentham, Mary Wollstonecraft, Karl Marx, John Stuart Mill, entre outros.

Ainda que esses autores, com suas ideias muito diferentes sobre as exigências da justiça, tenham proposto modos distintos de fazer comparações sociais, pode-se dizer, sob o risco de exagerar um pouco, que todos estavam envolvidos com comparações entre sociedades que já existiam ou poderiam surgir, em vez de limitarem suas análises a pesquisas transcendentais de uma sociedade perfeitamente justa. Tais comparações focadas em realizações tinham com frequência como principal interesse a remoção de injustiças evidentes no mundo que viam.

O ponto de partida, pois, de sua obra é apresentar uma teoria da justiça centrada em “investigar comparações baseadas nas realizações que focam o avanço ou o retrocesso da justiça”. Sua análise está mais preocupada em responder a perguntas do tipo “como a justiça seria promovida?” em lugar de outras como “o que seriam instituições perfeitamente justas?”. Esse ponto de partida apresenta uma dupla divergência em relação ao institucionalismo transcendental: “primeiro, toma-se a via comparativa, em vez da transcendental; segundo, focam-se as realizações que ocorrem nas sociedades envolvidas, em vez de focar apenas as instituições e as regras” (SEN, 2011, p. 39).

Prossegue Sen em suas críticas às teorias institucionalistas transcendentais, apontando dois grandes problemas: o da factibilidade e o da redundância. Quanto ao primeiro, aduz Sen (2011, p. 39-40) que:pode não haver nenhum acordo arrazoado, mesmo sob estritas condições de imparcialidade e análise abrangente (por exemplo, como identificadas por Rawls em sua “posição original”) da natureza da sociedade justa”. Pensar de modo contrário (ou seja, que a análise racional imparcial conduziria necessariamente a um acordo) implicaria pressupor “que existe fundamentalmente apenas um tipo de argumento imparcial que satisfaça as exigências da justiça e do qual os interesses pelo próprio benefício tenham sido aparados” (SEN, 2011, p. 41). Arremata Sen (2011, p. 43) que “No coração do problema específico de uma solução imparcial única para a escolha da sociedade perfeitamente justa, está a possível sustentabilidade de razões de justiça plurais e concorrentes, todas com pretensão de imparcialidade, ainda que diferentes – e rivais – umas das outras”.

Nesse ponto o seu argumento dirige-se fortemente contra teoria de John Rawls, segundo a qual, na posição original (sob o “véu da ignorância”), os participantes fatalmente escolheriam os princípios por ele elencados. Sen (2011, p. 45) ilustra a sua crítica com um exemplo, o problema da flauta, que consiste em saber para que criança, num grupo de três, entregar uma flauta construída por uma delas: para a pobre, que não tem outros brinquedos nem recursos para comprá-los, para a única que sabe tocar o instrumento musical, ou para aquela que construiu a flauta. Qualquer das soluções poderia ser defendida em uma posição de suposta argumentação imparcial. Diante do impasse, conclui que Pode de fato não haver nenhum arranjo social identificável que seja perfeitamente justo e sobre o qual surgiria um acordo imparcial”.

Sobre o problema da redundância, argumenta que um exercício de razão prática envolvendo uma escolha real exige uma estrutura para comparar a justiça na escolha entre alternativas viáveis, e não uma identificação de uma situação perfeita, possivelmente inacessível” (SEN, 2011, p. 40). Conclui, então que Se uma teoria da justiça deve orientar a escolha arrazoada de políticas, estratégias ou instituições, então a identificação dos arranjos sociais inteiramente justos não é necessária nem suficiente” (SEN, 2011, p. 43). E prossegue, advertindo:

Podemos naturalmente, ser atraídos pela ideia de que somos capazes de classificar as alternativas quanto a sua respectiva proximidade com a escolha perfeita, de modo que uma identificação transcendental pudesse, indiretamente, produzir um ranking de alternativas. Mas essa abordagem não nos leva muito longe, em parte porque há diferentes dimensões nas quais os objetos diferem (de modo que há ainda o problema adicional da avaliação da importância relativa das distâncias em dimensões distintas), e também porque a proximidade descritiva não é necessariamente um guia para a proximidade valorativa (uma pessoa que prefere o vinho tinto ao branco pode preferir qualquer um deles à mistura dos dois, mesmo que a mistura seja, em um sentido descritivo evidente, mais próxima do vinho tinto preferido que do vinho branco puro)

[...]

A teoria transcendental simplesmente trata de uma questão diferente da tratada pela avaliação comparativa – uma questão que pode ser de interesse intelectual considerável, mas que não tem relevância direta para o problema da escolha que tem de ser enfrentado. O que é necessário, em vez disso, é um acordo baseado na argumentação racional pública sobre rankings de alternativas que podem ser realizadas (SEN, 2011, p. 46-47).

Uma preocupação importante de sua obra é, portanto, estabelecer que tipo de argumentação racional é capaz de dar conta da tarefa de estabelecer as comparações entre as situações de justiça ou injustiça:

Os requisitos de uma teoria da justiça incluem fazer com que a razão influencie o diagnóstico da justiça e da injustiça. Por centenas de anos, aqueles que escreveram sobre a justiça em diferentes partes do mundo buscaram fornecer uma base intelectual para partir de um senso geral de injustiça e chegar a diagnósticos fundamentados específicos de injustiças, e, partindo destes, chegar a análises de formas de promover a justiça (SEN, 2011, p. 35).

Sobre a questão do embate entre institucionalismo transcendental e abordagem comparativa, penso que Sen tem razão em sua escolha, até certo ponto. Se a sua crítica ao institucionalismo transcendental se dirige ao foco excessivo dessa abordagem na busca por estabelecer as instituições perfeitas, de fato assiste-lhe razão. Como ele argumentou, uma tal construção não se afigura suficiente, nem necessária para enfrentar o problema de aprimorar a justiça, ou afastar situações de injustiça. Para a constatação da insuficiência de criação de instituições justas para o efetivo aprimoramento da justiça, basta analisar a distância entre as previsões da Constituição Federal de 1988 e a efetivação de seus ditames, o que levou Marcelo Neves (2011) a cunhar o termo “constitucionalização simbólica”. Queiroz (2016) expõe de forma detalhada o descompasso entre a previsão dos direitos fundamentais sociais e a prática orçamentária brasileira. De fato, estabelecer modelos idealizados de como devem ser constituídas as instituições para que elas sejam justas, não é uma garantia de que a justiça será promovida, ou de que a realidade da vida das pessoas será melhorada.

Por outro lado, se a sua crítica vai a ponto de afastar de vez qualquer análise especulativa do que seja o justo, penso que aí há um exagero, e até mesmo uma deficiência de justificação no pensamento de Sen. Com efeito, se, como ele próprio afirmou, a pergunta essencial a ser respondida é “como a justiça seria promovida?”, isso implica, necessariamente, estabelecer, minimamente, o que se entende por justiça, sob pena, por óbvio, de não saber o que se quer promover. Isso significa a necessidade de estabelecer, em tese, um conceito com características de universalidade do que seja justiça, do que seja o comportamento justo. Isso não significa que daí se deva deduzir de forma categórica, como fez Rawls, como seriam as instituições perfeitamente justas. Mas um parâmetro é necessário. Pode até não ser suficiente, pois as escolhas práticas do que fazer para concretizar o que se entende como idealmente justo demandarão um esforço argumentativo, via debate público. Mas não se pode considerar o estabelecimento dessa base ideal como desnecessária.

Obviamente, é possível utilizar um parâmetro em torno do qual se compara duas situações. Mas essa avaliação enfrentaria dois problemas: primeiro, a necessidade de justificação suficiente do parâmetro escolhido e, segundo, a pouca utilidade da avaliação comparativa em si, uma vez que o que se extrai de informação é apenas como uma situação está em relação à outra, mas não se diz nada a respeito da correção ou adequação de ambas as situações.

Ao estilo do próprio Sen, utilizarei um exemplo prosaico para ilustrar o segundo problema (falarei sobre o primeiro mais adiante): imagine que Paulo esteja preocupado com a sua saúde e, a pedido de seu médico, resolve fazer exames de colesterol. Ao fornecer o resultado, o laboratório, em vez de indicar o parâmetro a partir do qual o colesterol passa a ser considerado alto, podendo comprometer a saúde, apenas aponta que o colesterol de Paulo está mais baixo do que o colesterol de Pedro, que tem a sua mesma idade e também é do sexo masculino. O que diz essa avaliação? Apenas que a situação de Paulo parece ser melhor do que a de Pedro, mas não diz nada acerca de se o colesterol de Paulo está ou não dentro dos níveis considerados saudáveis pela medicina.

Outro exemplo: os médicos costumam medir o peso e a altura das crianças para verificar se estão dentro de padrões razoáveis de desenvolvimento corporal. Amanda leva seu filho para exame e o médico apenas informa que as suas medidas são superiores às do filho de Léa, que possui a mesma idade e sexo do filho de Amanda. Ficará Amanda convencida de que seu filho está com o desenvolvimento corporal normal? Baseado nessa informação (de que seu filho é maior do que o filho de Léa), poderá ficar segura de que está oferecendo a nutrição adequada ao seu bebê?

Os exemplos acima mostram que a simples avaliação comparativa entre situações, sem um referencial externo confiável, tem pouca ou nenhuma utilidade. Poder-se-ia argumentar que a comparação não se dá só com uma situação, mas com várias, o que melhoraria a precisão, uma vez que alargaria as bases comparativas, gerando informações sobre uma média. Mas quem garantiria que a média é uma situação boa ou correta?

Os exemplos que Sen utiliza para afastar a necessidade da fixação de uma situação ideal para propiciar a comparação entre duas situações reais não se mostram adequados. Com efeito, a comparação sobre preferências de vinhos (tinto ou branco) ou preferências de quadros (Picasso ou Van Gogh), envolve questões de gosto individual, tendo pouco interesse para a temática da justiça. Com efeito, as pessoas podem até debater seus gostos, mas não há razão alguma para ser necessário buscar um consenso acerca dos gostos individuais de cada um. Não importa muito, para efeito de promover a justiça ou afastar as injustiças patentes do mundo (preocupação central da obra de Sen), que as pessoas discutam publicamente e cheguem a consensos sobre as suas preferências individuais (se o melhor time de futebol é o Fortaleza ou o Ceará, por exemplo). Questões que envolvem ética e justiça são de outra ordem. Embora possam ser comparadas, de forma a se estabelecer um ranking, é preciso ter em mente o que se entende que seja justo, para que se possa efetuar a comparação. Sem especular acerca do que seja o justo, não há como fazer qualquer comparação sobre situações de justiça ou injustiça.

Não obstante entendermos que a objeção acima coloca seriamente em dúvida a adequação de uma teoria puramente comparativa de justiça, ainda resta o primeiro problema: não há como escapar de ter que oferecer razões suficientes para justificar o parâmetro de justiça escolhido. Para prosseguir no exemplo já dado, por que o índice de colesterol é relevante para a constatação da saúde do sistema circulatório? E se ele é relevante, qual seria a faixa a partir da qual é considerado comprometedor para a saúde? Assim, para comparar duas sociedades ou duas situações em termos de justiça, tem-se que se fornecer um critério do que seja o justo. E esse critério tem que ser suficientemente justificado, de forma que se possa reputá-lo um critério universal.

Essa argumentação aponta para a insuficiência ou irrelevância do que eu chamaria de uma “teoria puramente comparativa”. Meu ponto é que não há como escapar de alguma transcendência na busca de uma concepção de justiça. Talvez não seja necessário estabelecer precisamente como seriam as instituições perfeitamente justas, como tentou fazer John Rawls. Desenvolver isso, como bem demonstrou Sen, tampouco é suficiente para garantir a justiça. Entretanto, embora não seja suficiente nem necessário estabelecer quais seriam as instituições perfeitamente justas para que se possa enfrentar as situações de injustiça no mundo, não há como fugir da necessidade de estabelecer parâmetros universais para aferir a justiça das situações. Sem um parâmetro universal, por mais completas e complexas que fossem, as comparações seriam de pouca utilidade. Mas em um mundo que comporta as mais diversas cosmovisões e culturas, seria isso possível?

O próprio Sen (2011, p. 48), embora implicitamente, não se afasta da necessidade de estabelecer um parâmetro de um certo modo ontológico, para servir de base para a análise comparativa. E o faz quando elege as capacidades como foco informacional. "Ao atentarmos para a natureza da vida humana, temos razões para nos interessar não só pelas várias coisas que conseguimos fazer, mas também pelas liberdades que realmente temos para escolher entre diferentes tipos de vidas (grifo nosso).

Antes de realizar a análise crítica acerca do parâmetro das “capacidades” como forma de avaliação das realizações sociais (se apresenta justificação suficiente para ser um parâmetro universal), é importante chamar a atenção para o fato de que, para embasar a sua escolha por esse foco, Sen recorre à análise da “natureza da vida humana”. Ou seja, a partir do seu entendimento do que seja a “natureza da vida humana”, derivou um critério para comparações de situações de justiça ou injustiça. Dessa forma, o próprio Sen corrobora o argumento de que é inafastável a busca por um critério universal de justiça.

Outro ponto importante a destacar é que é extremamente difícil haver um consenso em torno de qual seria a base adequada para a avaliação comparativa em termos de realizações sociais. Todos os autores citados por Sen, que enveredam pela linha da análise comparativa, conforme ele próprio informa, apresentaram diferentes focos informacionais. Jeremy Bentham, para ficar no exemplo de teoria com foco nas comparações mais citada por Sen, entendeu que o critério deveria ser a “felicidade geral”. O que quero enfatizar é que, da mesma forma que é difícil um acordo sobre quais seriam as instituições justas, mesmo diante de um debate público marcado pela imparcialidade, a mesma dificuldade ocorre para o estabelecimento de uma base comparativa, diante das múltiplas razões concorrentes e até rivais em prol de uma ou outra opção (“bem-estar geral”, “renda per capta”, “capacidades”, “felicidade”), todas com pretensão de imparcialidade.

Analisemos, agora, se a opção pelo foco nas capacidades está devidamente justificada, podendo ser universalizada como critério de justiça. Após rebater o utilitarismo, cujo foco informacional é a felicidade geral, bem como criticar a análise baseada na renda, defende o foco nas capacidades, embasadas na liberdade. Já em sua obra anterior “desenvolvimento como liberdade” (2010), Sen (2010, p. 362-363) tangencia o problema da justiça, defendendo o critério da capacidade:

Primeiro, procurei defender a primazia das liberdades substantivas para o julgamento da vantagem individual e para a avaliação das realizações e dos fracassos sociais. A perspectiva da liberdade não tem necessariamente que ser processual (embora os processos realmente sejam importantes, inter alia, para avaliar o que está acontecendo). A consideração básica, como procurei mostrar, é nossa capacidade de levar o tipo de vida que com razão valorizamos.

Já no seu “a ideia de justiça”, ele prossegue nesse raciocínio:

Qualquer teoria substantiva da ética e da filosofia política, em particular qualquer teoria da justiça, tem de escolher um foco informacional, ou seja, tem de decidir em quais características do mundo deve se concentrar para julgar uma sociedade e avaliar a justiça e a injustiça. Nesse contexto, é particularmente importante ter uma visão de como uma vantagem total de um indivíduo deve ser avaliada (SEN, 2011, p. 265).

Fixada essa necessidade (de opção por um foco informacional), Sen passa a criticar o utilitarismo, cujo foco é a felicidade individual ou prazer, bem como outra abordagem que avalia a vantagem de uma pessoa quanto à sua renda, sua riqueza ou seus recursos. Contrapondo-se a esses tipos de abordagens baseadas na utilidade e nos recursos, defende a abordagem das capacidades, baseada na liberdade:

Em contraste com as linhas de pensamento baseadas na utilidade ou nos recursos, na abordagem das capacidades a vantagem individual é julgada pela capacidade de uma pessoa para fazer coisas que ela tem razão para valorizar. Com relação às oportunidades, a vantagem de uma pessoa é considerada menor que a de outra se ela tem menos capacidade – menos oportunidade real – para realizar as coisas que tem razão para valorizar. O foco aqui é a liberdade que uma pessoa realmente tem para fazer isso ou aquilo – coisas que ela pode valorizar fazer ou ser. Obviamente, é muito importante para nós sermos capazes de realizar as coisas que mais valorizamos. Mas a ideia de liberdade também diz respeito a sermos livres para determinar o que queremos, o que valorizamos e, em última instância, o que decidimos escolher. O conceito de capacidade está, portanto, ligado intimamente com o aspecto de oportunidade da liberdade, visto com relação a oportunidades “abrangentes”, e não apenas se concentrando no que acontece na ‘culminação’” (SEN, 2011, p. 265-266).

A capacidade seria, então, em apertada síntese, a aptidão para o indivíduo levar a vida que tem razão para valorizar. Envolveria o aspecto processual da liberdade (liberdade para escolher) e oportunidade (realizar o que deseja). Caberia, conforme adiantei, indagar: teria Sen justificado suficientemente o seu critério de justiça (ou foco informacional, como ele prefere), de maneira que possa ser um critério universalizável?

Em sua argumentação, embora, como afirmei, tenha partido de consideração acerca da “natureza da vida humana” para desenvolver o seu critério, Sen não envereda por uma argumentação de cunho ontológico, mas parte, por assim dizer, de uma ideia intuitiva acerca da importância da liberdade, e fundamenta a escolha das capacidades através da comparação com o critério utilitarista e o do auferimento de recursos. Não me parecem razões suficientes para adotá-lo.

Além disso, a utilização do foco nas capacidades como critério de justiça apresenta alguns problemas: o primeiro deles é de ordem pragmática e diz respeito a um certo grau exacerbado de subjetivismo que encerra. Pensemos em uma sociedade organizada, um Estado, que deseje implementar políticas públicas que viabilizem a promoção cada vez maior das capacidades das pessoas. Bem, é de se imaginar a dificuldade dos planejadores de políticas públicas em formular projetos que permitam que as pessoas possam ter a vida que têm razão para valorizar. Os desejos humanos são praticamente infinitos e o alcance efetivo de cada um desses objetivos parece algo que extrapola a possibilidade fática de atendimento por um governo. Penso que a tarefa de uma sociedade que queira promover um maior grau de liberdade para todos deve ser propiciar os meios que permitam as pessoas florescer, desenvolver-se. A partir do oferecimento desses meios, os fins ficam sob a responsabilidade de cada um atingir. Pode até ser legítimo o interesse de governantes bem-intencionados em saber se as pessoas daquela sociedade estão de fato levando as vidas que gostariam de levar, mas estabelecer isso como critério me parece inviável do ponto de vista fático, simplesmente porque é impossível garantir que todos levem a vida que têm razão para valorizar. Nesse sentido, dirige-se a crítica de Dworkin à concepção de Sen:

Dworkin ressalta, então que se deve adotar a seguinte explicação, bem diferente, do que Sen quer dizer. O governo deve esforçar-se por garantir que quaisquer diferenças no grau em que as pessoas não sejam igualmente capazes de alcançar a felicidade e as outras realizações “complexas” devem ser atribuíveis às diferenças em suas escolhas e personalidade e as escolhas e a personalidade das outras pessoas, e não as diferenças nos recursos pessoais e impessoais que possuem. Se entendermos a igualdade de capacidades dessa forma, ela não é uma alternativa à igualdade de recursos, mas apenas o mesmo ideal exposto com outra terminologia. É claro que as pessoas querem recursos a fim de aperfeiçoar suas “capacidades” para os “funcionamentos” – isto é, para aumentar seu poder de fazer o que querem. Porém (nesta interpretação da postura de Sen), são os recursos pessoais e impessoais, e não a felicidade ou o bem-estar, os quais podem alcançar por intermédio de escolhas, que são questões de igual consideração. Portanto, o esforço de Sen de alcançar uma classificação objetiva dos “funcionamentos” não é, afinal, necessária nem útil. Basta distribuir os recursos impessoais simetricamente, e descobrir dispositivos, como o mercado hipotético de seguros defendido por Dworkin, para amenizar o máximo possível as diferenças de recursos pessoais. Depois, podemos permitir às pessoas, por meio de suas escolhas nesse ambiente quase equânime, que façam suas próprias classificações dos “funcionamentos” que sejam importantes para elas.

Mesmo que a teoria de Sen seja apenas a igualdade de recursos com outro vocabulário, esse vocabulário salienta a questão que Dworkin acaba chama (sic) de óbvia – que as pessoas não querem recursos simplesmente para tê-los, mas para fazer algo com eles. Essa ênfase só é vantajosa, porém, se tivermos o cuidado de afirmar também o que foi exposto: que a igualdade que procuramos está nos próprios recursos pessoais e impessoais, e não na capacidade que as pessoas têm para alcançar o bem-estar com tais recursos. A diferença nessas metas igualitárias é profunda: é a diferença entre a nação de iguais e uma nação de viciados. (ASSUMPÇÃO, 2014)

Outro problema da centralização do foco nas capacidades é que ele não leva devidamente em consideração a dignidade da pessoa humana (mais adiante, defenderei que a própria dignidade da pessoa humana é que deve ser o parâmetro universal de justiça) (QUEIROZ, 2016b). Com efeito, criar um ambiente em que as pessoas possam levar as vidas que têm razão para valorizar pode, a princípio, ser algo positivo, mas, no limite, pode não apresentar respostas apropriadas para casos difíceis, nos quais o uso da liberdade pode conduzir a um amesquinhamento da dignidade humana, mesmo que a própria pessoa cuja dignidade é violada não veja razões para valorizá-la.

Para ilustrar esse ponto de vista, veja-se o já clássico caso do lançamento de anões. Em uma cidade do sul da França, uma danceteria concebeu, para animar os seus frequentadores, uma “brincadeira”, que consistia em arremessar um anão o mais longe possível. O espetáculo foi embargado pela prefeitura. Tanto a empresa responsável pelo espetáculo, quanto o próprio anão, insurgiram-se contra o embargo, alegando que estavam em pleno uso de sua liberdade. Sob o ponto de vista do foco tão somente nas capacidades, o embargo a esse deprimente “espetáculo” seria indevido, uma vez que a empresa, o anão e os frequentadores estavam, no uso de sua liberdade, atuando conforme seus interesses, sendo que o suposto prejudicado, o anão, não se via como vítima de nada, não lhe constrangendo o fato de estar sendo tratado como objeto. Porém, em defesa da dignidade da pessoa humana, cuja preservação extrapola a questão da liberdade individual, a Corte Constitucional francesa manteve o embargo do evento.

Outras questões podem ser levantadas: como o foco nas capacidades avaliaria a possibilidade de venda de órgãos humanos (alguém pode entender que é mais valioso obter dinheiro do que ficar com os dois rins)? E como estabeleceria limites para experimentos científicos (pode alguém aceitar sério prejuízo à própria saúde em troca de dinheiro, podendo ter poucas razões para valorizar a própria vida)?

As pessoas podem ter as mais variadas razões (ou desrazões) para valorizar os mais diversos, até mesmo extravagantes, estilos de vida. É possível depreender que, para Sen, o limite para o uso dessa liberdade seria garantir a igual capacidade de outras pessoas. Ocorre que, como ficou claro no exemplo do lançamento de anões, esse limite não é suficiente, pois alguém pode aceitar violações à sua liberdade em troca de algo que valoriza, muitas vezes até por almejar uma situação financeira melhor. O limite tem, pois, que estar em outro lugar. Melhor dizendo, o parâmetro para aferir a justiça deve ser outro. Penso que esse parâmetro deva ser a dignidade da pessoa humana.

3.  O esboço de um parâmetro: a dignidade da pessoa humana

Segundo Kant (2002), o ser humano é o único dotado de liberdade. Liberdade no sentido de autonomia. Capacidade de agir contra os instintos e inclinações. A autonomia seria o oposto de heteronomia, que é o agir condicionado por externalidades. Assim, o animal irracional age de forma heterônoma, pois os seus fins são dados pela própria natureza. Se tem fome, come, se tem sede, bebe. O ser humano, embora também sujeito a essas externalidades, é capaz de escolher agir diferente. É capaz de, por exemplo, fazer uma greve de fome em prol de uma causa. Pontua Manfredo Oliveira (2008, p. 11):

Isto revela que a pertença do ser humano ao campo do ser biológico é de alguma forma paradoxal: por um lado, ele é portador de uma determinação biológica como todo ser orgânico; por outro, está para além de qualquer determinação, pois transcende através da pergunta o campo do imediato e se distancia de tudo. Foi justamente isto que levou M. Scheler a caracterizar o ser humano como o ente que é em principio capaz de dizer não, constituindo-se, então, como o protesto permanente contra a simples facticidade.

Como tem liberdade, tem capacidade de eleger os seus próprios fins. E se pode eleger os seus próprios fins, possui uma dignidade única no universo conhecido. Não pode, portanto, ser somente meio para outros seres – é também um fim em si mesmo. Daí, emerge a segunda fórmula do imperativo categórico kantiano: age de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio.

Assim, é racionalmente defensável que um ser que possua liberdade para estabelecer os seus próprios fins deve ser tratado como um fim em si mesmo, nunca como mero meio para que outro possa atingir os seus fins. Trata-se de uma norma que pode ser universalizada. Até onde sabemos, apenas o ser humano dispõe dessa faculdade. Mas a universalidade da tese pode extrapolar inclusive os limites humanos, de modo que qualquer ser que tenha essa característica deve ser merecedor de igual dignidade. Se, na exploração espacial, descobrirmos outros seres com autonomia, se, com o desenvolvimento da inteligência artificial, uma máquina chegar a esse ponto, se se descobrir algum animal que alcance esse nível de abstração, não podem ser simplesmente usados pelos seres humanos como meios para a consecução dos seus fins.

Dessa forma, entendemos que a impossibilidade de tratar um ser dotado de autonomia como mero instrumento, mas sim como um fim em si mesmo, é o critério universal e supremo de justiça. A partir dele podem ser julgados ordenamentos jurídicos inteiros e normas em particular. Se um dado ordenamento não tiver esse princípio como base, poderá ser considerado injusto. Assim, a escravidão será necessariamente injusta. Normas que coloquem em situação de submissão a mulher em relação ao homem serão necessariamente injustas.

Importante frisar que o reconhecimento do postulado da dignidade da pessoa humana, de que todos os homens são seres com a faculdade de eleger os seus próprios fins, implica necessariamente o reconhecimento de que são iguais. Não iguais do ponto de vista da natureza, mas iguais em dignidade. Implica, também, necessariamente o respeito à liberdade, pois é esta o próprio fundamento da dignidade. Como ensina Manfredo Oliveira (2008, p. 19):

Se todo ente é portador de um valor intrínseco que corresponde à sua estrutura própria de ser, todo ser humano, enquanto ser inteligente e livre que consciente e livremente se possui a si mesmo, possui uma dignidade incondicional, que o faz portador no mundo do valor intrínseco supremo. Isto exige a dignificação ética do ser pessoal que assim se revela como fim em si mesmo, portanto, portador de valor absoluto e de dignidade absoluta e isto se diz de todo e qualquer ser humano o que fundamenta a igualdade essencial de todos os seres humanos. Numa palavra, todos são iguais porque livres e por esta razão devem ser tratados de acordo com esta dignidade fontal o que legitima uma ética estritamente universalista. Desta forma, a ética se radica, antes de tudo, no valor intrínseco da estrutura ontológica da pessoa humana que se efetiva na esfera de suas relações básicas: com a natureza e com os outros seres humanos.

Nesse momento, duas observações a fazer. Se, por serem livres para escolher os seus próprios fins os seres humanos são detentores de uma especial dignidade; se essa característica é comum a toda humanidade, implicando, portanto, igualdade de todos seres humanos; isso necessariamente implica a adoção da democracia como forma de organização social, pois é o único sistema que permite a plena manifestação desses dois direitos: igualdade e liberdade. Liberdade, comum a todos os homens, pressupõe igualdade e ambos pressupõem democracia. Em sua tese de doutorado, Machado Segundo (2009) chega a essa mesma conclusão – necessária interconexão entre liberdade, igualdade e democracia – partindo de uma premissa diferente: a de que o critério para a verificação da justiça do ordenamento residiria no grau de proximidade entre aquilo que o ordenamento é e o que os destinatários de suas normas entendem que ele poderia ser.

Um sistema ditatorial que assegure liberdade é uma contradição em termos, pois as pessoas seriam governadas por normas de cuja criação não participaram, não se podendo falar em autonomia. E um sistema que suprima as liberdades a pretexto de promover a igualdade, desconsidera o próprio fundamento da dignidade humana, que é a liberdade. Suponhamos que exista um Estado ditatorial, cujo soberano seja um sábio extremamente hábil em promover a felicidade dos súditos; mesmo que ele tenha sucesso nessa finalidade e o povo esteja feliz com isso, uma tal forma de organização política não seria digna do ser humano.

Noutro giro, afirmar a dignidade humana – envolvendo a liberdade e a igualdade – como fundamento racional da justiça é algo ainda muito abstrato, que precisa ser desdobrado. As pessoas podem ter diferentes ideias de como melhor concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana. É possível que o mesmo princípio sirva de base para ideias antagônicas de como efetivá-lo. Pode, por exemplo, alguém defender a ideia de que, para concretizar direitos básicos decorrentes da dignidade humana (saúde, educação, alimentação, lazer, cultura, etc.), seja necessário um estado mais interventor, enquanto outrem pode entender que o estado interventor engessa a economia, impedindo a produção de riqueza e renda que financia a realização desses mesmos direitos.

Sobre o caráter dinâmico da concretização histórica da dignidade humana (liberdade e igualdade), ensina Manfredo Oliveira (2008, p. 17-18):

Enquanto pessoa, ser inteligente e livre, o ser humano é portador de direitos inalienáveis que são vinculados essencialmente à constituição ontológica do ser pessoal e enquanto tais devem ser considerados como naturais. Mas porque a pessoa é essencialmente um ser histórico, os direitos são sempre uma obra a se realizar na história. A consequência disto que há sempre novos direitos a serem positivados e efetivados e nesta perspectiva, a história humana se revela do ponto de vista normativo como o campo de luta pela efetivação de direitos, ou seja, sua transformação em direitos reais, criação de instituições que positivem, reconheçam e garantam direitos, portanto, pela efetivação dos seres humanos enquanto seres livres e consequentemente iguais.

Entendemos que também para essa questão a democracia é a melhor resposta. Inclusive na acepção acatada por Sen de governo pelo debate. É fundamental que as pessoas, no uso de suas liberdades, tenham possibilidade de igualmente interferir no debate público acerca da melhor forma de concretizar a justiça.

Nesse momento, parece-nos importante destacar que defender a dignidade humana como critério universal de justiça envolve também os seguintes aspectos: o respeito a outro ser humano como um fim em si mesmo ultrapassa os limites das fronteiras nacionais, bem como ultrapassa os limites temporais, devendo ser resguardados os direitos inerentes à condição humana às gerações vindouras. Assim, se o ordenamento de um país, por menos desigual e mais livre que seja o seu povo, promover a discriminação aos demais povos, será considerado injusto. Também será considerado injusto se não cuidar da preservação das condições que permitam o florescimento das gerações futuras (entra aqui, por exemplo, a questão da preservação do meio ambiente).

É possível ver vários pontos de interseção entre a abordagem de justiça centrada na comparação de realizações sociais, com foco nas capacidades, e a que propomos de albergar a dignidade da pessoa humana como critério universal de justiça. Ambas partem da noção de liberdade como constituinte da “natureza humana”, pressupõem a democracia e o debate público racional para a concretização da justiça, bem como exigem que esse debate público deve ser o mais amplo possível, extrapolando os limites de uma nação, envolvendo a comunidade internacional. De outra parte, a fixação da dignidade da pessoa humana como critério de justiça assume uma pretensão de transcendentalidade, além de fornecer um marco delimitador para o debate público, oferecendo respostas a questões que, a partir do simples foco nas capacidades, não teriam solução, ou, pior, teriam soluções que albergariam situações patentes de injustiça, justamente o que Sen teria a intenção de evitar.

4.  Conclusão

Em síntese conclusiva, verificamos que a ideia de justiça de Sen parte da crítica às concepções que ele chamou de “institucionalismo transcendental”, as quais predominam no cenário intelectual contemporâneo, tendo destaque a teoria de justiça de John Rawls. Em contraponto, ele adota uma abordagem que designa como “comparativa das realizações sociais”, seguindo a tradição de outros grandes pensadores, como Bentham, Smith, Stuart Mill, Marx, dentre outros.

A ideia de Sen é, a partir do debate público racional, desenvolver comparações entre realizações sociais e, assim, fornecer base para o aprimoramento da justiça, ou afastamento de situações de injustiça. Ele utiliza como foco informacional, para alicerçar as comparações acerca da vantagem individual em uma determinada situação, as capacidades baseadas na liberdade. Basicamente, as capacidades seriam a possibilidade de um indivíduo levar a vida que tem razão para valorizar.

Embora concordemos, em certa medida, com a crítica de Sen ao “institucionalismo transcendental”, no sentido de que o estabelecimento de instituições perfeitas não é suficiente nem necessário para que se possa comparar situações do ponto de vista da justiça, ou mesmo avaliar como injusto um determinado estado de coisas, entendemos que, até para uma abordagem comparativa, não há como fugir de um certo “transcendentalismo”, pois é necessário estabelecer um critério universal para se aferir o justo, pois não há como promover a justiça (preocupação central de Sen), sem ter ideia do que ela seja.

Verificamos que o foco nas capacidades não é suficiente para resolver essa questão, seja porque não está devidamente justificado como critério, seja porque não responde, ou responde mal a questões cruciais de realização da justiça. Defendemos ao longo do trabalho que, a partindo da teoria kantiana, podemos estabelecer que a autonomia do ser humano, entendida como a sua capacidade de eleger os seus próprios fins, independentemente das exterioridades, confere-lhe uma dignidade especial. Assim, nenhum ser humano pode ser considerado como mero meio, mas sempre também como um fim em si mesmo. E essa característica ontológica do ser humano seria a base racional para o estabelecimento de direitos humanos universais, bem como critério de justiça dos ordenamentos jurídicos.

Decorrência natural desse postulado (dignidade do ser humano) são os direitos à igualdade e liberdade e, necessariamente, a democracia como forma de organização social. A democracia também se impõe como melhor forma de garantir o progresso na concretização histórica desses direitos. É uma imposição lógica e pragmática, portanto.

Além disso, defender a dignidade humana como critério universal de justiça envolve também os seguintes aspectos: o respeito a outro ser humano como um fim em si mesmo ultrapassa os limites das fronteiras nacionais, bem como ultrapassa os limites temporais, devendo ser resguardados os direitos inerentes à condição humana às gerações vindouras.

Não obstante, encontramos pontos em comum dessa concepção com a ideia de justiça de Sen: ambas partem da noção de liberdade como constituinte da “natureza humana”, pressupõem a democracia e o debate público racional para a concretização da justiça, bem como exigem que esse debate público deve ser o mais amplo possível, extrapolando os limites de uma nação, envolvendo a comunidade internacional. Porém, a fixação da dignidade da pessoa humana como critério de justiça assume uma pretensão de transcendentalidade, além de fornecer um marco delimitador para o debate público, oferecendo (ou orientando) respostas a questões que, a partir do simples foco nas capacidades, não teriam solução, ou, pior, teriam soluções que albergariam situações patentes de injustiça.

Referências

ASSUMPÇÃO, Fabricius. Crítica de Ronald Dworkin à concepção de Amartya Sen. Jornal O Rebate, Macaé, RJ, 10 jul. 2014. Disponível em: http://www.jornalorebate.com.br/site/canais/colaboradores-do-rebate/12032-critica-de-ronald-dworkin-a-concepcao-de-amartya-sen. Acesso em: 20 nov. 2017.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Martin Claret, 2002.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

OLIVEIRA, Manfredo Araúdo de. Desafios aos direitos humanos no mundo contemporâneo. XV Summer School on Religions in Europe, 2008. Disponível em: http://www.asfer.it/pdf/oliveira.pdf. Acesso em: 27 jun. 2016.

QUEIROZ, Rholden Botelho de. Democracia, direitos fundamentais e controle da execução orçamentária pelos tribunais de contas. In: DINIZ, Juliana (Coord.). Democracia e jurisdição constitucional: estudos de interpretação da constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016a.

QUEIROZ, Rholden Botelho de. Direitos humanos, justiça e racionalidade. In: MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito (Coord.). Ciência do direito: estudos de epistemologia jurídica. Fortaleza: DIN-CE, 2016b.

SEN, Amartya. A ideia de justiça. São Paulo: Companhina das Letras, 2009.

SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.