ACESSO À JUSTIÇA E SUA PERSPECTIVA NO PRINCÍPIO DA EFETIVIDADE

ACCESS TO JUSTICE AND ITS PERSPECTIVE ON THE PRINCIPLE OF EFFECTIVENESS

Regis Canale dos Santos

Mestrando em Direito pelo Programa de Doutorado e Mestrado da Universidade de Marília (UNIMAR). Especialista em Direito Civil e Processual Civil. Oficial de Registro de Imóveis de Pereira Barreto. E-mail: cartorio.regis@gmail.com.

Elias Marques de Medeiros Neto

Pós Doutor em Direito Processual Civil pela Universidade de Lisboa e pela Universidade de Coimbra/IGC. Advogado e Professor Universitário. E-mail: elias.marques@rumolog.com.

Resumo: O presente estudo tem por objeto a análise do estudo do acesso à justiça e do princípio da efetividade processual. A problematização decorre da compreensão da releitura dada ao princípio da efetividade em face dos preceitos constitucionais e do novo Código de Processo Civil e se possui correlação ou não com o acesso à justiça. O estudo se desenvolve pelo percurso do método dedutivo. Conclui-se que a efetividade integra o conteúdo do acesso à justiça, e o processo inefetivo, assim entendido o que entrega uma prestação jurisdicional tardia e ineficiente, macula esse direito fundamental.

Palavras-chave: Acesso à justiça. Efetividade. Conteúdo.

Abstract: This study aims to analyze the study of access to justice and the principle of procedural effectiveness. The problematization stems from the understanding of the rereading given to the principle of effectiveness in the face of constitutional precepts and the new Code of Civil Procedure and whether it has a correlation or not with access to justice. The study is developed through the course of the deductive method. It is concluded that the ineffective process, understood as what delivers a late and inefficient judicial provision, tarnishes access to justice.

Keywords: Access to justice. Effectiveness. Content.

1.  Introdução

O objetivo do presente trabalho é analisar a concepção atual do  acesso à justiça e se possui ou não sua correlação com o princípio da efetividade. Em geral, o acesso à justiça é atrelado ao inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal, que estipula que a lei não excluirá  da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, também denominado de princípio da inadaptabilidade do controle jurisdicional.

Com efeito, a expressão acesso à justiça é amplo e comporta diversos significados, sendo certo que o enfoque que se dará se entrelaça com a efetividade processual que assegura  ao jurisdicionado o direito de obter uma proteção estatal ao seu direito jurídico de maneira adequada, célere e tempestiva, buscando, sempre que possível, dar exatamente aquilo que se obteria caso não precisasse se socorrer do Poder Judiciário.

As ondas renovatórias, propostas pelos estudos desenvolvidos por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, buscaram identificar os problemas que impedem os juridicionados de obterem o direito constitucional referente ao acesso à justiça.

A primeira onda renovatória diz respeito à possibilidade de conferir àqueles que não possuem capacidade econômica a tutela efetiva de seus direitos. A segunda onda, por sua vez, busca a proteção dos interesses difusos e coletivos, substituindo vários processos individuais por um coletivo. E, por fim, a terceira onda preocupa-se em proporcionar ao jurisdicionado todos os meios necessários para a obtenção do seu direito.

Nos tempos hodiernos, nota-se claramente que o acesso à justiça, na sua vertente relacionada à efetividade processual, não tem sido atendida pelo Estado, por intermédio do Poder Judiciário, mormente pela morosidade do processo, sendo que o desafio proposto pela terceira onda acima referida é justamente adequar o sistema processual aos conflitos modernos que surgem na sociedade moderna que de fato protejam o direito material violado.

Os procedimentos rígidos previstos na legislação longo tempo demonstraram que não foram aptos a resolver os direitos de modo satisfatório. Assim sendo, passou-se a revisar a legislação processual de modo a proporcionar a efetiva prestação jurisdicional, não se admitindo mais que os conflitos de interesse sejam resolvidos de maneira inefetiva e tardia.

A ciência processual não deve mais ser analisada de maneira independente. Pelo contrário, deve servir como um instrumento de realização do direito material de maneira efetiva, contribuindo para que novos instrumentos adequados surjam  para a proteção dos direitos.

Em sendo assim, é dever dos operadores do direito buscar a efetividade processual, auxiliando o Poder Judiciário e a ciência processual civil nessa fase de mudança e transformação, reinterpretando os institutos já existentes e propondo a criação de novos.

Assim sendo, a partir do momento em que o interessado se dirige ao Poder Judiciário, deve-se possibilitar aos litigantes que a solução da divergência seja adequada, tempestiva e eficiente. Deve-se, portanto, na medida do possível, garantir ao demandante exatamente aquilo que ele naturalmente obteria se não tivesse de ir ao Poder Judiciário.

2.  Acesso à justiça

O conceito de acesso à justiça pode ser compreendido por diversas maneiras, dependendo do aspecto que se queira imprimir a esse termo. Pode-se dizer, assim, que a expressão pode ser considerada polissêmica e plurissignificativa, comportando diversos sentidos. Com efeito, nota-se que existem diversos grupos que interpretam o sentido do acesso à justiça, de modo que, ao tentar conceituá-la, é natural a aproximação de um desses grupos interpretativos.

Sob um enfoque mais alinhado à técnica processual, citem-se, inicialmente, aqueles que tratam o acesso à justiça como a forma de se pleitear a tutela jurídica, por meio do Poder Judiciário, pondo fim à inércia da jurisdição. Nesse grupo, busca-se analisar as formas de ações, a natureza dos provimentos jurisdicionais, os requisitos necessários para se requerer a tutela jurisdicional, os instrumentos processuais, as defesas dispostas para se contrapor ao pedido etc.

Nesse grupo encontra-se incluída a ideia da instrumentalidade do processo, segundo a qual o processo é um meio para se obter a justiça, sendo um mecanismo de acesso à justiça. O processo não é a justiça em si mesma. Conforme os ensinamentos de Cândido Rangel Dinamarco, enxerga-se o processo como um instrumento que busca a justiça (DINAMARCO, 2003).

Em um outro grupo, encara-se o acesso à justiça como forma de ingresso físico aos fóruns e tribunais. Nesse aspecto, preocupa-se com a análise de acesso aos prédios judiciários toda a sociedade, devendo o Estado proporcionar meio àqueles que possuem limitação física, tais como os cadeirantes e os deficientes visuais, por meio de rampas e elevadores aos primeiros e com sinalização específica aos segundos[1].

Outrossim, não se pode deixar de mencionar a proposta apresentada por Kazuo Watanabe de acesso à justiça enquanto acesso à ordem jurídica justa. Parte de um conceito mais amplo de acesso à justiça, por meio de mecanismos de promoção de justiça social (WATANABE, 1988).  Em suas palavras, “a problemática do acesso à justiça não pode ser estudada nos acanhados limites do acesso aos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa” (WATANABE, 1988, p. 128).

Por fim, há o grupo que busca a significado do acesso à justiça, abordando-se o termo em si mesmo até a sua constituição enquanto objeto teórico.

Verifica-se, assim, que, sopesando os diversos grupos, não há aquela que faz uma análise melhor do acesso à justiça ou, então, a mais verdadeira. Na verdade, são desdobramentos totalmente possíveis de se tratar um tema árduo e que apresenta diversas facetas, apresentando, cada um, sua relevância e dificuldades próprias.

Eric Balate, em seu dicionário de teoria e de sociologia do direito, sintetiza do conceito de acesso à justiça da seguinte forma:

1. Corrente de pensamento que se interroga sobre as condições de passagem de um estado formal a um estado real do direito de ver sua causa ouvida pelas cortes e pelos tribunais. 2. Teoria crítica “vis-à-vis” ao centralismo jurídico da primeira acepção, que procura ampliar o campo de investigação e visando principalmente a melhoria do regulamento dos litígios e das transações fora das cortes e dos tribunais. 3. Conceito sintético que reúne as diferentes exigências processuais para assegurar a implementação desse direito de acesso às cortes e aos tribunais. (BALATE, 1999, p. 447)

Não obstante a amplitude do tema, nesta artigo leva-se em consideração a construção teórica da pesquisa que recebeu o nome de “Projeto Florença”, realizada por um grupo de pesquisados em décadas passadas. O fruto dessas pesquisas foi publicado sob a forma de um relatório geral, no entanto, frise-se, essa publicação gerou um impacto muito grande na seara acadêmica a respeito do acesso à justiça.

De fato, no relatório são analisadas e discutidas as nuances da administração da justiça em diversos países que participaram na pesquisa. Nasceu no Centro de Estudos de Direito Processual Comparado de Florença, tendo ficado, também, conhecido como “Projeto florentino sobre acesso à justiça” (PIMENTEL, 2005), coordenado por  Mauro Cappelletti e Bryant Garth.

Mauro Capeletti sintetiza o trabalho desenvolvido pelo “Projeto de Florença”, no tocante ao acesso à justiça, da seguinte forma:

Existe, atualmente, uma ampla literatura internacional sobre o tema do Acesso à Justiça. A pesquisa mais ampla até agora conduzida teve o seu centro em Florença e concluída com a publicação de 4 volumes, em 6 tomos, nos quais participaram uma centena de especialistas: juristas, sociólogos, economistas, antropólogos, politicólogos e psicólogos, todos esses de 5 Continentes. (CAPPELLETTI, 2008, v. 1, p. 381)

Na vigência do Estado Liberal era comum a declaração dos direitos dos cidadãos e, sem dúvida, o acesso à justiça era um desses direitos consagrados. Contudo, tratava-se de uma fase em que se protegia o individualismo. Prestigiava-se, sobremaneira, a liberdade. Os direitos consagrados, em sua maioria, eram reconhecidamente limites à atuação do Estado.

O acesso à justiça, portanto, significava uma proteção judicial do direito formal do indivíduo que havia sido violado por outrem ou, então, o direito de contestar uma ação. Esse acesso prestigiava a igualdade formal e não a substancial, pois ao Estado se exigia uma atuação passiva e não ativa.

Como ressaltaram Mauro Cappelletti e Bryant Garth: “Fatores como diferenças entre os litigantes em potencial no acesso prático ao sistema, ou a disponibilidade de recursos para enfrentar o litígio, não eram sequer percebidos como problemas” (CAPPELLETTI, GARTH, 1988, p. 10).

No entanto, com a evolução da sociedade e o surgimento de litígios cada vez mais complexos, verificou-se a necessidade de uma nova interpretação dos direitos que já estavam consagrados em diversos diplomas legais. A igualdade formal não era suficiente, pois, comumente, a vontade do mais forte economicamente,  sempre prevalecia sobre a vontade do mais fraco.

Dessa forma, do Estado Liberal passou-se ao Estado Social, também denominado de welfare, em que se exigia uma atuação ativa do Estado e não mais passiva. Mudou-se, assim, o paradigma. Não bastava que se reconhece os direitos em diplomas legais, exigia-se, a partir desse momento, torná-los efetivos e acessíveis a todos. A titularidade dos direitos contemplados em lei é destituída de fundamento se não houver um efetivo mecanismo posto em prática para a sua defesa.

Sintetizam Mauro Cappelletti e Bryant Garth:

O conceito de acesso à justiça tem sofrido um transformação importante, correspondente a uma mudança equivalente no estudo e ensino do processo civil. Nos estados liberais “burgueses" dos séculos dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos, então vigorante. Direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. […] A justiça, […] no sistema laissez-faire, só podia ser obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus custos […]. O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 9).

É de ressaltar que, no Brasil, o conceito de acesso à justiça não acompanhou o trabalho intelectual desenvolvido pelo Projeto de Florença, de modo que era discutido de outra forma pelos doutrinadores brasileiros.

Aliás, consigne-se que o Brasil não participou do Projeto de Florença. Luciano Oliveira acrescenta que: “Fizeram-se representar países como Chile, Colômbia, México e Uruguai, mas não o Brasil. Sendo o maior país da América Latina, é no mínimo curioso que não constem dados sobre nosso país nesse projeto de dimensões internacionais” (OLIVEIRA, 2015, p. 141).

Eliane Botelho Junqueira, ao analisar a ausência de participação do Brasil no Projeto Florença, afirma que nos primeiros estudos sobre o acesso à justiça no Brasil não se encontra nenhuma referência específica ao mencionado projeto. Em seguida, indaga se essa não participação decorreu de falta de interesse dos doutrinadores brasileiros no tocante ao tema, até então incipiente no Brasil, ou, então, se houve apenas dificuldades de comunicação com pesquisadores interessados na pesquisa (JUNQUEIRA, 1996).

Na década de 1970, o Brasil vivia o auge da ditadura militar e o estudo a respeito do acesso à justiça, numa nítida ampliação das prestações estatais, decorrente do Estado Social, ao viabilizar os demais direitos, era contrária ao entendimento ideológico vivido. Talvez seja esse o desinteresse dos doutrinadores. No entanto, tal premissa pode estar equivocada ao considerar que outros países que também viviam em uma ditadura, a exemplo do Chile, sob a égide de Augusto Pinochet, que, por sua vez, participaram no Projeto Florença.

Eliane Botelho Junqueira resume que a preocupação brasileira pelo assunto concernente ao acesso à justiça se deu a partir da:

[...] própria necessidade de se expandirem para o conjunto da população direitos básicos aos quais a maioria não tinha acesso tanto em função da tradição liberal-individualista do ordenamento jurídico brasileiro, como em razão da histórica marginalização sócio-econômica dos setores subalternizados e da exclusão político-jurídica provocada pelo regime pós-64. Assim como não existem referências ao Florence Project nas primeiras produções brasileiras sobre o tema – uma versão resumida do texto de Cappelletti e Garth só é publicada em português em 1988 –, é significativo que não conste deste projeto internacional um relatório sobre o Brasil. A não participação do Brasil no Florence Project teria sido resultado de dificuldades de contactar pesquisadores brasileiros interessados em analisar esta questão? Ou seria decorrente da falta de interesse dos nossos pesquisadores em relação ao tema na segunda metade dos anos 70, já que o assunto só é introduzido no cenário acadêmico e político brasileiro a partir do final daquela década, quando (e aqui não coincidentemente) se inicia o processo de abertura política? Infelizmente, não é possível responder a essas indagações. No entanto, chama a atenção a ausência do Brasil no Florence Project, enquanto outros países da América Latina (como Chile, Colômbia, México e Uruguai) se fizeram representar, relatando as suas experiências no campo do acesso à Justiça. (JUNQUEIRA, 1996, p. 390).

Com efeito, nota-se que o interesse do Brasil pelos resultados da pesquisa decorrente do Projeto de Florença, coincidente ou não, deu-se a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, que rompeu com as dimensões políticas e sociais até então vigentes. O novo texto constitucional trouxe um extenso rol de direitos sociais demandáveis juridicamente, trazendo consigo uma maior quantidade de temas que se tornaram possíveis de serem analisada pelo Poder Judiciário.

Verificou-se, ademais, o aumento, pelo menos teórico, de pessoas no acesso à justiça, notadamente as minorias que passaram a ser tuteladas pelo novo texto constitucional, o que, de maneira reflexa, ampliou o espectro de proteção constitucional e redimensionou o tema do acesso à justiça.

O acesso à justiça, portanto, alçou novo status com a Constituição Federal, com a proteção de novos direitos e a previsão de novos instrumentos com o escopo de uma inclusão social.  No entanto, advirta-se que o aumento das prestações estatais, geralmente sem a devida correspondência orçamentária e de pessoal, gera uma constatação de que ao se atribuir mais acesso à justiça resulta em menos acesso à justiça.

Essa reflexão é muito bem notada por Maria Tereza Sadek, ao ressaltar que:

[…] sem uma Justiça acessível e eficiente coloca-se em risco o Estado de Direito. […] muitas vezes é necessário que se qualifique de que acesso se fala. Pois a excessiva facilidade para um certo tipo de litigante ou estímulo à litigiosidade podem transformar a Justiça em uma Justiça não apenas seletiva, mas sobretudo inchada. Isto é, repleta de demandas que pouco têm a ver com a garantia de direitos - esta sim uma condição indispensável ao Estado Democrático de Direito e às liberdade individuais. (SADEK, 2001, p. 41)

Retornando à analise do resultado da pesquisa do Projeto de Florença, ressalta-se que o grande mérito dele foi fazer uma análise do funcionamento da Justiça nos diversos países que participaram da pesquisa, nas décadas de 60 e de 70. Houve, assim, uma análise do sistema jurídicos de vários países, transnacional, aproveitando-se os acertos e identificando-se os erros de cada um. Com a pesquisa empírica do acesso à justiça foi possível identificar os aspectos negativos e comuns a diversos países e, ao mesmo tempo, apresentar as propostas que deram certo em outros.

O Florence Project, ao ser publicado entre 1978 e 1979[2], em seis tomos, analisou os dados coletados, atribuindo-se sentido aos dados e aos questionamentos levantados, de modo que, a partir dele, o termo de acesso à justiça passou a ter destaque no cenário jurídico pela sua importância.

Gustavo Ferreira dos Santos afirma que:

[…] termo ‘acesso à justiça’ foi definitivamente incorporado ao cabedal de conceitos que os juristas manipulam após a publicação, em 1979, dos resultados de um grande estudo coordenado por Mauro Cappelletti, no chamado Projeto de Florença. Os trabalhos tornaram-se referência no mundo inteiro (SANTOS, 2008, p. 80).

Juntamente com a publicação do estudo, em quatro volumes, publicou-se um relatório geral e foi nesse ensaio que o tema ficou conhecido no Brasil com sua tradução para o português pela ex-Ministra do Supremo Tribunal Federal Ellen Gracie e publicado em 1988, no ano da publicação da nova ordem constitucional brasileira. A partir dessa publicação inevitavelmente acarretou a reflexão e o estudo do tema.

Nota-se, com efeito, que o tema do acesso à justiça, sob o aspecto de sua origem, não diz respeito a criação de um novo instituto jurídico que ganhou notoriedade. Pelo contrário, a idéia do Projeto de Florença teve a finalidade de demonstrar  o problema de acesso à justiça (FULLIN, 2013, p. 220).

O Estado é um ente que tem o poder de solucionar os conflitos que surgem na vida em sociedade por intermédio da produção de leis e, quando ocorre a violação da norma posta, com sua aplicação ao caso concreto. O acesso à justiça, quer em seu aspecto de acesso ao tribunais, quer no acesso ao direito, trata-se de um tema concernente ao Estado.

Essa valorização do Estado, principalmente do Poder Judiciário na sua incumbência de solucionar os casos posto à sua análise, com a subsunção da norma abstrata ao caso concreto, como fruto do acesso à justiça tem sido revisitada nos últimos anos, não mais tratando como algo exclusivo. Aliás, parece-me que essa visão ampla do acesso à justiça parece ter sido abarcada pelo Projeto Florença, em sua parte geral.

Nesse mesmo sentido, ensina de Carmem Silvia Fullin ao dispor que:

[…] Acessar a justiça deixou de significar somente a possibilidade de ter o judiciário à disposição, mas, além disso, dispor de condições reais (econômicas, culturais, institucionais) para acioná-lo. Em outras palavras, o acesso aos tribunais passou a ser visto como um problema social a ser debatido e gerido pelo poder público. Entretanto, é preciso ter em conta que a construção do problema de acesso à justiça também está relacionada à valorização da participação do Estado na regulação e no controle de conflitos sociais. Isso fortalece a ideia de que as instituições estatais são o melhor e mais seguro destino para resolução de disputas e afirmação de direitos, reforçando-se assim a centralidade do papel do Estado na vida social. […] O problema do acesso à justiça encontra-se também historicamente articulado à afirmação de uma forma específica de organização política e jurídica que marca as sociedades ocidentais capitalistas modernas. (FULLIN, 2013, p. 220)

Não há dúvida que o acesso à justiça decorre do Estado Social, também chamado de Welfare State ou Estado do Bem Social, pois se trata de um direito social, presente no texto constitucional, como forma de política pública.

Mauro Cappelletti e Bryant Garth afirmam que:

Não é surpreendente, portanto, que o direito ao acesso à justiça tenha ganho particular atenção na medida em que as reformas do welfare state têm procurado armar os indivíduos de novos direitos substantivos em sua qualidade de consumidores, locatários, empregados e, mesmo, cidadãos. […] O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental - o mais básico dos direitos humanos - de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 11-12)

É verdade que o acesso à justiça pode ser analisado sob um viés liberal ou por sob o ângulo do estado social. Faz-se essa advertência porque comumente é tratado apenas como decorrente do welfare state.

Discorrendo sobre isso, Mauro Cappelletti e Bryant Garth:

O conceito de acesso à justiça tem sofrido uma transformação importante […] Nos estudos liberais ‘burgueses’ dos séculos dezoito e dezenove, os procedimentos adotados para solução dos litígios civis refletiam a filosofia essencialmente individualista dos direitos, então vigorante. Direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. A teoria era a de que, embora o acesso à justiça pudesse ser um ‘direito natural’, os direitos naturais não necessitavam de um ação do Estado para sua proteção. Esses direitos eram considerados anteriores ao Estado; sua preservação exigia apenas que o Estado não permitisse que eles fossem infringidos por outros. O Estado, portanto, permanecia passivo, com relação a problemas tais como a aptidão de um pessoa para reconhecer seus direitos e defendê-los adequadamente, na prática. […] Afastar a ‘pobreza em sentido legal’[…] não era preocupação do Estado. A justiça, como outros bens, no sistema do laissez-faire, só podia ser obtida por aqueles que pudessem enfrentar seus custos […]. O acesso formal, mas não efetivo à justiça, correspondia à igualdade, apenas formal, mas não efetiva. (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 9)

Dessa forma, nota-se que o Projeto de Florença trata a questão do acesso à justiça como algo que se transforma durante o tempo. Trata-se de um conceito dinâmico que se adapta ao longo e em constante construção. O conceito comum refere-se ao acesso aos tribunais e ao direito, focando sua análise no denominado acesso efetivo à justiça, deificação essa que também se adotará nessa dissertação.

Contudo, registre-se que acesso efetivo à justiça, também designado princípio da efetividade, não traduz necessariamente a ideia de acesso ao Poder Judiciário. Com efeito, o acesso efetivo se traduz em um acesso efetivamente garantido, como se demonstrará abaixo, como um entendimento amplo. A noção do acesso à justiça é construída a partir dos obstáculos detectados e das possíveis soluções adequadas, denominadas como ondas renovatórias, a seguir analisadas.

2.1.    Ondas renovatórias

O estudo do acesso à justiça detectou, com base no estudo empírico, três grandes obstáculos ao acesso à justiça. Em seguida, como soluções a esses problemas relacionados ao acesso, foram apresentadas as ondas renovatórias.

Os três óbices detectados foram organizados da seguintes forma: custas judiciais, possibilidade das partes e problemas especiais dos interesses difusos. Trata-se de problemas relacionados a questões econômicas, sociais e culturais que não podem ser analisados separadamente, mas, sim, de forma conjugada, de modo que, advertem Mauro Cappelletti e Bryant Garth “[…] esses obstáculos não podem ser simplesmente eliminados um por um. Muitos problemas de acesso são inter-relacionados, e as mudanças tendentes a melhorar o acesso por um lado podem exacerbar barreiras por outro” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 29).

No aspecto econômico, detectou-se o valor alto das custas judiciais e dos serviços prestados pelos advogados. Os juizados de pequenas causas, em que geralmente não há a cobrança de custas e não é necessário a contratação de advogados, é, sem dúvida, uma forma de solucionar esse entrave, porém, não se pode olvidar dos altos valores que são despendidos para a manutenção da Justiça que, por sua vez, poderá ser prejudicada, sem a correspondente fonte de seus sustento.

No aspecto social, pessoas com mais recursos financeiros possuem mais vantagens em relação aos que não os possuem. Ou, em outros termos, os litigantes habituais gozam de vantagens quanto aos litigantes eventuais. É evidente que aqueles que constantemente se encontram em litígio contam com a experiência  jurídica e têm uma superioridade com aqueles que raramente ou nunca se encontram em juízo.

Após apontar os obstáculos, o Projeto Florença apresentou as ondas renovatórias que seriam as soluções práticas para os problemas de acesso à justiça.

A primeira onda é a assistência judiciária aos podres. Busca analisar a dificuldade do população de baixa renda de ter acesso à justiça em face dos altos custos, principalmente levando-se em consideração as custas processuais e a contratação de advogado. Como, então, incluir no sistema judiciário aqueles que estão excluídos ou ao menos em desigualdade de condições em relação aos mais fortes economicamente falando? Várias discussões surgiram com o escopo de tentar solucionar esse obstáculo identificado pelo estudo do projeto.

A segunda onda, por sua vez, identificou o problema dos interesses difusos e coletivos. Hodiernamente, verifica-se um eficiente sistema para a proteção desses direitos, situação bem diferente na década de 60.

Explicam Mauro Cappelletti e Bryant Garth que:

[…] concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos. O processo era visto apenas como um assunto entre duas partes, que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito de seus próprios interesses individuais […] São litígios de ‘direito público’ em virtude de sua vinculação com assuntos importantes de política pública que envolvem grandes grupos de pessoas (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 49-50).

A terceira onda renovatória é chamada, no texto do Projeto de Florença, “Do Acesso à Representação em Juízo a um Concepção mais Ampla de Acesso à Justiça. Um Novo Enfoque de Acesso à Justiça”. Aponta que o acesso à justiça é de tal complexidade e de interconexão com outros elementos, que contempla as dimensões econômicas, sociais e culturais  da primeira onda renovatória e da questão dos direitos difusos da segunda onda para melhorar o acesso por meio de reformas em vários aspectos.

São as palavras de Mauro Cappelletti e Bryant Garth:

O novo enfoque de acesso à Justiça […] tem alcance muito [ …] amplo. Essa ‘terceira onda’ de reforma inclui a advocacia, judicial e extrajudicial, seja por meio de advogados particulares ou públicos, mas vai além. Ela centra sua atenção no conjunto geral de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e mesmo prevenir disputas nas sociedades modernas. Nós o denominados ‘enfoque de acesso à Justiça’ por sua abrangência. Seu método não consiste em abandonar as técnicas das duas primeiras ondas de reforma, mas em tratá-las como apenas algumas de uma série de possibilidades para melhorar o acesso. […] A representação judicial - tanto de indivíduos, quanto de interesses difusos - não se mostrou suficiente, por si só, para tornar essas mudanças de regras ‘vantagens tangíveis’ (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 67-69).

Em seguida, os mesmos autores ressaltam que é crescente o reconhecimento de que “[…] embora não possamos negligenciar as virtudes da representação judicial, o movimento de acesso à justiça exige uma abordagem muito mais compreensiva de reforma […], com uma nova meditação sobre o sistema de suprimento - o sistema judiciário” (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 69-70).

Essa variedade de reformar, registram, de acordo com Mauro Cappelletti e Bryant Garth:

[…] alterações nas formas de procedimento, mudanças na estrutura dos tribunais ou a criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, tanto como juízes quanto como defensores, modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução dos litígios. Esse enfoque, em suma, não receia inovações radicais e compreensivas, que vão muito além da esfera de representação judicial (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 71).

A terceira onda pode ser resumida na facilitação e simplificação dos procedimentos dispostos aos juridicionados e também na criação de vias alternativas de Justiça. O Poder Judiciário não deve ser o único órgão com incumbência de solucionar os conflitos que surgem na vida em sociedade.

Ada Pellegrini Grinover escreveu que:

De um lado, a desmoralização do próprio processo, utilizando-se a técnica processual em busca de um processo mais simples, rápido, econômico, de acesso fácil e direito, apto a solucionar com eficiência tipos particulares de conflito de interesses. De outro lado, a desformalização das controvérsias, buscando para elas, de acordo com sua natureza, equivalentes jurisdicionais, como vias alternativas ao processo, capazes de evitá-lo, para solucioná-las, mediante instrumentos institucionalizados de medicação (GRINOVER, 1990, p. 179).

2.2.    Direito processual constitucional e as ondas renovatórias

O Código de Processo Civil é um ramo do direito público, pois disciplina uma relação jurídica em que o Estado figura como um dos participantes, presente na jurisdição, não obstante o direito ser um só. No entanto, independentemente de sua classificação, o direito processual deve buscar sua validade nos princípios ou comandos previstos na Constituição Federal.

Com efeito, a Constituição Federal tem por escopo a equilibrar forças políticas assentes na sociedade em determinado momento na história para que possa ser utilizada pelo processualista como um instrumento jurídico para o completo entendimento do processo e seus princípios. (CINTRA; GRINOVER; DINARMARCO, p. 84-85)

Ao estudo do direito processual civil, partindo-se da premissa dos preceitos constitucionais, deu-se o nome de direito constitucional processual civil brasileiro, que, por seu turno, subdivide-se em jurisdição constitucional e a tutela constitucional dos princípios fundamentais da organização judiciária e do processo.

Se é certo que a evolução do direito processual civil sofreu influência do direito público, notadamente do direito constitucional, pode-se dizer também que o direito constitucional, em sua proximidade com o direito processual, não escapou do ativismo estatal.

As três ondas de acesso à justiça podem ser cotejadas à luz das gerações dos direitos fundamentais.

De fato, os direitos fundamentais de primeira geração, uma consequência da passagem do Estado Absolutista para o Estado Liberal, constituem-se em liberdades públicas oponíveis ao Estado, como o intuito de impor limites a este. Resumem-se em liberdades negativas ou direito de defesa do indivíduo contra o Estado.

Nos direitos fundamentais de segunda geração, por sua vez, decorrente do Estado Social, busca uma atuação positiva do Estado em favor do indivíduo, em conceder direitos sociais. Notou-se que o individualismo puro traz desigualdades e que, portanto, cabe ao Estado agir para que se possa atingir a igualdade material, protegendo-se os vulneráveis.

O direito de segunda geração se refletiu na primeira onda de acesso à justiça proposto por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, pois a previsão constitucional das defensorias públicas e a possibilidade de acesso gratuito ao Poder Judiciário demonstra um atuação positiva do Estado  em viabilizar o acesso à justiça às pessoas menos favorecidas.

Por outro lado, o direito de terceira dimensão, nas palavras de Pedro Lenza "são direitos transindividuais, isto é, direitos que vão além dos interesses do indivíduo; pois são concernentes à proteção do gênero humano, com altíssimo teor de humanismo e universalidade” (LENZA, 2019, p. 1158). Compreendem os direitos individuais homogêneos, os direitos coletivos e os direitos transindividuais, tais como o meio ambiente, patrimônio histórico, cultural e paisagístico. Identifica-se na existência de valores que concernem a um categoria de pessoas consideradas em seu conjunto e não na sua individualidade.

Os direitos fundamentais de terceira dimensão se subsumem à segunda onda de acesso à justiça que identifica que a tutela de interesses se verifique além da esfera individual, abrangendo contornos coletivos.

Cândido Rangel Dinamarco explica que:

Na concessão dessa tutela, está presente o reconhecimento de que existem bens não incluídos na esfera jurídica de qualquer pessoa, mas representativos de valores que pertencem à própria comunidade, por ela são fruídos e em benefício dela e de cada um dos seus membros também merecem preservação por via judiciária. Reconhecer a relevância jurídica de tais valores e a existência de interesses de todos sobres eles, interesses que são difusos porque refogem à clássica estrutura da pertinência individualizada de cada interesse a determinada pessoa, é um enorme passo dado no sentido de maior abertura da via de admissão em juízo e, consequentemente, de acesso à justiça (DINAMARCO, 2003, p. 331).

O direito constitucional contemporâneo busca a efetivação do acesso à justiça e tutelar a ordem jurídica justa, reclamando, sem dúvida, um interesse do Estado no resultado do processo como instrumento, como forma de propiciar uma entrega justa e efetiva da tutela jurisdicional. A postura mais ativa do juiz, notadamente os poderes instrutórios, aliados com outras formas que buscam solucionar a lide, tais como a conciliação, a arbitragem, o divórcio e a separação e, recentemente, a usucapião, realizados pelas serventias extrajudiciais, buscam entregar uma tutela jurisdicional justa e efetiva que vai ao encontro da terceira onda de acesso à justiça.

3.  Princípio da Efetividade

O Princípio da Efetividade está visceralmente ligado ao acesso à justiça. Aliás, é comum autores tratarem o acesso à justiça como sinônimo do princípio da efetividade. Será nessa perspectiva que o acesso à justiça será tratado nessa dissertação.

Nesse diapasão, encontra-se o escólio de José Roberto dos Santos Bedaque, segundo o qual:

[…] entre os direitos fundamentais da pessoa encontra-se, sem dúvida, o direito à efetividade do processo, também denominado direito de acesso à justiça ou direito à ordem jurídica justa, expressões que pretendem representar o direito que todos têm à tutela jurisdicional do Estado. Essa proteção estatal deve ser apta a conferir tempestiva e adequada satisfação de um interesse juridicamente protegido, em favor do seu titular, nas situações em que isso não se verificou de forma natural e espontânea. (BEDAQUE, 2003, p. 341)

De fato, com o escopo de compreender como o princípio da efetividade se manifesta, diga-se acesso à justiça, mister se faz verificar se os elementos indispensáveis que, caso não estejam presentes, fatalmente acarretará na ausência de efetividade.

O Estado, ao possuir o monopólio da jurisdição, deve proporcionar às partes que estão envolvidas em um processo que a solução do caso, com a aplicação da lei ao caso concreto, pacificando-se, portanto, a controvérsia, se dê de forma adequada, tempestiva e eficiente, atendendo-se, sempre, ao devido processo legal.

Não mais se admite uma visão estritamente instrumental do processo civil, analisando seus institutos cientificamente e totalmente isolados do direito material. Pelo contrário, a temática que predomina hodiernamente é o estudo dos seus dispositivos, objetivando uma solução adequada e célere do direito material.

Aliás, o objetivo central da atuação do processo civil é oferecer a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter, caso não tivesse que se socorrer do Poder Judiciário, conforme os ensinamentos de Chiovenda.

Deve-se garantir, por intermédio do princípio da efetividade, com efeito, uma aplicação adequada, tempestiva e oportuna da norma, com a observância da eficiência, celeridade, duração razoável do processo e o respeito ao devido processo legal.

Infere-se, assim, que a efetividade decorre da terceira onda proposta por Cappelletti e Garth, justamente no desafio do Estado, por intermédio do Poder Judiciário, prestar um serviço público de qualidade na solução dos conflitos, conferindo aos litigantes todos os meios necessários para dar àquele que possui o direito de obter o seu interesse.

Na sociedade moderna, as pessoas praticam diversos negócios jurídicos com o intuito de prover suas necessidade. Surge, assim, a noção de obrigação que nada mais é do que o vínculo jurídico, de caráter transitório e de natureza econômica, estabelecida entre o credor e o devedor, devendo este cumprir uma prestação positiva ou negativa, garantindo o cumprimento sob pena de coerção judicial.

Ensina Flávio Tartuce que “havendo o descumprimento ou inadimplemento obrigacional, poderá o credor satisfazer-se no patrimônio do devedor” (TARTUCE, 2018, p. 367).

A partir do momento em que há o descumprimento da relação obrigacional, o prejudicado deverá se socorrer obrigatoriamente ao Poder Judiciário que, ao analisar o caso concreto, aplicará a norma em abstrato no caso a ser solucionado, pacificando a questão. Por isso tem razão Flávio Tartuce ao dizer que “para o Direito, interessa mais o descumprimento do que o cumprimento da obrigação, já que se trata de uma ciência que lida com o conflito” (TARTUCE, 2018, p. 367).

O devedor da relação obrigacional deve cumprir com sua obrigação, sob pena de cumprimento por coerção judicial. Como no ordenamento jurídico brasileiro são raríssimas as hipóteses em que se permite a autotutela, de modo que, em regra, ao prejudicado pelo não cumprimento da obrigação não restará outra alternativa senão se socorrer do Poder Judiciário. Aliás, registre-se que é considerado crime fazer justiça com as próprias mãos, fora dos casos autorizados por lei. É o que estabelece o art. 345 do Código Penal, ao dispor ser crime “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.”

Assim sendo, a partir do momento em que o interessado se dirige ao Poder Judiciário, deve-se possibilitar aos litigantes que a solução da divergência seja adequada, tempestiva e eficiente. Deve-se, portanto, na medida do possível, garantir ao demandante exatamente aquilo que ele naturalmente obteria se não tivesse de ir ao Poder Judiciário.

Conforme ensina Cândido Rangel Dinamarca, valendo-se dos ensinamentos de Chiovenda, “na medida do que for praticamente possível, o processo deve proporcionar a quem tem um direito tudo aquilo e precisamente aquilo que ele tem o direito de obter” (DINAMARCO, 2008, p. 319).

E prossegue o ilustre doutrinador asseverando que, como a jurisdição tem o escopo de solucionar conflitos, com a obtenção da paz social, o princípio da efetividade do processo torna-se verdadeira essência da jurisdição. É certo que um processo tardio, ineficaz e sem concretude no mundo dos fatos, fracassa a tutela pleiteada e também do direito material, não proporcionando a pacificação do conflito (DINAMARCO, 2008).

Luiz Guilherme Marinoni acrescenta que “o processo, pois, como instrumento de prestação da tutela jurisdicional, deve fazer surgir o mesmo resultado que se verificaria se a ação privada não estivesse proibida” (MARINONI, 1994, p. 12).

No mesmo sentido, encontra-se o escólio de José Roberto dos Santos Bedaque ao ensinar que “processo efetivo é aquele que, observado o equilíbrio entre os valores segurança e celeridade, proporciona às partes o resultado desejado pelo direito material” (BEDAQUE, 2007, p. 49).

Cassio Scarpinella Bueno, a seu turno, esclarece que existe uma relação muito forte entre o direito processual e o direito material, de modo que aquele deve tutelar este de forma efetiva, não se olvidando que é função essencial do Estado garantir um eficaz exercício da jurisdição. Em outros termos, entende-se como eficaz exercício da jurisdição não só uma resposta do Poder Judiciário quanto ao deslinde da lide, como também a própria realização do direito material (BUENO, 2012).

Dessa forma, é missão do Estado apresentar uma legislação processual que, de forma eficaz, tempestiva, oportuna e adequada, garanta a realização do direito material. Se desempenhar este mister, a efetividade processual estará atingida.

O ordenamento jurídico deve proporcionar ao cidadão um adequada prestação jurisdicional, o que exige a estruturação de procedimentos capazes de fornecer a tutela jurisdicional necessária ao direito material que possibilitem resultado igual, ou muito próximo, ao que seria obtido se espontaneamente fosse cumprido pelo devedor.

Por outro lado, se não proporcionar, estaremos em uma ausência de efetividade processual. Não se deve, portanto, ter uma visão autônoma do direito processual civil que não se preocupa com o direito material. Pelo contrário, nos dias atuais a ciência processual deve se ater no auxílio efetivo de realização do direito material.

É verdade que o direito material não se confunde com o direito processual, de modo que a ação  processual é o meio pelo qual se busca a realização do direito material. Consigne-se que, em determinada momento da literatura jurídica, a instrumentalizado do processo foi confundida com a sua neutralidade em relação direito material. Era necessária apenas uma espécie de procedimento e este, acreditou-se, teria a aptidão para propiciar tutela adequada às diversas situações de direito material (MARINONI, 1995).

Já advertia José Carlos Barbosa Moreira, nos idos de 1980, que:

Não é preciso grande esforço para demonstrar que as modalidades de tutela jurisdicionais mais prestigiadas pela tradição se revelam, com muita freqüência, incapazes de desempenhar a contento missão de tamanha delicadeza. Sobremaneira insatisfatório mostra-se ao propósito o mecanismo - que se pode representar por meio do esquema ‘processo de condenação (normalmente de rito ordinário) + execução forçada’, máxime quando se reserva, conforme sucede as mais das vezes, para o tratamento exclusivo de situações que se caracterizam pela existência de lesão já consumada (MOREIRA, 1980, p. 23).

Nota-se, assim, que para cada tipo de direito material exige-se uma providência diferente do poder judiciário. De fato, adequar a legislação processual e a atuação da jurisdição para, de forma eficaz, tempestiva, oportuna e adequada, garantir e realizar o direito material a ser tutelado, é a missão hoje presente nos foros acadêmicos e profissionais que constantemente debatem processo civil no Brasil (MEDEIROS NETO, 2014, p. 378).

O direito a efetividade tem como consequência a preordenação de procedimentos suficientes para a tutela dos direitos. Registre-se que, outrora, ao sustentar a constitucionalidade de artigos da Medida Provisória referente ao Plano Collor, que vedavam a concessão de liminares nas ações cautelares e nos mandados de segurança, destacava-se sua conformidade com a ordem jurídica constitucional, mormente ao princípio da inafastabilidade, previsto no artigo 5, inciso XXXV, da Constituição Federal, por não obstar que o Poder Judiciário apreciasse lesão ou ameaça a direito, pois o que "é vedado é excluir de apreciação, é eliminar, não admitir, privar, o que não se sucede, evidentemente, se por meio ordinário se admite tal apreciação” (ADIN n. 223-6-DF).

Deveras, para quem sustenta o direito à adequada tutela jurisdicional não admite aceitar este entendimento, pois o princípio da inafastabilidade não  apenas veda que se exclua de apreciação, mas antes de tudo garante o direito ao processo efetivo (MARINONI, 1995).

Dessa forma, parece-me que, sem dúvida, o acesso à justiça, manifestado pelo princípio da efetividade, decorre da terceira onda do clássico estudo realizado por Cappelletti e Garth.

Busca-se adaptar o sistema processual para tornar o processo efetivo. Os conflitos modernos são complexos e a ciência processual não pode ficar distante desta realidade, pelo contrário, deve se debruçar para encontrar novas formas de solucioná-los, dando aos litigantes o direito material tal como se a obrigação tivesse sido cumprida espontaneamente. Os demandantes, assim, não podem encontrar um processo rígido e formal totalmente em desarmonia com a efetividade do direito material que, na verdade, é o que buscam as litigantes.

Nesse sentido é a doutrina de Kazuo Watanabe:

O direito e o processo devem ser aderentes à realidade, de sorte que as normas jurídicos-materiais que regem essas relações devem propiciar uma disciplina que responda adequadamente a esse ritmo de vida, criando mecanismos de segurança que reajam com agilidade e eficiência às agressões ou ameaças de ofensa. E, no plano processual, os direitos e pretensões materiais que resultam da incidência dessas normas materiais devem encontrar uma tutela rápida, adequada e ajustada ao mesmo compasso (WATANABE, 2000, p. 141).

Tendo em vista que o Estado suprimiu o direito à autotutela, avocando para si este dever, deve desempenhá-lo de forma satisfatória, sob pena de seu desprestígio. Ademais, acarreta o desestímulo do acesso à justiça daqueles que possuem seus direitos injustamente resistidos e pune os que obtiveram seu direito mas que não conseguiram utilizá-lo de maneira real.

A natureza constitucional da efetividade do processo foi reconhecida por Teori Albino Zavascki:

Sob a denominação de direito à efetividade da jurisdição queremos aqui designar o conjunto de direitos e garantias que a Constituição atribui ao indivíduo que, impedido de fazer justiça por mão própria, provoca a atividade jurisdicional para vindicar bem da vida de que se considera titular. A este indivíduo devem ser, e são, assegurados meios expeditos e, ademais, eficazes, de exame da demanda trazida à apreciação do Estado. Eficazes, no sentido de que devem ter aptidão de propiciar ao litigante vitorioso a concretização ‘Tática’ da sua vitória (1997, p. 64).

Ademais, é importante consignar que a busca da efetividade tem-se traduzido na preocupação de diversos países, sendo um dos princípios de processo civil com validade transnacional, de acordo com o projeto Unidroit/American Law Institute (ANDREWS, 2012), liderado pelos professores Geoff Hazard e Michele Taruffo.

Neste projeto, houve destacada tônica para a preocupação com uma justiça efetiva, pronta e célere, com o dever das partes de evitar propositura de ações temerárias e abuso do processo, com o dever das partes de agirem de forma justa e de estimularem procedimentos eficientes e rápidos, e com o seu respectivo dever de cooperação.

A busca de uma tutela jurisdicional justa e efetiva também está presente nos princípios do moderno processo civil inglês, sendo que esta diretriz já constava da obra do professor Neil Andrews de 1994 (Principles of Civil Procedure, 1994), sendo depois reafirmada no livro English Civil Procedure, de 2003 (Oxford University Press), além de estar constante nas CPR de 1998 (“O Código de Processo Civil Inglês”) (ANDREWS, 2012).

4. Conclusão

O acesso à justiça é, dentro os direitos humanos, o mais básico. Deve ser compreendido não apenas sob o aspecto de acesso ao Poder Judiciário, mas, também, a uma ordem jurídica justa, no sentido da efetividade de uma justiça adequada, pronta e célere. Ao litigante deve-se proporcionar, na medida do possível, exatamente aquilo que ele naturalmente teria caso a avença fosse cumprida na forma e termos pactuados, ou seja, se não precisasse se socorrer do Poder Judiciário.

A discussão sobre o tema do acesso à justiça só foi possível em razão do estudo desenvolvido por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, desenvolvidos no Projeto de Florença, na década de 70 e que ainda se encontra na pauta do dia. Dentro do estudo desenvolvido, foram identificados três obstáculos para a universalização do acesso à justiça e, como consequência, foram apresentadas três ondas renovatórias para a superação desses impedimentos.

De fato, na vida em sociedade, é natural que as pessoas se relacionem e realizem os mais diversos negócios jurídiocs, no entanto, a partir do momento em que há o descumprimento da relação obrigacional, o prejudicado deverá se socorrer obrigatoriamente ao Poder Judiciário que, ao analisar o caso concreto, aplicará a norma em abstrato no caso a ser solucionado, pacificando a questão.

 Assim sendo, a partir do momento que o interessado se dirige ao Poder Judiciário deve-se possibilitar aos litigantes que a solução da divergência seja adequada, tempestiva e eficiente. Deve-se, portanto, na medida do possível, garantir ao demandante exatamente aquilo que ele naturalmente obteria se não tivesse de ir ao Poder Judiciário. É exatamente nisso que se traduz o princípio da efetividade.

A jurisdição tem o escopo de solucionar conflitos, com a obtenção da paz social, de modo que o princípio da efetividade do processo torna-se verdadeira essência da jurisdição.  O processo inefetivo nega o acesso à justiça. Com efeito, a inefetividade processual, sem concretude no mundo dos fatos, entregando uma prestaçao tardia e ineficiente atenta contra o real sentido atual do acesso à justiça

Por outro lado, a efetividade do processo estará em sua plenitude quando estiver presente a eficiência, a celeridade, o devido processo legal. Quando estes elementos estiverem presentes podemos afirmar que a solução da controvérsia foi consentanea com o preceito do acesso à justiça e do princípio da efetividade. 

Referências

ANDREWS, Neil. O Moderno Processo Civil. Tradução de Teresa Arruda Alvim Wambier. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

BALATE, Éric. Justiça (Acesso à). In: ARNAUD, André-Jean et. al. Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Trad. Vicente de Paulo Barretto. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela Cautelar e Tutela Antecipada: Tutelas Sumárias e de Urgência (tentativa de sistematização). São Paulo: Saraiva, 2003.

BUENO, Cassio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2016.

BUENO, Cassio Scarpinella. Novo Código de Processo Civil anotado. São Paulo: Saraiva, 2018.

CAPPELLETTI, Mauro. Processo, ideologias e sociedade. Trad. Elício de Cresci Sobrinho. Vol. 1 Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.

CAPPELLETTI, Mauro. Dimensione della giustizia nella società contemporanee. Bologna: Il Mulino, 1994.

CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pelegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. São Paulo, Malheiros, 2002.

DINAMARCO, Marcia. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2017.

DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalização do processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.

FULLIN, Carmen Silvia. Acesso à justiça: a construção de um problema em mutação. In: SILVA, Felipe Gonçalves; RODRIGUEZ, José Rodrigo (Coord.). Manual de sociologia jurídica. São Paulo: Saraiva, 2013.

JUNQUEIRA, Eliane Botelho. Acesso à Justiça: um olhar retrospectivo. Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 18, 1996.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. São Paulo: Saraiva, 2019.

MARINONI, Luiz Guilherme. Efetividade do Processo e Tutela de Urgência. Porto Alegre: Fabris, 1994.

MEDEIROS NETO, Elias Marques. A efetividade do processo e a importância da arbitragem nos conflitos de energia. Revista Argumentum, n. 15, 2014.

MEDEIROS NETO, Elias Marques de. Proibição da Prova Ilícita no Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Fiuza, 2010. p. 20.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela sancionatória e tutela preventiva, in Temas de direito processual (segunda série). São Paulo: Saraiva, 1980.

OLIVEIRA, Carlos Alberto Álvaro de; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil: teoria geral do processo civil e parte geral do direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2010. 1 v. p. 112.

PIMENTEL, Alexandre Freire. Prefácio. In: GOMES NETO, José Mário Wanderley. O acesso à justiça em Mauro Cappelletti: análise teórica desta concepção como “movimento" de transformação das estruturas do processo civil brasileiro. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005.

SADEK, Maria Tereza (Org.). Acesso à justiça. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001. (Série Pesquisas, 23).

SANTOS, Gustavo Ferreira. Acesso à justiça como direito fundamental e a igualdade em face dos direitos sociais. In: GOMES NETO, José Mário Wanderley (Coord.). Dimensões do acesso à justiça. Salvador: JusPodvm, 2008.

TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil. São Paulo: Método, 2018.

THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

XAVIER, Trícia Navarro. Poderes do juiz no novo CPC. Revista de Processo. São Paulo, a. 37, n. 208, p. 275-293, jun. 2012. p. 285.

WATANABE, Kazuo. Da cognição no processo civil. Campinas: Bookseller, 2000.

WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini;

ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação de Tutela. São Paulo: Saraiva, 1997.



[1] Nesse sentido Luiz Alberto David Araújo na obra intitulada Barrados: pessoas com deficiência sem acessibilidade: como, o que e de quem cobrar, Petrópolis: KBR, 2011.

[2] Cappelletti, 1994, p. 71.