SOLO CRIADO E DIREITO DE SUPERFÍCIE

LEILYANNE B. FEITOSA

Procuradora do Município | Consultora da União dos Vereadores do Ceará

SUMÁRIO:
I -Introdução;
II - Possibilidade de Separação entre direito de propriedade e direito de construir;
III -Solo criado como instituto conseqüente a cisão direito de propriedade x direto de construir;
IV – Direito de superfície, outra conseqüência do direito de propriedade x direito de construir;
V - Conclusões;
VI -Bibliografia.

1 - INTRODUÇÃO

O presente trabalho é uma pequena mostragem da necessidade de solucionarmos os problemas urbanos, nas suas mais gritantes disparidades. Tendo como finalidade precípua, questionar conceitos seculares, para desmontá-los e adaptá-los à nossa realidade fática, bem como vislumbrarmos em novos e antigos institutos jurídicos, fontes alternativas de solução para os males das cidades.

No início, abordamos de forma sucinta a propriedade e seu evolver conceitual, delimitando o espaço da propriedade na atualidade, implicando numa real necessidade de romper com conceitos clássicos, adotando a postura de separação entre direito de propriedade e direito de construir.

Em segundo momento, abordamos o tema "solo criado" como instituto decorrente da sobredita cisão, explicitando seu conceito, sua aplicação em países estrangeiros, e finalmente a adoção do mesmo como mecanismo propulsor em combater os problemas urbanísticos brasileiros.

No terceiro momento teceremos breves comentários ao antigo instituto "Direito de Superfície", fazendo-se mister referida alusão, em virtude de ser mais um instituto concernente à separação do direito de construir do direito de propriedade, adotando-o na modernidade como mais uma forma posta para os urbanistas de solucionarem os problemas urbanos.

Outrossim, embora o prefalado instituto não tenha sido adotado pela legislação pátria, grandes são suas potencialidades, bem como a probabilidade de no presente momento ser inserido em nosso ordenamento.

Finalizamos nosso trabalho, tecendo algumas considerações sobre os temas, concluindo o necessário neste primeiro momento, para reputarmos a adoção dos referidos institutos, como fontes assecuratórias de um processo mais justo de utilização da propriedade urbana, principalmente no que tange ao cumprimento da função social da propriedade.

2 - POSSIBILIDADE DE SEPARAÇÃO ENTRE DIREITO DE PROPRIEDADE E DIREITO DE CONSTRUIR.

O direito de propriedade é mais um fruto de origem romana, inserido nas legislações ocidentais com o marco do liberalismo, codificado em momento de apogeu da propriedade enquanto direito subjetivo, impossível de sofrer limitações, restrições ou quaisquer vinculações ao caráter individualista absoluto da propriedade.

Destarte, percorreu a humanidade ao longo dos tempos, em eterna busca pelo poder advindo das propriedades, implantando- se com o egoísmo dos detentores das sobreditas, as malfadadas situações no presente enfrentadas.

Contudo, decorrente do mau uso da propriedade, padece hoje toda a humanidade pela prática abusiva de alguns em detrimento de outros, onde o individual tinha primazia sobre o coletivo.

Com o advento do Estado Social, houve por parte do poder público imposições de caráter administrativo, de natureza civil, ao direito de propriedade, eram as famosas limitações administrativas e restrições de vizinhança, que, com seu caráter meramente negativo, atuavam com o único propósito de coibir maus usos da propriedade, evitando não prejudicar o direito de outrem. Em razão disto, foram insuficientes para dirimir os problemas sociais e fazer cumprir a real finalidade da propriedade, qual seja a de cumprir com a sua "função social”.

Modernamente, mudou-se substancialmente o conceito de propriedade, por não ser condizente com a nova realidade. A propriedade larga seu caráter absolutista, e incorpora a feição de propriedade com o dever de cumprir com a sua função social.

Em verdade, o direito de propriedade pode ser visto como o instituto jurídico que maior transformação sofreu ao longo dos tempos. 1 Sendo na atualidade, felizmente colocado em prol da coletividade, preponderando o coletivo sobre o individual.

O direito de propriedade positivado.em nosso ordenamento no art. 524 do CC, choca-se frontalmente com a atual concepção de propriedade função-social, haja vista que no momento da codificação o individualismo estava no ápice, e havia um descaso para com o coletivo.

As mudanças sociais, e o envolver da sociedade modificaram tais posições, invertendo o que outrora encontrava-se no topo, para uma posição de total rebaixamento, e quem se encontrava embaixo merecedoramente erguido.

Mister, se faz ressaltar que a simples inversão e positivação da nova concepção de propriedade, não automatiza sua mudança, se não houver a ruptura com alguns conceitos clássicos implantados nas mentes dos proprietários, e principalmente dos nossos magistrados, que são os verdadeiros propulsores das mudanças, os verdadeiros produtores do direito.

Muitos dos nossos entraves são decorrentes dos conceitos de "domínio", transplantados do direito romano para o nosso, e que vigoram até o presente momento na sua estagnação, como se ao longo do tempo, em virtude da constante interação entre o mundo e o homem, o dinamismo e a evolução da sociedade pudessem continuar a serem tratados dentro dos mesmos moldes anteriormente colocados.

Urge, portanto, romper com tais conceitos, não podendo mais continuarem a subsistir em razão da nova ordem implantada. Por tais razões, o direito de construir, que era visto como prerrogativa inerente ao direito de propriedade, encontra na atualidade óbices, em virtude da necessidade de rompimento com o clássico, para dar vazão à função social da propriedade.

Destarte, não pode mais o direito de construir ser ilimitadamente exercido, pois não condiz com a realidade. Seu porte de atuação encontra-se condicionado à função social da propriedade. O direito de construir deixa de ser visto como prerrogativa inerente ao direito de propriedade, ou seja, deixa de ser ilimitadamente exercido, para encontrar sua moldura de atuação na função social da propriedade. Isto é mais que natural, haja vista que o próprio "direito de propriedade" não é mais um direito absoluto, nem tampouco poderá ser exercido ilimitadamente. Portanto, o direito de construir será igualmente limitado, não podendo mais ser irrestritamente exercido.

A cisão entre direito de propriedade e direito de construir é conseqüência lógica do novo conceito de propriedade, sendo operada no intuito de beneficiar toda a coletividade. Sendo importante ressaltar, que com tal cisão, não se trata de retirar do proprietário a fruição de seu direito para satisfazer suas necessidades, contudo o gozo de tal direito deverá harmonizar-se com os direitos (interesses) da coletividade, pois só deste modo não haverá confrontos e descumprimento ao preceituado em nossa Carta Magna.


3 - SOLO CRIADO COMO INSTITUTO CONSEQÜENTE À CISÃO DIREITO DE PROPRIEDADE X DIREITO DE CONSTRUIR


Com a necessária separação do direito de construir do direito de propriedade, surge o "solo criado", como algo novo que intenciona regular o uso do solo urbano de maneira mais benéfica, harmonizando as prerrogativas dos proprietários com os interesses coletivos, no intuito de ser mecanismo garantidor do cumprimento da função social da propriedade, assegurando a utilização da propriedade individualmente, sem dissociar-se do bem-estar geral da comunidade.

Como anteriormente mencionado, o mau uso das propriedades levaram às situações ora enfrentadas, e a realidade tomou - se tão opressora que toda a coletividade clama por soluções adequadas, para findarem com tamanho sofrimento. O exagerado crescimento das cidades, a fragmentação do solo urbano, o atropelo das necessidades mais básicas da coletividade introduziram a necessidade de um planejamento adequado das cidades, onde houvesse o ordenamento do uso e ocupação do solo urbano, fixação do volume de edifícios, densidade populacional, usos específicos, em fim, um plano tendente a organizar e harmonizar as cidades visando o bem-estar geral.

O plano urbanístico operacionaliza-se através da "legislação de zoneamento" que fixa os índices urbanísticos, dividindo a cidade em zonas, delimitando o fim (usos) específicos em cada zona.

No sentido de organizar as cidades, as legislações .urbanísticas estabelecem os índices urbanísticos, dentre os quais interessam ao trabalho em tela, os denominados de "taxa de ocupação" e "coeficiente de aproveitamento", que se referem respectivamente à área do terreno que será ocupada pela construção, e a relação entre a área total de construção e a área do lote.

Com a adoção dos supra-mencionados índices, embora no intuito de organizar e planejar melhor a' cidade, implanta-se concomitantemente uma desigualdade gritante, -entre os diversos proprietários do solo urbano. Isto decorre da valorização diversificada dos terrenos, em decorrência do estabelecido pelos índices, onde dependendo da localização dos referidos terrenos, poder-se-á ter um maior ou menor volume de construção.

Outrossim, sem nenhuma participação do proprietário, o mesmo auferirá os lucros da valorização de sua propriedade em detrimento de toda coletividade, sem ter contribuído em nada para a valorização da mesma. O solo urbano é valorizado devido a uma constante atuação do poder público e de alguns segmentos da coletividade que propulsionam a especulação e valorização em determinadas áreas, elevando desenfreadamente o preço dessas propriedades, proporcionando para os ditos proprietários, enormes possibilidades de gozar e dispor sem nenhuma contrapartida, daquilo que eles nada contribuíram para valorizar. Em razão disto, ocorre o rareamento do solo urbano, devido aos proprietários ficarem estagnados na espera da valorização de suas propriedades, conduzindo a um mau uso dessas propriedades, em virtude de não serem proporcionadas para toda coletividade, gerando cada vez mais a especulação imobiliária, dificultando o bem-estar geral, e o próprio cumprimento da função social da propriedade.

Por estas razões é que surge o "solo criado", como instituto conseqüente à necessária cisão entre direito de propriedade e direito de construir, surgindo como seu antecedente lógico a adoção do chamado "coeficiente único de aproveitamento", que age no intuito de nivelar, equiparar todos os proprietários, colocando-os em pé de igualdade, evitando o desequilíbrio no que tange ao volume de construção e conseqüente valorização dos respectivos terrenos. Através do "coeficiente único de aproveitamento", todos os proprietários são igualados no "direito de construir" em proporção direta aos tamanhos de seus terrenos. Em nenhum momento, cogitamos em arrebatar dos proprietários o seu "direito de construir", contudo, não deverá ser tal direito, visualizado como prerrogativa absoluta inerente à propriedade, podendo ser exercido ampla e ilimitadamente, como se a propriedade fosse um simples direito individual. Na atualidade o referido direito encontra-se emoldurado pelo dever de cumprir com sua função social, pois é a propriedade hoje um direito-dever. Esta bilateralidade é algo que jamais deveria não ter sido exercida, pois a todo direito corresponde um dever, não podendo a propriedade ser exceção. 2

A adoção do "coeficiente único de aproveitamento" não dispensa as regras de zoneamento, muito pelo contrário, pois cada vez mais se faz necessário um planejamento e ordenamento adequado do uso e ocupação do solo urbano, contudo, tais regras mostraram-se insuficientes para dirimir certos problemas sociais, bem como. garantir o cumprimento da função social da propriedade, decorrendo desta forma o surgimento de mais um mecanismo, necessário para fazer cumprir a função social da propriedade.

Os proprietários são equiparados, e são condicionados nas suas construções ao estabelecido pelo "coeficiente único de aproveitamento", ficando impedidos de construir irrestritamente, não gozando do direito de construir de igual forma. O proprietário que intencionar edificar mais, para auferir maiores lucros, terá de retomar algo para a coletividade, através da aquisição de direito de construir daquilo que ultrapassar ao permitido pelo coeficiente único, devendo portanto pagar pelo excesso construído, de forma a manter o equilíbrio e harmonia para com a coletividade.

Em virtude do avanço da tecnologia, da própria necessidade social, e da adoção do coeficiente único de aproveitamento, surge um novo instituto denominado “solo criado”, conseqüente lógico da separação do direito de propriedade do direito de construir, demonstrando que toda edificação excedente ao limite estabelecido pelo coeficiente único, tratar-se-á de solo criado.

Solo criado será pois, toda edificação para cima ou para baixo, em áreas adicionais de piso utilizável, construídos artificialmente, proporcionando a utilização maior do que a do terreno natural. Solo criado é toda codificação acima do coeficiente único, quer se trate de ocupar o espaço aéreo, quer ocupe o subsolo.

Através do solo criado, separamos o direito de construir do direito de propriedade, limitando o direito subjetivo do proprietário ao limite previsto no coeficiente único. Devendo o proprietário respeitá-la e cumpri-la, edificando livremente somente até o limite imposto, pagando conseqüentemente pelo excesso desejado, restituindo à coletividade o equilíbrio necessário por um maior adensamento. Estabelece o coeficiente único a moldura jurídica do direito de construir, bem como concede iguais possibilidades de edificações para os proprietários.

O solo criado engloba a necessária adoção do coeficiente único para limitar o direito de construir dos proprietários, impõe a vinculação a um sistema de zoneamento rigoroso, através de legislação rigorosa que concedam aos proprietários um mínimo de segurança e inalterabilidade nas condições de suas propriedades, necessária cisão entre direito de propriedade e direito de construir, com a real possibilidade de transferência do direito de construir, que pode ser transacionado através de qualquer negócio jurídico, assegurando equilíbrio e harmonia para a coletividade, gerando proporcionabilidade entre solos públicos e privados.


3.1 - Aplicação do solo criado em alguns países estrangeiros


O instituto vem sendo amplamente utilizado em alguns países da Europa, em virtude do problema da verticalização das cidades e o crescimento exagerado das mesmas terem conduzido a problemas que precisam mais que rapidamente serem freados.

Em verdade, em alguns países o rompimento com os conceitos mais arraigados sobre o domínio, já foi exercido, vigorando na atualidade uma ampla e total separação entre o direito de propriedade e o direito de construir.

Na França, foi estabelecido o chamado "teto legal de densidade" fixado pela Lei 1.328/75, onde o direito de construir subordina-se ao interesse coletivo. Sendo rigorosamente cobrado do beneficiário toda edificação superior a permitida pelo teto. O referido país visa reprimir o excesso de edificação, e concede para a coletividade a primazia de seus interesses.

Nos Estados Unidos, o instituto foi bastante utilizado, principalmente no plano de Chicago "Space adriff", que visava preservar o patrimônio histórico da cidade de Chicago, não permitindo edificações que alterassem os referidos patrimônios; por conseqüência, os proprietários, impossibilitados em edificar nas áreas delimitadas, eram remanejados para outras áreas, proporcionando nas mesmas edificações que não ocorreriam caso não fosse praticado tal instituto.

Na Itália é onde encontramos a mais nítida separação entre o direito de propriedade e o direito de construir, sendo rigorosa referida separação, limitando totalmente os direitos dos proprietários, ao estabelecido nos planos e legislações urbanísticas, havendo, dependendo do que for traçado nos planos, até imposição de edificar.

Embora nossa mostragem tenha sido breve, serve para constatarmos a adequação do instituto a cada realidade vivida, sendo utilizado pelos países que o adotam com o real propósito de minimizar com os problemas mais gritantes das cidades, e revelando-se sempre como um mecanismo posto as mãos dos administradores para agirem em prol da coletividade.


3.2 - Solo criado como alternativa para solucionar os problemas urbanos brasileiros


No Brasil, sem dúvida alguma, o instituto terá grande valia se for utilizado corretamente, e com fins especificamente urbanísticos.

A realidade brasileira é bastante conhecida por todos nós, e carece de soluções emergentes em razão da insustentabilidade das situações.

As cidades brasileiras, na sua grande maioria, devido à própria densidade demográfica do país, cresceram desordenadamente, umas enfrentando mais cedo os problemas urbanos e outras não. Contudo na atualidade, é geral a necessidade de se encontrarem soluções adequadas para as disparidades e crueldades sociais enfrentadas por todos nós.

A população cresce, a cidade cresce, e as propriedades são as mesmas, não oferecendo a mesma vazão de crescimento, a não ser em decorrência de um maior aproveitamento proporcionado pelos avanços tecnológicos, que acabaram gerando os problemas enfrentados.

O nosso país atravessa, no presente momento, uma crise muito forte em vários setores, principalmente nos setores econômico e político; este último tem gerado para a sociedade um verdadeiro descrédito nas instituições e uma falta de esperança de modificação do “status quo”.

A classe dominante impõe seus interesses e dirige o país segundo os seus propósitos, deixando ao esquecimento a grande maioria da população, no que tange à realização de suas mais primárias necessidades.

Os grandes proprietários urbanos, especularam e especulam: à vontade, construíram e constroem como bem lhe aprouverem, lucram insaciavelmente e esgotam todas as possibilidades de se exercer a famosa "justiça social".

As cidades incham em igualou até mesmo menor proporção ao inchaço das ,contas bancárias dos sobreditos, não há por parte destes nenhuma preocupação em restabelecer a harmonia e o equilíbrio das cidades, implantam o caos e o poder público que venha a arcar com o dever de conceder condições mínimas nas áreas mais adensadas. Isto verdadeiramente, é um abuso econômico, é um ultraje aos deveres de justiça, é uma agressão aos seres humanos, e um descaso para com os princípios basilares assegurados em nossa constituição.

Outrossim, o instituto do "solo criado" vem sendo utilizado em algumas de nossas cidades distorcidamente, erroneamente, tornando-se não uma arma de combate aos problemas urbanos, e sim mais um objeto posto à mão dos administradores, que infelizmente, em sua grande maioria, são manipulados e marionetados pelo poder econômico.

Desta forma, o instituto que já foi amplamente discutido, que possui um documento concreto e bem elaborado a nível doutrinário, que pode servir de supedâneo para a sua positivação, caminha na mesma lentidão que o "Direito Urbanístico" como um todo, face à legislação brasileira.

Em verdade, não só através da "Carta de Embu", mas de toda nossa realidade, seria fácil positivar o instituto do "solo criado", pois como anteriormente descrito, tal instituto é facilmente adaptável a cada realidade.

O Brasil só não deve utilizar o referido instituto, como mais uma forma de captação de recursos para os cofres públicos, pois a presente realidade não condiz com mais esta máscara, utilizar o instituto com fins tributários é francamente um enorme passo para que o instituto malogre, e com certeza tenha a desconfiança e a não aceitação por parte da população.

Estamos caminhando com muita lentidão em relação ao Direito Urbanístico, e por conseqüência o povo como um todo não têm uma consciência real dos problemas enfrentados, falta para os mesmos as verdadeiras noções, o verdadeiro conhecimento para o final que estamos caminhando, e são por esses motivos que a implantação do instituto com natureza tributária iria condicionar os indivíduos a não o praticarem, pois diante desta nova tributação, com certeza comprometeria o êxito do instituto.

A necessidade do instituto positivado decorre das disparidades vivenciadas por todos nós com relação às práticas urbanísticas, que tripudiam diante do social, e acabam por descumprir o mínimo necessário para garantir uma coexistência saudável a nível de cidade. Salutar se faz explicitar que não entendemos o instituto como algo que resolverá os problemas sociais, não é este o seu propósito, e deve o instituto ater-se a minimizar os problemas da cidade, sendo no conjunto um elemento que acabará por solucionar alguns problemas sociais, mesmo que de forma indireta.


4 - Direito de superfície, outra conseqüência da separação do Direito de Propriedade do Direito de Construir


O direto de superfície não é um instituto novo tal como o solo criado. Foi utilizado em Roma, quando o Estado concedia aos particulares terrenos para pequenas construções. Tratava o Estado de ficar com a propriedade do solo, concedendo o usus para os particulares.

O instituto caiu no esquecimento no momento da codificação da propriedade, em virtude de nada poder vincular ou limitar a sobredita. Na atualidade foi remodelado para ser reinserido em várias legislações como na Itália, Alemanha, Espanha, Suíça e outras. Todos esses países vislumbram no Direito de Superfície uma possibilidade para solucionar os problemas urbanos, e o readaptaram adequadamente a cada realidade, para que o mesmo atuasse solucionando os problemas.

O prefalado instituto é outro efeito lógico da cisão entre o direito de propriedade e o direito de construir, é um rompimento com as faculdades elementares do domínio, rompendo definitivamente com os conceitos clássicos que só obstacularizaram o cumprimento da função social da propriedade.

Ao ser constituído o instituto cinde as faculdades elementares do domínio, ficando o solo no poder do proprietário, e aparecendo a superfície completamente desvinculada no poder do superficiário.

O direito de superfície é um direito real sobre coisa alheia, onde o proprietário concede para outrem o direito de manter construção ou plantação por um determinado tempo desde que se cumpram todas as condições pactuadas no momento da avença. Devido ser o instituto um conseguinte lógico da cisão entre o direito de propriedade e o direito de construir, automaticamente separam-se a propriedade do solo da propriedade da superfície, rompem-se definitivamente com regra oriunda do conceito de domínio, que compreende que tudo que se encontra sob a superfície pertence ao solo. Criam-se duas figuras: a do "concedente" que é o proprietário do solo (dominas soli), e a do "concessionário" que detém a superfície, por isto denominado de superficiário.

O instituto é constituído tanto a nível gratuito como oneroso, sendo a regra o pagamento de uma pensão periódica, que é um ônus real, pago mensal ou anualmente. Os países que o adotam estipulam em regra um prazo para reversão da propriedade, oscilando em 70 e 99 anos, operando durante este período direitos completamente autônomos, transmitidos "inter-vivos" e "mortis-causa, sendo o superficiário respeitado em sua propriedade, valendo-se de todos os meios judiciais para defender sua superfície, enfim agindo livremente na parte que lhe cabe.

O direito de superfície não foi acolhido por nossa legislação, contudo encontra-se previsto no projeto de lei 775/83, nos arts. 21 e 28, que de certa forma é um começo, mesmo que insatisfatório.

No Brasil a adoção do referido instituto é dificultada principalmente pelos entraves que possuímos relacionados ao conceito de domínio.

Contudo, é o referido instituto bastante flexível e portanto fácil de ser convencionado e exercido pelos interessados em prol de toda a coletividade. Não há satisfação a nível de proprietário e superficiário somente toda a coletividade goza da utilização do instituto, em virtude de serem ofertadas propriedades que jamais seriam postas à disposição se não houvesse para os proprietários uma forma de valorizar sua propriedade a longo prazo, bem como a possibilidade para aqueles que não possuem propriedades bem localizadas, de usufruírem de forma menos onerosa do privilégio de tais áreas.

Embora o instituto não tenha sido adotado pela legislação pátria, serviu de base para a adoção da "concessão de direito real de uso", que se encontra positivada nos arts 7º e 8º do Decreto-lei nº 271/67. A concessão é muito assemelhada ao direito de superfície, pecando na sua positivação principalmente pela timidez de seus preceitos, bem como. pela falta de segurança concedida aos pretensos concessionários.


5 - Conclusões


5.1 - Não há mais como atrasar a fiel e ampla aplicação da função social da propriedade, é princípio que não deve ser esquecido em nenhum momento em decorrência da própria necessidade social.

5.2 - Separar o direito de propriedade do direito de construir é também outra necessidade, contudo, não deve ser visto como uma imposição, e sim como uma mudança necessária ao rompimento com os conceitos clássicos que não se adequam mais à nova realidade.

5.3 - Romper com a tradição, com o clássico, não ê tão simples quanto parece, nem tão rápido quanto se escreve, mais é con$tante e perseverante tarefa a ser praticada por todos nós, no intuito
de conquistar um possível amanhã.

5.4 - Tudo que puder ser feito no intuito de minimizar os problemas urbanos e sociais, ainda será pouco, portanto não se deve afastar nenhuma possibilidade antes de pelo menos tentar.

5.5 - Transplantar qualquer dos institutos urbanísticos aplicados na Europa para o Brasil, sem uma perfeita adequação à nossa realidade, de nada nos servirá, pois é chegada a hora de caminharmos por nós mesmos, errarmos se for preciso, contudo crescermos com os nossos erros.

5.6 - O solo criado é instituto viável à nossa realidade, desde que priorize os problemas urbanísticos, volte-se incisivamente para solucionar os mesmos. Utilizar o instituto da melhor forma, será não aplicar ao mesmo o caráter tributário, por motivos da falta de consciência da nossa própria população, no que tange aos problemas urbanísticos.

5.7 - O descrédito da nossa sociedade face a nossa classe política, não condiz de igual forma, na positivação do instituto com caracteres de tributo, pois haverá uma repulsão natural por parte da população, em virtude da não confiança do emprego do dinheiro por parte dos administradores em prol da coletividade.

5.8 - A adoção do coeficiente único de aproveitamento é medida realmente sábia, pois além de equiparar os proprietários do solo urbano, conduzirá a um fim da especulação e mau uso do solo, evitará o rareamento do mesmo, e proporcionará para a coletividade uma possibilidade de coexistência mais saudável.

5.9 - Todo começo é sempre difícil, mais o importante é começar. Vislumbramos no solo criado alternativa de solução para os problemas, mas não esquecer que sozinho não seria ele capaz de tudo resolver, pois nada resolve tudo, contudo mais vale algo fazer do que nada fazer.

5.10 - O Brasil precisa melhorar seu aprendizado com relação ao direito urbanístico, e desenvolvê-lo melhor. A demora já revela as más conseqüências. Mister, se faz o evolver de nossas consciências, e principalmente a tomada de consciência.

5.11 - O princípio maior é o da "função social da propriedade", tudo que se relacionar à propriedade deve estar atrelado ao dever de cumprir com a função social. Portanto, os proprietários não devem esquecer a sua obrigação positiva de agirem em prol da coletividade. Não há mais espaço para o individualismo, e portanto os limites impostos ao direito de construir são presentemente necessários.

5.12 - Toda ocupação do solo urbano interessa à coletividade, portanto todo excesso de construção deve ser pago pelo beneficiário, de forma a garantir o equilíbrio e harmonia social. Os valores pagos devem ser aplicados diretamente nas áreas mais adensadas. O importante é priorizar os problemas urbanos, solucionando-os na medida do possível.

5.13 - A falha de legislações federais para tratarem os temas urbanos, conduzem às disparidades enfrentadas, devendo mais que rapidamente os institutos abordados em tela, terem pauta na legislação federal. Isto para não incorrermos na prática distorcida dos mesmos, e não utilizarmos os referidos institutos com fins divergentes aos almejados.

5.14 - Tanto o "solo criado" como o "direito de superfície” podem ser utilizados para o combate dos problemas urbanos brasileiros, contudo devem moldar-se à nossa realidade, devem priorizar os problemas urbanos, devem ser juridicizados adequada e rigorosamente, para atender com satisfação aos clamores da coletividade.


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1 SOUZA, Junia Verna Ferreira de. Temas de Direitos Urbanístico 2. São Paulo, p. 148.

2 GUERRA, Maria Magnólia Lima. Aspectos Jurídicos do uso do Solo Urbano. Fortaleza, p.58.