A PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR FALHO: UMA ANÁLISE SOB A ÓTICA DOS PRINCÍPIOS CONTIDOS NA LEI N° 8.078/90

A PROTECTION OF FLAWED CONSUMER: AN ANALYSIS FROM THE PERSPECTIVE OF THE PRINCIPLES CONTAINED IN LAW No. 8,078 / 90

Valéria Moraes Lopes

Mestranda em Direito da Uni7. Especialista em Direito Processual Civil pela ESMEC/UFC. Procuradora do Município de Fortaleza.
E-mail:
valeriamladv@yahoo.com.br

Marcelo Sampaio Siqueira

Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da UFC. Bacharel em Ciências econômicas pela UNIFOR. Professor Titular do Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7) e do programa de Mestrado em Direito Privado. Procurador do Município de Fortaleza. Procurador-chefe da Procuradoria de Desenvolvimento e Pesquisa da Procuradoria-Geral do Município de Fortaleza. E-mail: marcelosampaiosiqueira@hotmail.com

Resumo: Com os olhos postos na Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), o presente artigo abordará a questão da proteção do consumidor falho, seja por motivo alheio a sua vontade ou não, colocando em debate a existência de parâmetros minimamente seguros para prevenir ou reparar eventuais lesões aos seus direitos, de forma a se evitar um tratamento excludente, desproporcional e desarrazoado, considerando o respeito à dignidade da pessoa como um dos princípios basilares da moldura protetiva consumerista. Busca-se responder qual a fundamentação para a defesa do consumidor falho. Adotou-se como metodologia, o método comparado, pesquisa bibliográfica de livros e artigos, bem como, análise de decisões judiciais. Como resultado da pesquisa defende-se a intervenção estatal na proteção do consumidor falho e a possibilidade de revisão da obrigação com base no artigo 6º do CDC e 104 do Código Civil.

Palavras-chave: Consumo. Consumidor falho. Princípios. Proteção.

Abstract: This article addresses the relation of protection of consumer not consumerist (flawed consumer), for reasons behond they control or by own, putting into question the existence of minimally safe parameters to prevent or repair possible damages to their rights, in order to avoid exclusionary, disproportionate and unreasonble treatment, considering respect for the dignity of people as one of the basic principles of the protective consumerist framework. The method used was the comparative method, bibliographic research of books and articles, as well as analysis of judicial decisions. As a result of the research, state intervention in the protection of failed consumers is defended and the possibility of revising the obligation based on article 6 of the CDC and 104 of the Civil Code.

Keywords: Consumption. Failed consumer. Principles. Protection.

1. Introdução

Ao partir de uma reflexão sobre o atual estágio da sociedade, cujo eixo se deslocou da produção de bens e serviços para o consumo em si, o consumismo passou a ser a tônica da vida moderna. O ato de consumir, no ápice de seu frenesi, alçou à condição de distintivo social, deixando à margem da sociedade aquele que se abstém de adotar o padrão desenfreado de consumo, inclusive, passando este a se revestir de caracteres mais refinados como se pode extrair do que se denomina atualmente de consumo sensorial ou de experiência.

O pilar da pesquisa concentra-se na Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), pois, o presente artigo abordará a questão da proteção do consumidor falho, seja por motivo alheio a sua vontade ou não, colocando em debate a existência de parâmetros minimamente seguros para prevenir ou reparar eventuais lesões aos seus direitos, de forma a se evitar um tratamento excludente, desproporcional e desarrazoado, considerando o respeito à dignidade da pessoa como um dos princípios basilares da moldura protetiva consumerista e o princípio da boa-fé objetiva. Em síntese, buscar-se-á responder sob qual fundamento ou princípios pode-se defender a figura do consumidor falho?

O método de pesquisa utilizado foi à metodologia dedutiva, pesquisa teórica e qualitativa com emprego de material bibliográfico e documental legal, inclusive de direito comparado. Foram ainda abordadas legislações essenciais, direitos fundamentais e princípios, a fim de elaborar uma boa análise para o esclarecimento do tema.

Por isso, o presente artigo será composto de três tópicos, visando no primeiro tratar das questões acerca da inaptidão para o consumo, com ênfase a figura do consumidor falho. Depois será analisado a Lei n° 8.078/90 e o alcance dos seus instrumentos protetivos considerando o princípio da boa-fé objetiva. Por fim será tradado a síntese, com citação das referências.

2. O consumidor falho

Extreme de dúvidas que a sociedade vive em torno do consumo. Além de ser força motriz da economia, o que por si só, já se afigura suficiente para explicar tal conjuntura, envolve outros fatores de relevância, tais como o político (poder dominante dos consumidores que alavancam o mercado) e social, dado o fator estigmatizante a incidir sobre o consumidor não proativo.O debate sobre o consumismo e suas consequências de há muito ganhou destaque no meio acadêmico.

Adotando como premissa que consumo é a relação pautada pela necessidade da aquisição do serviço ou produto e o consumismo implicaria no ato de consumir motivado por outras causas que não a necessidade, se analisará brevemente a figura do consumidor falho ou inapto para o consumo e como a sociedade enxerga esse tipo de consumidor.

Pensadores da pós-modernidade se debruçam sobre como se portam os consumidores numa realidade onde o ter representa o ser, centrando na análise de suas expectativas e frustrações neste contexto, visto que alguns obterão sucesso na exposição de sua auto mercadoria, traduzida pelo poder voraz de consumir o que deseja, difundindo a imagem exitosa e desejada pela sociedade e atendendo ao afã do mercado.     Do outro lado da moeda, há os que fracassam nesse trilhar consumista, passando a ser vistos como indivíduos inaptos, tornando-os um elemento indesejado na dinâmica mercadológica.

Bauman (2008, p. 157), a respeito do consumidor falho, pontua:

Numa sociedade de consumidores – um mundo que avalia qualquer pessoa e qualquer coisa por seu valor como mercadoria-, são pessoas sem valor de mercado; são homens e mulheres não comodificados, e seu fracasso em obter o status de mercadoria autêntica coincide com (na verdade deriva de) seu insucesso em se engajar numa atividade de consumo plenamente desenvolvida. São consumidores falhos, símbolos ambulantes dos desastres que aguardam os consumidores decadentes e do destino final de qualquer um que deixe de cumprir seus deveres de consumo.

Nesta categoria dos invisíveis (consumidores falhos), assoma uma questão de vulto. Aquele tipo de consumidor que se torna inapto por fatores alheios a sua vontade, tal como a ruína financeira motivada por intempéries (doença, perda da fonte de renda, pandemia, etc.); aqueloutro que, por sucumbir aos influxos do consumismo e não gerir racionalmente suas finanças, mergulha num ciclo de endividamento; e, ainda, sob outro viés e de forma cada vez mais rara, o indivíduo que procura consumir de forma mais consciente, não se dobrando aos apelos publicitários incentivadores do consumo excessivo e desenfreado, fugindo do ideal de felicidade propagado pela sociedade que apresenta o poder de consumir como sinal de sucesso do ser humano.

A propósito, Bauman (2008, p. 165) esclarece que:

Para ser eficaz, a tentação de consumir, de consumir mais, deve ser transmitida em todas as direções e dirigida indiscriminadamente a todos que se disponham a ouvir. No entanto, o número de pessoas capazes de ouvir é maior do que o daquelas que podem reagir da maneira pretendida pela mensagem sedutora. Os que não podem agir de acordo com os desejos induzidos são apresentados todos os dias ao olhar deslumbrado daqueles que podem. O consumo excessivo, aprendem eles, é sinal de sucesso, uma autoestrada que conduz ao aplauso público e à fama. Eles também aprendem que possuir e consumir certos objetos e praticar determinados estilos de vida são a condição necessária para a felicidade.

E esse ideal de felicidade vai se sofisticando quando passa a se falar do consumo de sensações ou de experiências. O indivíduo, no afã incessante de ser feliz, não se contenta mais com a simples aquisição de produto ou serviço como mero distintivo social. Adquirir uma nova experiência, uma nova sensação, enfim, vivenciar o diferente, passou a ser o objeto de desejo na sociedade hiper consumerista, a qual se reinventou das mais diversas formas.

Lipovetsky (2006, p.63), tratando do que considera o terceiro ciclo histórico das economias de consumo, delineia:

Já não se trata mais apenas de vender serviços, é preciso oferecer experiência vivida, o inesperado e o extraordinário capazes de causar emoção, ligação, afetos, sensações. Graças à fase III, a civilização do objeto foi substituída por uma ‘economia da experiência’, a dos lazeres e do espetáculo, do jogo, do turismo e da distração. É nesse contexto que o hiper consumidor busca menos a posse das coisas por si mesmas que a multiplicação das experiências, o prazer da experiência pela experiência, a embriaguez das sensações e das emoções novas: a felicidade das ‘pequenas aventuras” previamente estipuladas, sem risco nem inconveniente.

Com esse contorno individualista do novo ciclo de consumo, se alargou o espectro de consumidores, passando a atingir até aqueles que ainda resistiam ao consumo puramente ostentatório, já que se desvencilhar do consumo emocional parece tarefa quase impossível nos dias de hoje.

Acerca da nova roupagem do padrão de consumo, Lipovetsky (2006, p. 45) disseca:

Consumo emocional: a ideia vai de vento em popa entre os teóricos e atores do marketing que louvam os méritos dos processos que permitem fazer com que os consumidores vivam experiências afetivas, imaginárias e sensoriais. Esse posicionamento tem hoje o nome de marketing sensorial ou experiencial. Não é mais a hora da fria funcionalidade, mas da atratividade sensível e emocional. Diferentemente do marketing tradicional, que valorizava argumentos racionais e a dimensão funcional dos produtos, muitas marcas agora jogam a carta da sensorialidade e do afetivo, das ‘raízes’ e da nostalgia (o ‘retromarketing’). Outras dão ênfase aos mitos ou ao ludismo. Outras, ainda, fazem vibrar a corda sensível cidadã, ecológica ou animalista.

Observa-se, nessa dinâmica, que o consumidor que não puder atender ao apelo irresistível do mercado por insuficiência financeira, segundo o que se delineou, será visto como um ser à margem da sociedade e, a reboque dessa circunstância, emerge a preocupação com a sua proteção à luz do direito das relações de consumo.

Vale ressaltar, segundo Barbosa (2004, p.60), no tocante ao estudo do consumo no Brasil, que:

Em termos de produção acadêmica efetiva, trabalhos que tenham como tema o consumo é praticamente inexistente. Em pesquisa realizada por Lívia Barbosa e Laura Gomes em dois dos maiores centros de pós-graduação no Brasil – Instituto Universitário de Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Iuperj) e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Museu Nacional) – ambos com mais de 20 anos de existência e com o maior total de teses produzidas em relação aos demais centro semelhantes, foram registradas pouquíssimas teses que tangenciam ou abordam o consumo ou mesmo a sociedade brasileira como uma sociedade de consumo. Aliás, a determinados grupos sociais como, por exemplo, é o caso dos negros, lhes é negado inteiramente o status de consumidores. Apesar da existência de uma vasta bibliografia sobre negros no Brasil, esta enfatiza, basicamente, a dimensão de minoria discriminada e excluída deste grupo e a sua dimensão étnica e/ou religiosa.

Embora de 2004 para cá, muito tempo tenha transcorrido e haja uma profusão de estudos sobre consumo, não se tem visualizado no meio acadêmico muitos trabalhos envolvendo o consumidor falho na realidade brasileira, por isso o despertar do interesse em desenvolver algumas linhas sobre o assunto, tendo como norte um breve exame da Lei n° 8.078/90 para investigar se a sua normatização dispõe de instrumentos eficientes para prevenir ou reparar eventuais lesões aos direitos dos consumidores que se encontrarem inaptos ao consumo.

3. A Lei n° 8.078/90 e o alcance dos seus instrumentos protetivos

A Constituição Federal de 1988, a qual erigiu o princípio da dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, estatuiu, como desdobramento desse superprincípio, a defesa do consumidor como direito fundamental do cidadão.

Nesse diapasão, foi promulgada a Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990, visando disciplinar as relações de consumo, no intuito-mor de garantir o equilíbrio na relação fornecedor-consumidor. Considerando que a Política Nacional das Relações de Consumo visa atender às:“... necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo” (CDC, art. 4°). Em síntese, é viável a interpretação que o citado princípio alberga proteção ao consumidor falho tanto no espectro preventivo quanto no reparatório de eventuais lesões a seus direitos.

Para os fins deste trabalho, seguir-se-á a ordem principiológica adotada pelo CDC (art. 4°) no sentido de se investigar os parâmetros protetivos do consumidor falho. Conforme visto no tópico anterior, não há como se deixar de reconhecer a hipervulnerabilidade do consumidor falho no mercado consumerista, principalmente, se a sua inaptidão para o consumo decorrer de superendividamento, seja por fatos alheios a sua vontade ou por incapacidade de autogerir as finanças pessoais. O consumidor, nessa condição, se sujeitará a qualquer tipo de prática abusiva para obter um produto ou serviço básico para sua sobrevivência.

O Estado há de empreender ações enérgicas no sentido de proteger os consumidores da lógica perversa do mercado, porquanto este, ao mesmo tempo em que estimula o consumo, alija aquele que se vê destituído da capacidade de consumir. O marketing e a propaganda, nesse aspecto, se afiguram responsáveis por criarem a expectativa do consumo, ao passo que causam frustração aos consumidores falhos. A questão se revela intricada, conforme análise de Lipovetsky (2006, p. 194):

Confinadas em casa por falta de recursos financeiros, essas populações frequentemente passam longas horas diante da televisão: mais de 10% das pessoas da camada social mais destituída passam mais de cinco horas por dia diante da telinha. Hiperconsumidores de séries, de filmes, de jogos a dinheiro, os grupos econômicos muito frágeis são também, ao mesmo tempo, hiperconsumidores de publicidades comerciais. Nessas condições, os menos favorecidos são tanto mais excluídos do consumo quanto estão superexpostos às imagens e às mensagens mercantis. Na fase III, os ‘have nots’ não se sentem pobres apenas porque subconsomem bens e lazeres, mas também porque superconsomem as imagens da felicidade mercantil.

Esse sentimento de infelicidade, de exclusão social, assoma importância haja vista ter impacto na questão da violência em sociedade, como também vislumbra Lipovetsky (2006, p. 192):

De um lado, as normas e os valores consumistas são maciçamente interiorizados pelos jovens dos grandes conjuntos habitacionais de subúrbio. Do outro, a vida precária e a pobreza impedem que se participe plenamente das atividades de consumo e lazeres mercantis. Dessa contradição resulta um surto de sentimentos de exclusão e de frustração, e ao mesmo tempo comportamentos de tipo delinquente. Não conhecendo mais que o fracasso escolar e a precariedade, os jovens dos bairros ‘difíceis’ se afastam do trabalho, tendem a justificar a pequena delinquência, o roubo e os ‘truques’ como meios fáceis de obter dinheiro e participar dos modos de vida dominantes martelados pelas mídias.

Assim, seja por ‘iniciativa direta; por incentivos à criação e desenvolvimento de associações representativas; pela presença do Estado no mercado de consumo; ou, ainda, pela garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho’, as ações governamentais devem estar voltadas com especial atenção à proteção efetiva do consumidor falho (CDC, art. 4°) em todas as fases do consumo: pré-contratual, contratual e pós-contratual.

Observa-se que até por uma questão de lealdade, situações devem ser reguladas pelo Estado no sentido de proteger o consumidor vulnerável, não só por sua suposta condição de hipossuficiência, mas principalmente para evitar propagandas que ofereçam produtos àqueles que possuam características do agora denominado consumidor falho. A norma do artigo 422, conforme visto no parágrafo anterior, afirma que o princípio da boa-fé objetiva[1], a boa-fé objetiva deve ser observadas em todas as fases do negócio jurídico, até nas tratativas iniciais, quando se está no momento do oferecimento.

Um aspecto interessante a se relatar neste artigo é que fornecedores lançam produtos e serviços, que com o passar do tempo tornam-se logo obsoleto, levando ao consumidor contratar produto mais novo. Isto é, em relação à ‘garantia dos produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho’, quando se cuida de durabilidade, não há como deixar de trazer a lume a tormentosa questão da obsolescência programada dos produtos, por sua prática ocasionar reflexo direto no círculo vicioso de endividamento do consumidor. Portanto, difícil se falar em garantia da durabilidade do produto quando este já ingressa no mercado com a certidão de óbito aposta. A prática, já sedimentada no mercado, mas que ainda foge dos holofotes da informação clara e precisa, produz efeitos deletérios porque induz a uma aquisição desmedida e em menor espaço temporal, geralmente, não antevista pelo consumidor. Nessa linha de pensar, Moraes (2015, p. 63) expressa:

Atualmente, a obsolescência planejada, mesmo que de forma não explícita, é amplamente incorporada ao processo de desenvolvimento dos produtos, no qual é decidido como e quando um bem de consumo se tornará ‘obsoleto’. Assim, ‘a data de morte’ de um produto já é previamente definida, tanto pelo setor de engenharia de produção como pelo setor de desing, antes mesmo de sua distribuição no mercado.

A obsolescência programada não deixa de ser, para além de fruto da sociedade econômica desenvolvimentista, um reflexo social do que se tem entendido do elemento tempo na pós-modernidade, conhecida como a sociedade do efêmero, do instantâneo, onde tudo é o instante, perdendo seu valor num piscar de olhos. Sibilia (2008, p. 125) observa:

Todas essas mutações estão se refletindo em nossa forma de perceber o tempo passado, e no papel que ele desempenha na construção de si. Em primeiro lugar, essa sensação de vivermos em um presente inflado, congelado, onipresente e constantemente presentificado promove a vivência do instante e conspira contra as tentativas de dar sentido à duração. Retomando aquelas metáforas arqueológicas freudianas: mais do que viver na alastrada temporalidade de Roma, hoje nos instalamos na espasmódica temporalidade de Pompéia.

O art. 4° do CDC, além da proteção ao consumidor falho, conforme defendido, também em seu inciso III, adota o princípio da harmonização dos interesses em conformidade com os princípios constitucionais da ordem econômica e dos princípios da boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores. Logo, os produtos duráveis e disponibilizados com prazo de validade programado, sem prévia ciência aos adquirentes, constituem afronta não só aos consumidores falhos, que são os mais suscetíveis a esta artimanha, mais a todos os adquirentes destes produtos ou serviços[2].

Extrai-se que há de se empreender medidas tendentes a garantir que se harmonizem os interesses dos consumidores falhos nas relações de consumo, ao invés de excluí-los do mercado, estabelecendo medidas protetivas em sintonia com os princípios constitucionais fundantes da ordem econômica (defesa do consumidor e redução das desigualdades regionais e sociais), sem descurar do princípio maior da boa-fé que deve nortear a relação entre consumidor e fornecedor.

No pertinente à ‘educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo’, se revela importante instituir na grade escolar como disciplina obrigatória a educação financeira. Instruir crianças e jovens a serem responsáveis com a gestão do próprio dinheiro, conscientizando que o consumo tem uma limitação fática intransponível: a possibilidade de recurso para aquisição de bens ou serviços, a fim de evitar o superendividamento.

O direito à informação, por sua vez, é um direito fundamental e basilar para o equilíbrio das relações consumeristas. Nos dizeres de Borges (2011):

Cabe ressaltar que o direito à informação é uma das formas de proteção da vulnerabilidade do consumidor, disposta no artigo 4º, I, do Código de Defesa do Consumidor.

É ônus do fornecedor demonstrar que a informação foi prestada de forma clara e adequada.

Aliás, o código traz a obrigatoriedade da informação clara e adequada. Como dentro da relação de consumo a informação gera várias consequências e valores, a informação deve ser ‘qualificada’. A informação deve ser clara, precisa, compreensível e adequada, ou seja, esta não deve ter como parâmetro o ‘homem médio’, mas o consumidor de classe mais inferior, sempre atendendo os critérios de racionalidade e proporcionalidade.

Sob outro viés, a judicialização dos litígios envolvendo os consumidores falhos deve ser pensada em segundo plano, visto que os conflitos desse gênero, por suas peculiaridades, encontram ambiência mais adequada por meio da adoção de meios alternativos de solução, principalmente, na etapa preventiva.

Um instrumento de relevância, mas deixado no esquecimento, é o da convenção coletiva de consumo (CDC, art. 107), já que visa preencher um nicho no espaço político de deliberação nas relações consumeristas, dando voz e vez aos mais diversos agentes que intervém nessa dinâmica, inclusive, aos invisíveis (consumidores falhos).

Verbicaro (2017) expõe:

É preciso voltar a falar sobre a convenção coletiva, resgatando sua finalidade estratégica de corrigir, no plano coletivo, algumas das muitas vicissitudes de uma sociedade doente pelo consumismo irresponsável e pela proliferação de práticas empresárias abusivas levadas a efeito sob a lógica de que agir na infralegalidade compensa economicamente, sobretudo porque os danos ocorrem no atacado e as condenações, que dependem do intrincado e ritualizado labirinto forense, são entregues no varejo e em valores cada vez mais aviltantes, banalizando a tutela de bens jurídicos relevantes do consumidor.

[...]

Em outras palavras, a convenção coletiva de consumo, prevista no artigo 107 do CDC, teria o papel de formatar juridicamente o debate político qualificado entre consumidores e fornecedores com a responsável mediação do Estado, produzindo um círculo virtuoso no monitoramento preventivo dos conflitos de consumo e envolvimento cívico do indivíduo na construção de padrões de comportamento desejáveis para o aprimoramento das relações de consumo”.

O CDC ainda adota como princípio a ‘coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, inclusive a concorrência desleal e utilização indevida de inventos e criações industriais das marcas e nomes comerciais e signos distintivos, que possam causar prejuízos aos consumidores’, o qual se afigura de suma importância, pois dá substrato à aplicação dos instrumentos preventivos e reparatórios previstos no microssistema consumerista para proteger, especialmente, os consumidores falhos.

Defendeu-se até a presente fase deste trabalho o intervencionismo estatal, com base no artigo 4º do CDC, que segundo Marques (2016, 271) deve atuar não só na fiscalização e pela fixação de quotas ou preços mínimos, mas principalmente na edição de leis limitadoras do poder de autorregular determinadas cláusulas ou até determinar o conteúdo de certos contratos.

Se atendo ao rol dos direitos básicos do consumidor (CDC, art. 6º), se poderia enumerar diversas práticas que geram prejuízo, a começar pelo fornecimento de produtos e serviços perigosos ou nocivos com preços módicos objetivando atingir os consumidores que não reúnem condições financeiras para exercer o direito de escolha, violando, de conseguinte, o direito deles a vida, saúde e segurança.

Neste aspecto, assoma importantíssimo o papel da “educação e divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações”, pois o resguardo do direito de escolha e a proibição de medidas discriminatórias são fundamentais à dignidade da pessoa, cabendo ao Estado efetivar políticas públicas voltadas à recuperação da aptidão ao consumo de forma consciente e responsável.

A “proteção contra a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento de produtos e serviços” é outro flanco poderoso para garantir a incolumidade física e emocional do consumidor, principalmente, do hipervulnerável, como é o caso do consumidor falho.

A garantia da possibilidade de “modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” deve ser ampla e de forma meticulosa porque, considerando o risco de inadimplência, os fornecedores, em especial, as instituições financeiras, costumam abusar na fixação de juros extorsivos e estipulação de obrigações leoninas, às quais se sujeitam o consumidor falho por não lhe restar outra alternativa.

Não resta dúvida de que o consumidor falho, considerando o tipo do artigo 4º do CDC e sua exposição indevida a uma propaganda maliciosa, por exemplo, pode levá-lo a discutir cláusulas do negócio ou até a rescisão com base no artigo 6º, inciso V.

A previsão da “efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos” é a pedra de toque do microssistema consumerista, pois de nada serviria toda a principiologia e o espectro garantidor dos direitos básicos do consumidor, caso o sistema não propiciasse mecanismos múltiplos e eficazes para atuarem no âmbito preventivo e ressarcitório dos danos perpetrados contra o consumidor, sejam estes na esfera individual ou coletiva.

O “acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos ou difusos, assegurada a proteção Jurídica, administrativa e técnica aos necessitados” é outra garantia cara ao cidadão de modo a viabilizar a plena e efetiva defesa de seus direitos, ressaltando-se, neste tocante, a valorosa e indispensável assistência jurídica prestada pela Defensoria Pública em prol do consumidor hipossuficiente financeiramente, bem como a importância do dever imposto ao Estado de disponibilizar o aparato administrativo e judicial para a salvaguarda dos direitos básicos do consumidor de forma a equilibrar as relações de consumo.

A “facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências” é de fundamental importância para garantir a paridade de armas no litígio, pois o consumidor, principalmente o falho, já parte em desvantagem nas relações de consumo por não ter o conhecimento técnico do processo de idealização e fabricação do produto e dos meandros inerentes à atividade do fornecedor de produto e/ou serviço. Via de regra, são consumidores litigando contra grandes e poderosos fornecedores, numa visível e indiscutível situação de desigualdade, tanto técnica quanto financeiramente.

Essa gama de direitos prevista no CDC, longe de qualificá-lo como diploma legal paternalista, denota um sistema inteligente e dotado de mecanismos adaptáveis à proteção de toda espécie de consumidor, na exata medida de sua necessidade, de modo a buscar o máximo equilíbrio nas relações consumeristas. Em estudo comparado, Rehbein (2017) arremata:

A relação da autonomia privada com o paternalismo no Direito do Consumidor também foi objeto de análise pelo professor alemão Stefan Grundmann, especialmente no contexto da União Europeia. Para o autor, a proteção padrão para toda a categoria de consumidores deve se limitar aquela que lhe permita a tomada de decisões autônomas e informadas; já a proteção mais severa e paternalista deve ser direcionada àqueles em situação de especial vulnerabilidade. Parte da identificação, portanto, da heterogeneidade dos interesses entre os consumidores europeus. Ao confrontar os argumentos do autor com a realidade brasileira, é possível identificar que o nosso microssistema já prevê a proteção escalonada defendida por ele. Princípios como o da informação, da transparência e da proteção da confiança protegem o consumidor enquanto categoria e, se observados pelos fornecedores, estariam aptos a assegurar a tomada de decisões autônomas. A proteção ao hipervulnerável está presente na Lei 8.078/90, assim como uma maior preocupação com as chamadas perdas existenciais (fato do produto ou serviço). Verifica-se, assim, que a análise de Grundmann também corrobora a constatação de que a proteção consumerista no Brasil não é paternalista.

Logo, não são só as características dos consumidores falhos devem ser estudadas pelo aplicador do direto quando se deparar com pedido de revisão obrigacional, mas também se o produto ou serviço ofertado, face suas particularidades, enganam os hipossuficientes, sendo os consumidores tratados neste artigo mais susceptíveis ao engano promovido pelos fornecedores. Por exemplo, a oferta de produtos com “prazo de validade” definido pelo fabricante já em seu lançamento constitui prática de ato doloso, cuja anulabilidade é plenamente prevista no ordenamento civil brasileiro, seja CDC, seja no próprio Código Civil (artigo 104 e 145).

4. Considerações finais

No contexto da lógica do mercado e da sociedade de consumo, não consumir significa uma anomalia e o indivíduo que se encontra inapto para tanto está sujeito a danos nos mais variados aspectos. Do ponto de vista social, é considerado um estorvo, um desvio do padrão desejável de consumidor. No aspecto econômico, é tido como um elemento que obstaculiza a dinâmica mercadológica por não injetar recursos por meio da aquisição regular de bens e serviços.

Ante tal quadro de hipervulnerabilidade, o robustecimento da proteção jurídica do consumidor falho é medida que se impõe para garantir o equilíbrio das relações consumeristas das quais participar. Nesta linha de pensar, analisou-se a linha principiológica adotada pela Lei n° 8.078/90, no sentido de se averiguar se os mecanismos e instrumentos previstos se afiguram suficientes para resguardar os direitos do consumidor inapto.

O consumidor falho constitui uma realidade e as suas características aliadas a existência de oferta de produtos e serviços, cuja propaganda mira exatamente essas pessoas, deve ser objeto de preocupação do Estado e de pedido de anulação do negócio jurídico com base nos princípios do CDC e expostos neste artigo.

E chegou-se à conclusão, por meio da articulação empreendida com base nessa principiologia, que se pode vislumbrar uma proteção capaz de atingir o espectro de consumidores falhos, considerando, dentre outros fundamentos, que a disciplina da relação jurídica entre consumidor e fornecedor é subjetivada, ou seja, o viés é o consumidor, partindo da premissa da sua vulnerabilidade fática, e não de caráter objetivo como a regulação do consumo ou do mercado.

A defesa do consumidor pode e deve ser realizada por Estado, podendo o prejudicado requerer a anulação do negócio jurídicos com base na lei consumerista, como subsidiariamente no Código Civil.

Referências

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BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

BORGES, Flavia O. L. A venda casada e o superendividamento decorrente do consumo emocional. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Franca, v. 4, n. 1, maio 2011. Disponível em: https://www.revista.direitofranca.br/index.php/refdf/article/view/122. Acesso em: 13 dez. 2018.

CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Lisboa: Almedina, 1984.

LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de defesa do consumidor. 5. ed. São Paulo: RT, 2016.

MORAES, Kamila G. de. Obsolescência planejada e Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015, p. 63.

REHBEIN, Veridiana M. Soluções consensuais nas relações de consumo. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, ano 26, vol. 112, p. 397-433, jul./ago. 2017.

SIBILIA, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

VERBICARO, Dennis. A convenção coletiva de consumo como instrumento catalisador do debate político qualificado na relação de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, ano 26, vol. 111, p. 121-147, maio/jun. 2017.

 



[1]Cordeiro, ao tratar da Redução da dogmática da Boa-fé, conclui: “Em termos positivos, surge, como conteúdo material da boa-fé, o princípio da confiança; este teve uma evolução histórica e doutrinária conturbada, vindo a aproximar-se da boa fé”. Em passagem anterior defende a tese de que a boa-fé não se confunde com a equidade, “embora tenha, com ela, comunicações extensivas e intensivas” (CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Lisboa: Almedina, 1984. p. 1298).

 

[2]Marques (2016, 267) afirma: Segundo dispõe o art. 4º, III, do CDC, todo o esforço do Estado ao regular os contratos de consumo deve ser no sentido de “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico...”. Poderíamos afirmar genericamente que a boa-fé é o princípio máximo orientador do CDC. Mister, porém, destacar igualmente o princípio da transparência (art. 4.º, caput), o qual não deixa de ser um reflexo da boa-fé exigida aos agentes contratuais.