LEI ESTADUAL DE CONCESSÕES E LEGISLAÇÃO FEDERAL SUPERVENIENTE

ADILSON ABREU DALLARI

Professor Titular de Direito Administrativo da Pontifícia | Universidade Católica de São Paulo

No art. 1° da Constituição Federal está afirmado o princípio federativo. É como se o legislador constituinte quisesse advertir a todo e qualquer intérprete do texto constitucional que tudo quanto em seguida se prescreve está subordinado a tal princípio, que,obviamente,derrama sua eficácia sobre todas as normas de hierarquia inferior. Toda e qualquer norma jurídica disciplinadora de relações intergovernamentais deve ser interpretada em consonância com o princípio federativo.

O princípio, por sua importância, serve exatamente para orientar a interpretação e a aplicação de toda e qualquer norma.Na ausência de norma específica,o princípio condiciona ou determina., diretamente, a atuação do agente da administração.

Seja permitido transcrever aqui alguns apontamentos feitos por GERALDO ATALIBA, em sua notável monografia sobre "República e Constituição" (RT,São Paulo, 1985,págs. 5 e segs.)a respeito do valor da noção de princípio:

"Os princípios são as linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os rumos a seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos).

Eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. Por estas não podem ser contrariados; têm que ser prestigiados até as últimas consequências.

A relevância dos princípios constitucionais e sua supremacia, sobre as normas ordinárias ou até mesmo constitucionais foi admiravelmente apreendida e exposta por Agustin Gordillo,com as seguintes luminares palavras: "Diremos entonces que los princípios de derecho público contenidos en la Constitución son normas jurídicas, pero no sólo esomientras que la norma es un marco dentro del cual existe una cierta liberdad, el princípio tiene sustancia integral.
La simples norma constitucional regula el procedimento por el que son producidas las demás normas inferiores(ley reglamento,sentencia) y eventualmente su contenido: pero esa determinación nunca es completa, ya que la norma superior no puede ligar en todo sentido y en toda dirección el acto por el cual es ejecutada; el princípio, en cambio, determina en forma integral cual ha de ser la sustancia del acto por el cual se lo ejecuta. La norma es limite, el princípio es limite y contenido. La norma da a la ley facultad de interpretar la o aplicarla em más de um .sentido, y el acto administrativo la facultad de interpretar la ley en más de un sentido: pero el princípio estabelece una diréccion estimativa, un sentido axiológico, de valoración, de espíritu. El princípio, exige que tanto la ley como el acto administrativo respeten sus limites y además tengan su mismo contenido, sigan su misma direccion realicen su mismo espíritu. Pero aún mas, esos contenidos básicos de la Constitución rigen toda la vida comunitaria.y no sólo actos a que más directamente se refieren o a las situaciones que más expresamente contemplan "(Introducción al Derecho Administrativo , 2° ed , Abeledo Perrot, 1966, pp. 176 e 177).

Daí o sublinhar Celso Antônio (RDP 15/283) que "qualquer disposição, qualquer regra jurídica... para ser constitucional, necessita estar afinada com o princípio... realizar seu espírito, atender á sua direção estimativa, coincidir com seu sentido axiológico, expressar seu conteúdo.Não se pode entender corretamente uma norma constitucional sem atenção aos princípios consagrados na Constituição e não se pode tolerar uma lei que fira um princípio adotado na Carta Magna. Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos . É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. "

Ora, se nem mesmo o legislador pode criar, extinguir ou modificar direitos (por lei) contrariando um princípio, com muito maior razão os agentes públicos, no momento da produção de específicos atos administrativos, devem estar atentos para os valores contidos e, especialmente, para as finalidades apontadas nos princípios.

A posição sobranceira do princípio federativo determina um certo cuidado ao se examinar o art.175 da Constituição Federal. Com efeito,esse artigo afirma que as concessões e permissões serão feitas "na forma da lei'".Num primeiro lance de olhos,poder-se-ia entender que tal"lei". deveria ser federal, estadual ou municipal, conforme o caso, e jamais uma lei única, editada pela União e de observância obrigatória também pelos Estados e Municípios.

Este, aliás, foi o entendimento dado por TOSHIO MUKAI, em seu "Concessões e Permissões de Serviços Públicos" (Saraiva, 1995, pag. 7):

"Quando o parágrafo único do art.175 referiu-se á Lei que disciplinaria o assunto, evidentemente, ao intérprete cabe visualizá-la no contexto do sistema federativo que está insculpido no Texto Constitucional. Destarte, referida Lei não pode ser senão uma lei própria e privativa de cada ente federativo; jamais poderia ser uma Lei Nacional, que não está autorizada no texto (parágrafo único do art. 175). "

Entretanto, observando o inciso I, do parágrafo único, desse referido artigo, nota-se que o texto constitucional se refere à concessão e à permissão como formas ou modalidades de contratos administrativos. Diante disso, numa interpretação sistemática, essa primeira impressão deve ser afastada, pois, conforme o disposto no art. 22. XXVII, da Constituição Federal, compete privativamente à União legislar sobre "normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para a administração pública...".

Compete, portanto, à União editar normas gerais sobre concessões e permissões, sendo, em princípio, constitucional a Lei n° 8.987, de 13/02/95.
É oportuno recordar aqui o que já dissemos em nossos "Aspectos Jurídicos da Licitação " (Editora Saraiva, 3a edição, 1992, pág. 12 a 13):

"Mas é preciso deixar bem claro que o que compete á União é expedir. normas gerais sobre licitações e contratações. E muito difícil dizer o que é norma geral. vários autores tentaram dizer o que é norma geral, mas é realmente muito difícil conceituá-la; é mais fácil chegar á norma geral pelo caminho inverso, dizendo o que não é norma geral. Não é norma geral aquela que corresponder a uma especificação; a um detalhamento. Portanto, norma geral será aquela que cuida de determinada matéria de maneira ampla. Norma geral é aquela que comporta uma aplicação uniforme pela União, Estado e Município; norma geral é aquela que não é completa em si mesma, mas exige uma complementação. Existem, portanto, para a identificação do que seja norma geral, algumas pistas, alguns indicadores.

Louvável e antiga abordagem doutrinária sobre a questão das normas gerais feita por Carvalho Pinto, em estudo específico sobre normas gerais de direito financeiro, cujas conclusões são as seguintes: "a) não são normas gerais as que objetivem especialmente uma ou algumas dentre as várias pessoas congêneres de direito público, participantes de determinadas relações jurídicas; b) não são normas gerais as que visem, particularizadamente, determinadas situações ou institutos jurídicos com exclusão de outros, da mesma condição ou espécie; c) não são normas gerais as que se afastem dos aspectos fundamentais ou básicos, descendo a pormenores ou detalhes ".

"Mais recentemente o problema da conceituação e identificação das normas gerais foi enfrentado por Diogo de Figueiredo Moreira Neto, num formidável e completíssimo estudo sobre a distribuição de competências legislativas na Constituição Federal de 1988, enfocando especialmente a capacidade para expedir normas gerais como exercício da competência concorrente limitada, no qual, ao final, sinteticamente, afirma que normas gerais "são declarações principiológicas que cabe à União editar, no uso de sua competência concorrente limitada, restrita ao estabelecimento de diretrizes nacionais sobre certos assuntos, que deverão ser respeitados pelos Estados-membros na feitura de suas respectivas legislações, através de normas específicas e particularizantes que as detalharão, de modo que possam ser aplicadas, direta e imediatamente, a relações e situações concretas e que se destinam, em seus respectivos âmbitos?políticos ". (Veja?se, Revista de Informação Legislativa 100/ 127. "Competência concorrente limitada. O problema da conceituação das normas gerais").

É fora de qualquer dúvida que a União não pode impor aos Estados e Municípios senão os dispositivos indiscutivelmente comportáveis pelo conceito de norma geral.

Atento a isto, o art. 1 ° da Lei n° 8.987/95 diz que as concessões e permissões se regerão pelas normas gerais nela contidas, pelas normas legais específicas pertinentes e pelas cláusulas dos respectivos contratos.

Fica perfeitamente claro que essa Lei não pretendeu esgotar a matéria, mas ao contrário, reconheceu a necessidade de complementação por parte da legislação ordinária específica, editada no uso de competência própria de cada pessoa jurídica de capacidade política.

Tal entendimento fica ainda mais claro quando se observa que o parágrafo único desse artigo menciona que "A união, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão a revisão e as adaptações necessárias de sua legislação às prescrições desta Lei..."Ou seja; haverá legislações específicas, que poderão disciplinar aspectos das concessões e permissões de maneira diversa, segundo suas peculiaridades, salvo naquilo que for entendido como norma geral e, nessa condição, de observância obrigatória.

No Estado de São Paulo, quando da promulgação da Lei n° 8.987/95, já vigorava a Lei n° 7.835, de 08/05/92, dispondo, exatamente, sobre o regime de concessões e permissões. Tal lei permanece em vigor, devendo ser fielmente cumprida, excepcionando-se apenas eventuais dispositivos que se choquem frontalmente com as normas gerais editadas pela União.

Note-se, entretanto, que nem todas as normas editadas pela União em matéria de concessões e permissões são normas gerais. Algumas,sim, são normas gerais, de abrangência nacional; outras, porém, são específicas, abrangendo apenas o aparelhamento administrativo federal. É forçoso que se faça uma distinção entre normas nacionais e normas federais, não obstante a dificuldade dessa tarefa.

Isso já foi bastante salientado por Geraldo Ataliba (Estudos e Pareceres de Direito Tributário, volume 3, RT, São Paulo, 1980, pág. 16 e 17 ) com o conhecido vigor de sua argumentação:

"Com efeito, ao Congresso Nacional incumbe editar leis nacionais e leis federais, cumulativamente. Embora sejam estas essencialmente distintas e inconfundíveis, dotadas que são de naturezas jurídicas diversas - o que as coloca em campos diferentes - difícil parece, muita vez, discerni-las, principalmente em razão da circunstância de formalmente se assemelharem e, sobretudo, originarem?se, por processos semelhantes, do mesmo órgão.

Há leis federais (ou da União), estaduais (ou dos Estados) e municipais (ou dos Municípios) dirigidas ás pessoas na qualidade de administrados da União, dos Estados e dos Municípios e emendas dos legislativos, dessas entidades políticas, respectivamente. E há leis nacionais, leis brasileiras, voltadas para todos os brasileiros, indistintamente, abstração feita da circunstância de serem eles súditos desta ou daquela pessoa política. É que o Estado Federal brasileiro é a pessoa de direito público internacional, categoria esta que nenhuma relação guarda com as eventuais divisões políticas internas.

É o Brasil ? Estado-Brasileiro ? pessoa soberana que figura, ao lado dos demais estados do mundo, no palco do direito das gentes. É a perspectiva "exterior "ou de "efeitos exteriores " da personalidade jurídica do Brasil (Estado brasileiro).

Por outro lado, o Estado Federal brasileiro é formado pela aliança, pela união dos diversos estados federados. Tem portanto, os mesmo súditos e o mesmo território, sendo que o instrumento do pacto federal - do tratado de união "- é, concomitantemente, por exigência lógica, a constituição da nova pessoa assim nascida, o Estado Federal, o Brasil, como sublinhou Victor Nunes Leal.

Esta nova pessoa, criada pela reunião das diversas pessoas federadas, tem atribuições, competências e finalidades próprias, distintas das dos entes que a compõem. Daí a necessidade de ser dotada de órgãos e instrumentos capazes de habilitá?la ao desempenho de seu munus constitucional próprio, que se não confunde com o das demais.

Deve-se, nela, entretanto, distinguir a feição ou o aspecto nacional do aspecto federal?em oposição a federado. Seus órgãos são alternativa ou cumulativamente nacionais (vale dizer, brasileiro) e federais (vale dizer, da União), pessoa que se não confunde com estado federado algum. Seus instrumentos, entre os quais a lei, não são, concomitantemente, nacionais e federais. São-no exclusivamente uma ou outra coisa.

A grande dificuldade, pois, demora-se exatamente aqui: o órgão é o mesmo - no que interessa ao nosso tema, o Congresso - e o fruto de sua ação formalmente idêntico, embora substancialmente tão diverso: lei federal e lei nacional. Leis que o Congresso edita enquanto órgão do Brasil - Estado Federal - leis da União, perspectiva de direitos interno do Estado Federal. "

O Congresso Nacional aprova é o Presidente da República sanciona e promulga, em uma única seqüência numérica, leis nacionais e leis meramente federais, ou seja , leis de observância obrigatória por todos os jurisdicionados do Estado brasileiro (inclusive União, Estados federados e Municípios) e leis que condicionam apenas e tão somente a atuação dos órgãos e entidades integrantes da administração pública federal. Ao intérprete e aplicador cabe a, às vezes difícil, tarefa de distinguir uma coisa da outra.

Registre-se que a legislação estadual e municipal não deve vassalagem à legislação meramente federal, mas, sim, apenas às leis nacionais e, em matéria de licitações e contratações, inclusive concessões e permissões, apenas às normas gerais das leis nacionais.

Antes que se façam as revisões e adaptações das leis estaduais e municipais anteriormente vigentes (para conformá?las com a Lei n° 8.987/95) é indubitável que elas permanecem em vigor e não perderam eficácia, salvo, conforme já foi dito, naquilo em que houver um irremissível conflito com as normas gerais.

Em termos práticos, na atuação administrativa, Estados e Municípios devem publicar seus editais de abertura de certames licitatórios, preordenados à celebração de contratos de concessão ou permissão, mencionando que o procedimento se regerá pela Lei n° 8.987/95 e, também, pela respectiva legislação.

Na redação das cláusulas editalícias deve?se atentar para a predominância da Lei n° 8.987/95. O mesmo deve acontecer no caso de omissão ou conflito entre dispositivos. De todo modo, é absolutamente fora de qualquer dúvida que as administrações estaduais e municipais não ficam paralisadas enquanto não se editam as respectivas novas legislações.

Problema interessante, entretanto, surgiu quando da promulgação da Lei n° 9.074, de 07/07/95. Na quase totalidade de seus dispositivos, ela se refere apenas e tão somente à administração federal, sendo fora de dúvida que, em seu conjunto, ela deve ser considerada como lei meramente federal, sem eficácia sobre as administrações estaduais e municipais.

O vício antigo de curvar a espinha dorsal e baixar a, cabeça diante de qualquer autoridade federal, levou alguns intérpretes a sustentar sua aplicabilidade a Estados e Municípios, até mesmo contra a literalidade de seus dispositivos.

Assim é que, como o art. 1 ° dessa Lei elenca, de maneira genérica, uma série de áreas de atuação nas quais a administração federal poderia valer?se de concessões e permissões, entenderam alguns que dispositivo correlato (senão igual) deveria existir nas leis estaduais e municipais como condição indispensável a que pudessem vir a ser celebrados contratos de concessão ou permissão nessas esferas.

Ora, além da literalidade do texto ( que se refere apenas a serviço e obras de competência da União) é absolutamente fora de qualquer dúvida que a opção por este ou aquele rol de atividades não se enquadra no conceito de norma geral, devendo, sim, amoldar-se às peculiaridades de cada Estado ou Município.

Na lei paulista (Lei n° 7.835/92) não há relação alguma. Isso não significa que nada pode ser concedido ou permitido, mas, sim, ao contrário, que, em princípio, qualquer obra ou serviço pode ser objeto de concessão ou permissão.

A questão, porém, se complica diante do disposto no "caput" do art. 2° da citada Lei federal n° 9074/95, que tem o seguinte enunciado:

"Art. 2° É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios executarem obras e serviços públicos por meio de concessão e permissão de serviço público, sem lei que lhes autorize e fixe os termos, dispensada a lei autorizativa nos casos de saneamento básico e limpeza urbana e nos já referidos na Constituição Federal, nas Constituições Estaduais e nas Leis Orgânicas do Distrito Federal e Municípios, observado, em qualquer caso, os termos da Lei n° 8. 987, de 1995."

Como se pode ver, tal dispositivo se diz aplicável universalmente, como se fosse uma norma geral desgarrada da Lei n° 8.987/95. Fora das ressalvas (amplíssimas) aí existentes, não seria possível abrir licitação destinada à execução de obras ou serviços mediante concessão ou permissão "sem lei que lhes autorize e fixe os termos".

A pergunta que se coloca é a seguinte: Toda e qualquer concessão ou permissão deve ser objeto de autorização legislativa prévia e específica?

Como se sabe, administração pública é atividade que se desenvolve debaixo da lei, impulsionada pela lei, exercida nos termos da lei e destinada a atingir finalidades assinaladas pela lei. Portanto, é certo que não pode haver concessão ou permissão sem previsão legal, mas tal previsão não precisa ser específica, para cada caso concreto, podendo ser genérica, conforme ressalvado no próprio texto legal em exame, tanto no art.1 ° quanto no art. 2°.

Isto não significa a outorga ao Executivo de carta branca para conceder ou permitir o que, como a quando lhe aprouver. Nos termos do art.5° da Lei n° 8.987/95, o controle prévio do Legislativo foi substituído pelo controle direto da coletividade (conforme previsto no parágrafo único do art. 1° da Constituição Federal ), que será exercido mediante e obrigatória divulgação pelo Executivo, antes de publicar o edital, de ato justificando a conveniência da concessão ou permissão, seu objeto, área e prazo. Dessa forma,a pretensão da Administração é submetida diretamente ao crivo da sociedade e, principalmente, daqueles que poderão ser especialmente afetados pela orientação governamental.

Embora a Lei n° 8.987/95 não especifique a forma e a natureza de tal "ato" pode?se entender que, em razão de sua finalidade, com aplicação analógica do art.39 da lei n° 8.666/93, à luz do direito comparado e com base na doutrina nacional e estrangeira, aí se prescreve a realização de audiência pública, que é meio típico de exercício do controle social.

Além disso é preciso questionar a abrangência do art. 2.° da Lei n°9.074/95. É certo que ele deve ser obedecido pelos órgãos e entidades que integram a administração federal, mas é gritante sua inconstitucionalidade ao pretender submeter Estados e Municípios.

Recorde-se, em primeiro lugar, o princípio federativo. A regra geral é a autonomia administrativa dos entes federados. A submissão à União é excepcional e,como tal, deve ter interpretação restrita, somente podendo ser aceita quando inquestionável. Na dúvida deve prevalecer o entendimento mais consentâneo com o princípio, pois este é que condiciona a interpretação e aplicação das normas isoladas.

No caso, a leitura do dispositivo completo (com seus parágrafos e incisos) revela um detalhamento casuístico absolutamente incompatível com o conceito de norma geral.

Não cabe ao legislador federal atribuir-se competência a si mesmo. Não é pelo fato de o dispositivo se referir expressamente a Estados e Municípios que ele passa a ter essa abrangência, pois o legislador federal não pode legislar para Estados e Municípios senão estabelecendo normas gerais. Se a regra estabelecida não for norma geral ela carecerá de suporte constitucional, sendo, portanto, inconstitucional e, assim, desprovida de eficácia.

Conviria que essa questão fosse eliminada de vez por meio de ação direta de inconstitucionalidade, mas, numa perspectiva jurídico?científica, cabe ao estudioso apontar razões que poderiam supedanear tal declaração.

Nesse sentido, além do que já foi dito, cabe acrescentar que a questão da necessidade ou não de prévia autorização legislativa diz respeito ao relacionamento entre poderes, à própria organização política de cada ente federado, não podendo ser objeto de lei federal, nem mesmo de caráter nacional.

Note-se que o art. 175 da Constituição Federal estabelece como requisito ou condição das concessões e permissões a realização de certame licitatório, mas não exige prévia autorização legislativa específica, como o faz, por exemplo, no tocante à criação de empresa pública, sociedade de economia mista autarquia ou fundação (art. 37, XIX).

No caso de São Paulo, merece destaque o fato de que a Constituição Estadual ao elencar os casos de ações administrativas dependentes de prévia autorização legislativa específica (art. 20) não inclui entre eles as concessões ou permissões. Além disso, no art. 47, XVII1, ao relacionar as atribuições do Governador, deu?lhe a incumbência de "enviar à Assembléia Legislativa projeto de lei sobre o regime de concessão ou permissão de serviço público", ou seja, sobre o regime jurídico genérico das eventuais concessões e permissões que eventualmente possam vir a ser contratadas.

Assim é que foi editada a Lei estadual n° 7.835/92, que fixa os termos das concessões e permissões em geral, e em cujo art. 2°, parágrafo único, figura uma autorização genérica ao Governador para decidir a respeito de casos específicos. Essa autorização é perfeitamente comportada pela sistemática adotada na Constituição Estadual.

Na administração estadual paulista o art. 2° da Lei 9.074/95 não causa qualquer transtorno nem impede a imediata abertura de procedimentos licitários, pois não há necessidade de lei relacionando casos de concessão ou permissão, e já existe lei que lhes autorize e fixe os termos.

Em cada Estado membro e em cada Município, mesmo sem legislação própria poderão ser celebrados contratos de concessão ou permissão, observando-se as prescrições da Lei n° 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, e desde que haja autorização legislativa para isso, genérica ou específica.

Em resumo, e como conclusão, cabe apenas reafirmar que, na análise das questões inerentes a concessões e permissões, deve o intérprete lembrar que muito acima da literalidade da legislação federal, está o princípio federativo, que não por acaso, é afirmado no primeiro artigo da Constituição Federal.

São Paulo, Agosto de 1995