COBRANÇA DE MENSALIDADE NAS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS DE ENSINO SUPERIOR: RETROCESSO CONSTITUCIONAL E INEFICIÊNCIA PARA REDUÇÃO DA DESIGUALDADE

COLLECTING TUITION FEES AT PUBLIC INSTITUTIONS OF HIGHER EDUCATION: CONSTITUTIONAL SETBACK AND INEFFICIENCY FOR REDUCING INEQUALITY

Ana Paula Ferreira de Almeida Vieira Ramalho

Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Procuradora da Fazenda Nacional.

Beatriz Nunes Diógenes

Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Advogada.

Álisson José Maia Melo

Doutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7).

Resumo: O trabalho busca contribuir para o recorrente tema no debate público sobre a cobrança de mensalidades pelas instituições públicas de ensino superior. Por meio de pesquisa qualitativa e exploratória, com técnica de revisão de literatura e documental, o trabalho aborda a compreensão da previsão da ampla gratuidade na educação pública na CF/88, incluindo o ensino superior. A pesquisa discute a ineficiência da medida de cobrança a partir do perfil socioeconômico dos estudantes das instituições federais de ensino. Conclui-se que eventual alteração constitucional para cobrança pelo ensino superior em estabelecimentos oficiais seria um retrocesso constitucional, tendo em vista que o perfil dos discentes atuais demonstra que estes não são mais ricos do que a população brasileira em geral, bem como dependem de políticas assistenciais de permanência na universidade. Logo, a cobrança teria o potencial de agravar a desigualdade social atualmente existente e prejudicar a enfrentamento da necessária recomposição do orçamento público da educação. A conclusão é no sentido de que medidas mais inteligentes e justas podem ser pensadas para recompor os recursos públicos e garantir o acesso à educação superior pública de qualidade, a exemplo da revisão de renúncias e benefícios fiscais, além de medidas tributárias, como a revisão da progressividade do imposto de renda e a criação do imposto sobre grandes fortunas, em concomitância com a redução da tributação que incide sobre produtos e serviços.

Palavras-chave: Educação superior. Gratuidade. Universidade pública. Mensalidades e anuidades.

Abstract: This study seeks to contribute to the recurring theme in the public debate regarding the charging of tuition fees by public higher education institutions. Through qualitative and exploratory research, employing literature and document review techniques, the paper addresses the understanding of the provision for broad free public education in the 1988 Constitution, including higher education. The research discusses the inefficiency of such charging measures based on the socioeconomic profile of students in federal educational institutions. It concludes that any potential constitutional amendment to charge for higher education in official establishments would constitute a constitutional retrogression, considering that the profile of current students demonstrates they are not wealthier than the general Brazilian population and depend on student retention policies. Thus, charging tuition would have the potential to aggravate existing social inequality and hinder efforts to address the necessary restoration of the public education budget. The conclusion suggests that smarter and fairer measures can be devised to replenish public resources and guarantee access to quality public higher education, such as reviewing tax waivers and fiscal benefits, as well as tax measures like revising income tax progressivity and creating a tax on large fortunes, concurrently with reducing taxes on products and services.

Keywords: Higher education. Cost-free. Public university. Tuition fees and annuities.

1.      Introdução

Em 2019, foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 206, de autoria do Deputado General Peternelli (PSL/SP), que alterava o art. 207 da Constituição de 1988 (CF/88) para inserir um § 3º, prevendo a cobrança de mensalidades nas instituições federais de ensino superior, para os alunos que tivessem condições financeiras para tanto. Referida PEC à época reacendeu o debate sobre a questão da gratuidade do ensino público de nível superior oferecido por instituições federais.

O tema volta a ser debatido em 2022, quando a PEC chega na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, em virtude da realização de audiências públicas sobre o tema (Santos; Barbiéri, 2022). Atualmente, referido projeto ainda se encontra em tramitação, aguardando parecer do relator na CCJ.

Aborda-se nesse artigo em que medida a cobrança de mensalidades ou anuidades nas universidades públicas aos estudantes que tiverem capacidade econômica representaria um retrocesso constitucional e se seria uma medida eficiente na redução das desigualdades socioeconômicas.

A partir da de revisão da literatura e análise documental, demonstra-se que houve avanços e retrocessos da educação nas Constituições brasileiras até a conquista histórica da gratuidade ampla nas instituições públicas, expressa no art. 206, inc. IV da CF/88, a qual se aplica ao ensino superior e representa o alto grau de importância do direito social à educação, conforme o art. 6º da CF/88.

Não se pretende aqui focar a discussão sobre todos os elementos de redução de desigualdades socioeconômicas, nem exaurir as soluções para o orçamento do ensino superior ou expor qual composição ideal de financiamento do ensino superior, vez que estes dependem sobretudo de debate democrático e mensuração dos impactos socioeconômicos. A proposta desta análise é buscar esclarecer alguns pontos que não seriam solução, mas que poderiam representar possíveis atrasos e retrocessos, de forma a contribuir como debate sobre medidas mais ideias em termos de eficiência para reduzir desigualdades.

O estudo, portanto, apresenta uma reflexão acerca dos dispositivos constitucionais sobre educação nas constituições brasileiras até a atual CF/88, abordando de forma crítica a possível medida de cobrança de mensalidades ou anuidades em universidades públicas como forma de redução de desigualdades socioeconômicas.

2.  O direito a educação na Constituição de 1988

A CF/88 teve a missão de encerrar a ditadura no País, criar instituições democráticas sólidas para suportar crises políticas e estabelecer garantias para assegurar direitos e liberdades dos brasileiros. Por isso, elevou vários temas ao nível constitucional, sendo a mais extensa Constituição na história do Brasil e recebeu a alcunha de “Constituição Cidadã” (Schwarcz; Starling, 2018, p. 488)

No campo educacional, é interessante observar o relata da professora do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), Maria Francisca Pinheiro (2014, p. 315-319), que acompanhou os debates educacionais na Constituinte de 1988, e identificou o conflito na questão público-privado, que permeou tanto as discussões constitucionais, e se manteve durante a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996 (Lei n. 9.394/96). Segundo a autora, o conflito público-privado remonta aos anos 1930 e se manifestou na disputa entre as entidades públicas e privadas pela hegemonia no campo do ensino (Pinheiro, 2014, p. 319-320).

Acerca da educação, houve intenso debate na Constituinte de 1987-1988, na qual foram ouvidos os Constituintes, representantes da sociedade e do Estado. Entre as discussões acerca do ensino público e privado, sobressaíram-se a formação do Fórum de Educação na Constituinte em Defesa do Ensino Público e Gratuito,[1] os encontros da Federação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino e das Escolas Confessionais, tendo sido essas forças, grupo ligado à escola pública e ao setor privado, leigo e confessional os principais agentes do conflito constituinte. Os grupos ligados ao setor particular, leigo e confessional também se mobilizaram em defesa do setor privado, mas não constituíram um grupo único e coeso nem se posicionaram em conjunto, como o Fórum (Pinheiro, 2014, p. 319-320).

A defesa do ensino público laico e gratuito em todos os níveis, sem qualquer discriminação econômica, política ou religiosa; a democratização do acesso, permanência e gestão da educação; a qualidade do ensino e o pluralismo de escolas públicas e particulares foram os princípios defendidos pelo Fórum (Pinheiro, 2014, p. 321-322).

Quanto ao orçamento, o Fórum propunha a aplicação anual pela União nunca inferior a 13%, os Estado e Municípios no mínimo 25% da receita bruta na manutenção e desenvolvimento da escola pública, além da destinação do salário-educação para o estudo oficial de primeiro grau. Visando garantir a todos o direito à educação pública, o Estado deveria manter programas sociais, como alimentação, material escolar, atendimento médico e bolsas de estudo no ensino público quando a gratuidade não fosse suficiente para garantir o aprendizado (Pinheiro, 2014, p. 322-323).

Aqueles que defendiam a escola pública garantiram a previsão que define a gratuidade do ensino público de forma ampla, em todos os seus níveis, o que representou o seu maior ganho e a derrota dos privatistas, que não admitiam a gratuidade do ensino público no ensino superior público e defendiam a concessão de bolsa de estudo para a particular. A universidade também foi tratada expressamente na Constituição, tendo sido definido o princípio da autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial e o estabelecimento dos princípios da indissociabilidade entre ensino, pesquisa, extensão e a garantia de um padrão de qualidade (Pinheiro, 2014, p. 343-346).

Cite-se, ainda, como importante marco histórico na Constituinte (1987-1988), a apresentação de documento de título “A Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes” entregue pela presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), Jaqueline Pintanguy, em 1987, aos constituintes. Reivindicavam-se direitos das mulheres, a exemplo da licença-maternidade de 120 dias, igualdade de direitos e salários entre homem e mulher, direito ao aborto, entre outros. Segundo levantamento do Conselho, cerca de 80% das reinvindicações foram atendidas (Monteiro, 2018).

O documento foi fruto de um grupo heterogêneo de deputadas e senadoras que formaram uma aliança suprapartidária (representando oito partidos – PMDB, PT, PSB, PSC, PFL, PCdoB, PTB e PDT – a maioria do PMDB, com 11 representantes), composta por 25 mulheres, entre elas, Benedita da Silva, Lelia Gonzales e Sueli Carneiro, cuja bancada ficou conhecida como “Lobby do Batom” e a conclusão da campanha era de que “Constituinte pra valer tem que ter direitos das mulheres” (Monteiro, 2018).

Entre os direitos expressos no documento, na parte “Educação e Cultura”, firmou-se que “A educação é prioridade nacional e cabe ao Estado responsabilizar-se para que seja universal, pública, gratuita, em todos os níveis e períodos, desde o primeiro ano da infância” (Monteiro, 2018).

Embora não seja cientificamente correto estabelecer uma linha do tempo com relações de causalidades entre os eventos acima retratados, haja vista que as manifestações ocorrem de forma não organizada e não centralizada, não sendo possível firmar uma ordem cronológica entre as situações histórico-sociais, pode-se perceber que a educação se pontuou como um direito e passou a ter a formulação de direito de todos e dever do Estado (Cury; Horta; Fávero, 2014, p.11).

Como um possível resultado dessa lita política, a educação foi elevada à categoria concomitante de direito de todos e de dever do Estado e da família, e se destina tanto ao exercício da cidadania quanto à qualificação para o trabalho (art. 205 da CF).

Paulo Freire (2018. p. 47-48) já apostava na educação como meio de transformação social, não restringindo a educação como forma de capacitação das pessoas para o mercado de trabalho. Para o educador, a educação consiste num processo contínuo, que repercute na mudança da sociedade, na busca pela correção das imperfeições humanas e na participação democrática do povo no seu processo histórico.

A Constituição de 1988 foi a que mais trouxe dispositivos sobre educação, conforme arts. 205 a 214, além dos art. 22, 22, XXIV, 23, V, 30, VI, e arts. 60 e 61 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Trouxe o princípio da gratuidade ao ensino público de forma ampla no art. 206, inc. IV, incluindo o ensino superior público.

Importante também fazer um repasse da expressão reformista do Poder Constituinte no tema da educação. Nesse sentido, a educação não passou incólume e inalterada no seu formato original do texto constitucional, aperfeiçoando diferentes aspectos, conforme Tabela 1.

Tabela 1 – Emendas constitucionais que tratam do tema educação

Emenda Constitucional

Objeto

53/2006

Criou o Fundeb em substituição ao Fundef, conforme art. 60 do ADCT, e fez alterações nos dispositivos do capítulo da educação, sobre cooperação técnico-financeira entre entes federativos, valorização dos profissionais, piso salarial por lei e financiamento da educação básica

59/2009

Tornou obrigatória a educação básica gratuita para crianças e adolescentes a partir de 4 anos, disciplinando ainda sobre planejamento da política pública e distribuição de recursos, com alterações redacionais aos dispositivos do capítulo da educação

108/2020

Regulamentou o novo Fundeb, com a introdução do art. 212-A, alterando dispositivos, também com foco em preocupações relativas à sustentabilidade financeira da educação brasileira

119/2022

Suprimiu a responsabilidade dos entes federativos subnacionais e dos agentes públicos no que tange à aplicação deficitária de recursos na educação nos anos anteriores, em virtude do período pandêmico, através da inclusão do art. 119 ao ADCT

135/2024

Estabeleceu novas regras sobre aplicação de recursos do Fundeb, mediante alteração do art. 212-A

Fonte: elaborada pelos autores.

Na próxima seção, aborda-se a extensão do princípio da gratuidade do ensino público na CF/88 e da ineficiência da cobrança de mensalidades ou anuidades como medida de redução da desigualdade socioeconômica, discussão que se faz a partir da última pesquisa acerca do perfil socioeconômico dos alunos das instituições públicas de ensino (Andifes, 2019).

3.  A gratuidade do ensino na CF/88 e a discussão sobre a ineficiência da cobrança de mensalidades em universidades públicas como medida de redução de desigualdade socioeconômica

A CF/88 previu a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais como princípio, sem quaisquer restrições, de forma a abranger o ensino superior, conforme o art. 206, inc. IV da CF, segundo o qual “O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...) IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;”.

A única exceção à gratuidade foi prevista no art. 242 da CF, segundo o qual “O princípio do art. 206, IV, não se aplica às instituições educacionais oficiais criadas por lei estadual ou municipal e existentes na data da promulgação desta Constituição, que não sejam total ou preponderantemente mantidas com recursos públicos” (Minto, 2018, p. 162; Silva, J., 2024, p. 843). A situação excepcionada não é comum e, segundo José Afonso da Silva (2024, J., p. 843), foi a “vitória de algum lobby do ensino em favor de algum estabelecimento que aufere recursos público sem ser propriamente público”.

O ensino superior é referido no art. 208, inc. V da CF/88, que dispõe “O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: (...) V - acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um;”. Para Silva, os “níveis mais elevados de ensino” são os “mais elevados” em relação aos níveis fundamental e médio, ou seja, trata-se do ensino superior (Silva, J., 2024, p. 753).

O acesso ao nível superior nos estabelecimentos oficiais depende da capacidade de cada um, sendo essa capacidade a intelectual e não econômica, vez que se previu a gratuidade no inc. IV do art. 206. A educação superior abrange a graduação, pós-graduação e extensão, por meio de cursos sequenciais por diferentes campos de saber e, apesar de não obrigatória, tem por finalidade promover a criação cultural, o pensamento científico e reflexivo, além de formar profissionais qualificados e contribuir para o progresso da sociedade brasileira (Silva, J., 2024, p. 755).

A não obrigatoriedade do ensino oficial superior não afasta o dever do Estado de oferecê-lo, pois a CF/88 estabelece o dever estatal de promover o acesso a esse nível, como consta no art. 208, inc. V, bem como impõe a gratuidade do ensino oficial (art. 206, inc. IV), independentemente se obrigatório ou não (Mariano; Furtado; Carvalho, 2017, p. 17).

Já a educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e médio, é obrigatória e gratuita, dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade (art. 208, inc. I). A educação infantil (inc. IV do art. 208), primeira etapa da educação básica, é de competência prioritária dos Municípios (art. 211, § 2º) e deve ser oferecida em creches, às crianças até três anos de idade, e em pré-escolas às crianças de quatro a cinco anos de idade (Silva, J., 2024, p. 754).

O ensino fundamental, cujo fim é o domínio da leitura, escrita e cálculo, além de desenvolver habilidades e valores, tem duração de nove anos, inicia-se aos seis anos de idade e é incumbência prioritária dos Estados e Distrito Federal (art. 211, § 3º), mas os Municípios também podem ofertá-lo (art. 211, § 2º). Já o ensino médio é etapa final da educação básica, tem duração mínima de três anos (dos 14 aos 17 anos) e visa aprofundar os conhecimentos do ensino fundamental, preparar para a educação superior, formar eticamente a pessoa e desenvolver o pensamento crítico (Silva, J., 2024, p. 754).

Em que pese a inovação da CF/88 de consagrar o direito ao ensino público gratuito ao patamar constitucional, lembra José Afonso da Silva (2024, p. 752) que a gratuidade do ensino oficial nos níveis fundamental, médio e superior já era tradição no sistema nacional brasileiro. Segundo o autor (2024, p. 752), trata-se de um princípio fundamental que passou a ser direito fundamental, conforme o art. 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), subscrita pelo Brasil no mesmo ano, segundo a qual há expressa previsão de gratuidade e obrigatoriedade da instrução “pelo menos nos graus elementares e fundamentais”.

A CF também dispôs expressamente o princípio da indissociabilidade nas universidades entre ensino, pesquisa e extensão, no art. 207, do que se depreende que o legislador constitucional manteve a garantia da gratuidade de ensino do art. 206, inc. IV, ao conjunto das atividades de ensino, pesquisa e extensão, vez que exercidas de forma indissociável (Minto, 2018, p. 156-157).

A indissociabilidade de ensino, pesquisa e extensão também foi reproduzida na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), segundo a qual o ensino superior abrange cursos sequenciais por campo de saber, cursos e programas de graduação, pós-graduação, compreendendo programas de mestrado e doutorado, cursos de especialização, e de extensão, conforme o seu art. 44.

Contudo, num precedente a nosso ver perigoso, o STF flexibilizou a gratuidade da educação pública e, em ofensa à indissociabilidade dos níveis de educação superior definidos na CF/88 e na LDB, decidiu que as universidades públicas podem, excepcionalmente, cobrar mensalidades para oferta de cursos de especialização no Recurso Extraordinário (RE) 597854, com repercussão geral reconhecida (Tema 535). A tese que prevaleceu na Corte foi de que a gratuidade da cobrança albergaria apenas o ensino, representado pela graduação, além dos cursos de mestrado e doutorado, vez que esses dois últimos capacitam os professores para a docência e, assim, para o ensino.

O STF entendeu que quando o art. 212 da CF trata da aplicação de recursos públicos “na manutenção e desenvolvimento do ensino”, refere-se à graduação, mestrado e doutorado. Diferentemente, os cursos de especialização visam a capacitação profissional para o mercado de trabalho, e não o aprimoramento do ensino e da docência, bem como são ofertados de forma descontinuada. Em face do caráter vinculante da decisão em repercussão geral, nos termos do art. 1.030 do CPC, somente o Poder Legislativo poderá reverter o posicionamento adotado.

Pedro Vitor da Silveira Nunes e William Paiva Marques Júnior (2019, p. 37-38) ressaltam que, ao contrário do decidido pelo STF, nem sempre os cursos de especialização são ofertados de forma não continuada e sem a utilização de recursos públicos, pois há cursos oferecidos com periodicidade por instituições públicas, além do que a utilização de espaços físicos das instituições e a ministração de aulas por professores concursados caracteriza o emprego de recursos públicos.

Segundo José Afonso da Silva (2024, J., p. 752-753), em razão da trajetória constitucional brasileira, a gratuidade ampla do ensino público (ensino fundamental, médio e superior) foi uma evolução histórica, razão pela qual a cobrança pela educação superior representaria uma ameaça à educação como um bem público, como afirma Wrana Maria Panizzi (2004, p. 121), professora titular da Faculdade de Arquitetura da UFRGS. Outros pesquisadores reforçam a educação superior como um bem público, vez que busca promover justiça social e igualdade de oportunidades individuais (Noam, 2014; Chauí, 2003).

Em contraponto, há quem defenda a cobrança de mensalidades ou anuidades de estudantes que possuem capacidade econômica, como forma de efetivar a justiça social, ou seja, para reduzir desigualdades entre alunos, sob o argumento de que toda a sociedade arca com o privilégio de alguns que cursam sem pagar, mesmo com condições financeiras (Alan; Fensterseifer, 2024). Ressalte-se que os autores não abordaram o perfil socioeconômico dos estudantes das instituições federais de ensino.

A tese de que o ensino pago nas universidades públicas busca realizar justiça social é o que o José Afonso da Silva chama de “racionalização ideológica”, pois, na verdade, esconderia a ideologia de que o ensino particular deve primar sobre o público. Passando o ensino oficial a ser pago, não haveria mais diferença para o particular. Poderia a partir disso haver uma defesa de que não há mais razão para o Poder Público investir na ampliação da rede escolar média e superior, pois a rede particular poderá prestar o serviço por meio de pagamentos dos que, em tese, teriam capacidade, e prestar bolsa de estudos fornecidas pelo Estado àqueles que não possuem recursos suficientes (Silva, J., 2024, p. 752-753).

A propositura de alteração da legislação para permitir a cobrança pela educação superior pública para aqueles que podem pagar, como medida destinada a gerar recursos próprios para as instituições superiores de ensino, é recorrente.

A título de exemplo, pode-se citar o trâmite na Câmara dos Deputados, em 2017, da proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 366/2017 com o objetivo de alterar o inc. IV e acrescentar parágrafo único ao art. 206 da CF, o que permitiria a cobrança de mensalidades de alunos de universidades públicas. No texto da citada PEC, retirada posteriormente pelo autor da proposta, o art. 206 da CF passaria a vigorar com as seguintes alterações:

Art. 206 (...) IV – gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais de educação infantil, ensino fundamental e ensino médio;

§ 2º O pagamento dos custos do ensino superior ministrado nos estabelecimentos oficiais será proporcional ao nível socioeconômico do estudante, admitida a possibilidade de pagamento sob a forma de prestação de serviço profissional, nos termos da lei, e assegurada a gratuidade para o estudante que tenha cursado o ensino médio completo em escola pública ou como bolsista integral em escola particular.

É válido destacar, contudo, que não se pode mais afirmar que a universidade pública federal brasileira é “elitista”, pois o perfil da universidade pública mudou, sobretudo após a Lei de Cotas (Lei 12.711/2012) e com a expansão das vagas na educação superior. Dados levantados V Pesquisa de Perfil Socioeconômico e Cultural dos Graduandos das Instituições Federais de Ensino (IFES), de 2018, mostram que os discentes não são mais ricos do que a população brasileira em geral, bem como dependem de políticas assistenciais de permanência na universidade. Conforme o levantamento, 70,2% dos alunos das instituições federais de ensino superior têm renda familiar per capita até 1,5 salário-mínimo por mês (Andifes, 2019)[2].

Do total dos estudantes, 26,6% vivem em famílias com renda familiar per capita até metade de um salário-mínimo (SM) e 26,9% são de família com mais de meio a 1 SM. Assim, mais da metade dos graduandos (53,5%) pertence à família até 1 SM. Na fixa de renda per capita de mais de 1 SM a 1,5 SM se encontram 16,6% do público, de forma que até 1,5 SM de renda mensal familiar per capita totaliza mais de 70% do universo pesquisado (Andifes, 2019, p. 28).

Na faixa de renda per capita mais de 1,5 SM a 3 SM estão 16,7% dos graduandos; na faixa de mais de 3 a 5 SM correspondem 5,9% dos graduandos; na faixa de 5 a 7SM estão 2,8% dos discentes; e nas faixas de mais de 7 a 10 SM e mais de 10 a 20 SM correspondem 0,8% e 0,6% dos graduandos respectivamente (Andifes, 2019, p. 28).

Figura 1: Graduandos(as), por faixa de renda mensal familiar per capita

Faixa de renda mensal familiar per capita

%

Até meio SM

26,6

Mais de meio a 1 SM

26,9

Mais de 1 a 1 e meio SM

16,6

Subtotal até 1 e meio SM

70,1

Mais de 1 e meio a 3 SM

16,7

Mais de 3 a 5 SM

5,9

Mais de 5 a 7 SM

2,8

Mais de 7 a 10 SM

0,8

Mais de 10 a 20 SM

0,6

Mais de 20 SM

0,1

Não respondeu

3,0

Total

100,0

Fonte: Andifes, 2019, p. 28.

O percentual varia quando a análise dos discentes é feita de acordo com as regiões do país. Em 2018, na região norte, o percentual de graduandos com renda mensal familiar per capita até 1,5 SM foi de 81,9%; no Nordeste foi de 78,3%; sudeste ficou em 64,8%; no Sul foi de 60,9% e no Centro-oeste perfez 70,2% (Andifes, 2019, p. 30).

O universo investigado pela pesquisa supracitada foi formado por discentes da graduação presencial das 63 universidades federais existentes até fevereiro de 2018, pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais e pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, do Rio de Janeiro, perfazendo 65 IFES. O período de coleta foi de fevereiro a junho de 2018, foram cadastrados 1,2 milhão de estudantes de graduação e o tamanho amostral foi de mais de 424 mil questionários válidos, o que correspondeu a 35,34% dos estudantes cadastrados (Andifes, 2019, p. 9-10; p. 256).

O trabalho de pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) “Expansão da educação superior e progressividade do investimento público” concluiu que a expansão e políticas de educação superior e políticas de inclusão contribuiu para uma maior democratização do acesso nas universidades públicas no período 2005-2015. Como resultado, uma proporção maior do investimento do governo em educação superior pública passou a alcançar os estratos mais pobres da sociedade e houve uma mudança significativa no perfil dos estudantes das universidades públicas. Assim, a análise do efeito redistributivo do investimento público no ensino superior indicou queda da regressividade, pois esse investimento passou a beneficiar cada vez mais extratos famílias mais pobres. Contudo, há ainda questões a serem consideradas na formulação de políticas públicas, como a permanência dos jovens de origens socioeconômica desfavorecida nos cursos; acesso a cursos tradicionalmente associados à elite, como medicina, direito e engenharia; e a melhoria da qualidade dos cursos (Costa; Silveira; Costa; Walternberg, 2021).

Quanto ao financiamento das instituições de ensino superior em âmbito internacional, o contexto é complexo, variado e muitas vezes comparado ao Brasil para que este siga modelos que cobram pelo ensino superior público por meio de mensalidades, como se fosse uma realidade natural da universidade pública contemporânea. Contudo, algumas observações se fazem necessárias para, sobretudo, chamar atenção da importante participação do Estado nessas instituições, seja por meio do financiamento ou do regulamento, de forma que a presença do Estado é imprescindível nas universidades no cenário mundial (Mariano; Furtado; Carvalho, 2017, p. 22).

Um exemplo comparado é a política educacional dos Estados Unidos, onde os alunos pagam pela universidade pública – convém ressaltar, contudo, que não existe um sistema nacional de ensino superior, mas em regra universidades estaduais, sendo prevalente o modelo privado de ensino superior naquele país. Contudo, a cobrança de anuidade e o financiamento estudantil se tornaram um grande problema educacional para o país, que convive com uma alta dívida estudantil e baixo acesso aos mais pobres. Além do aumento das anuidades, a cobrança cooperou com a redução da receita disponível para as universidades públicas em geral, pois nos períodos de recessão, os estados e o governo federal reduzem gastos com a educação superior, mas não os restauram quando a economia melhora. Para o ano letivo de 2016-2017, a anuidade média para os cursos de graduação de 4 anos chegou a 9.650 dólares e chegou a compor 22% do orçamento das universidades públicas (Lenk; Pereira, 2016, p. 84).

Em virtude dessa situação, a proposta de gratuidade da educação superior se tornou uma das principais demandas da sociedade civil americana. Em 2017, o projeto de lei “College for All Act 2017” (Lei da Faculdade para todos), proposto pelo na época senador Bernie Sanders, de Vermont, buscou tornar os cursos de quatro anos nas universidades públicas gratuitos para quem ganhasse menos de US$ 125 mil/ano e ensino gratuito nas community colleges (cursos profissionalizantes). O projeto não foi aprovado no Congresso, mas a proposta foi um dos elementos que projetou a disputado presidencial do senador contra Hillary Clinton, que assumiu proposta semelhante (ensino gratuito em community colleges; nos cursos de quatro anos em universidades públicas e isenção de anuidade aos estudantes com renda familiar inferior a US$ 85.000 dólares em 2017, até 125.000 dólares em 2021, o que representaria 80% dos alunos, bem como moratória e refinanciamento para dívidas estudantis. Não é possível predizer se as propostas teriam sido implantas se a candidata tivesse vencido as eleições, mas se pode afirmar a presença do movimento de gratuidade ao ensino superior (Lenk; Pereira, 2016, p. 85-86).

Ressalte-se que a candidata à presidência Kamala Harris, nas eleições americanas de 2024, foi uma das apoiadoras do projeto de lei College for All Act 2017 e propunha apoiar a faculdade gratuita aos estudantes de cujas famílias ganham menos de US$ 125 mil/ano, o que afetaria aproximadamente 80% das pessoas; gratuidade das community colleges, bem como o perdão de dívidas de empréstimos estudantis, em continuação ao tentado no Congresso pelo então presidente Joe Biden (Arrojas, 2024).

Já na União Europeia, o cenário é bem diferente, sendo a maioria das instituições de ensino superior pública. Na França, são cobradas anuidades aos franceses e estrangeiros da União Europeia que variaram, em 2023, entre 170 a 502 euros (Le Figaro, 2023). Contudo, o governo francês pode isentar da taxa pessoas e situações de vulnerabilidade social e oferecer auxílio para financeiro ao estudante para moradia, alimentação e transporte. Na Alemanha, conhecida por considerar as universidades importantes centros de pesquisa científica e tecnológica, houve a cobrança de anuidades como meio alternativo de financiamento a pedido dos governos estaduais, em desacordo com o posicionamento de reitores e instituições de ensino. Contudo, após disputa judicial durante a década de 2000, finalizada em 2014, e apelo da sociedade, a gratuidade foi reafirmada e, consequentemente, o financiamento por recursos públicos.

Na América Latina, o Chile passou pela privatização da educação na ditadura de Pinochet (1973-1990) e cobrança de mensalidades elevadas, mas a gratuidade, sob o fundamento do ensino superior ser direito de todos, foi restabelecida em 2017 no governo de Michele Bachelet (Lenk; Pereira, 2016, p. 85-86; Silva, G., 2018).

No caso do Brasil, a importância da educação superior para a igualdade de oportunidades para se adquirir uma profissão, possibilitando a mobilidade social, e a observância do projeto constituinte de 1988, que visou a implementação de um Estado de Bem-Estar Social (art. 193), urgem, pois o país ocupa uma das piores posições em índices de desenvolvimento humano e é marcado pela desigualdade social (Mariano; Furtado; Carvalho, 2017, p. 21). Segundo dados do Relatório do Desenvolvimento Humano (RDH) de 2018, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Brasil estagnou no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no valor de 0,759 e no ranking mantém a posição 79 entre 189 países (UNDP, 2018, p. 09).

Cobrar mensalidades nas universidades públicas onera mais ainda as classes média e baixa, já tão sobrecarregadas com o sistema tributário regressivo brasileiro, marcado pela elevada incidência de tributos indiretos, que recaem sobre bens e serviços (PIS, COFINS, IPI), e pela menor incidência sobre os maiores medidores de riqueza, ou seja, patrimônio, renda e propriedade (IPTU, ITBI, ITR e ITCMD).

Ilustrativo dessa realidade os dados da Receita Federal de 2017, apontam que o percentual de arrecadação dos tributos sobre bens e serviços foi de 48,44% da arrecadação total, enquanto a arrecadação da renda foi de 19,22% e a arrecadação relativa à propriedade foi 4,58% da arrecadação total. Diversamente, na média dos países da OCDE, a carga tributária total é semelhante à brasileira, mas na sua composição a tributação dos países desenvolvidos incide mais sobre a renda, lucros, ganhos de capital e propriedade (13,6% do PIB 2016) e menos sobre o consumo relativo bens e serviços (11,4% do PIB 2016) (Receita Federal, 2018, p. 5 e 9). Em outros termos, a população menos favorecida acaba consumindo mais sua renda com tributos, em relação à parcela mais rica da população.

Dessa forma, a redução da tributação sobre bens e serviços em paralelo com implemento de uma tributação mais progressiva, por meio do fim da isenção dos dividendos, de uma reforma da tabela progressiva do Imposto de Renda, com a criação de alíquotas mais altas para faixas de rendas mais elevadas; da criação do Imposto sobre Grandes Fortunas, da revisão de renúncias fiscais, além da simplificação tributária, entre outras medidas tributárias, poderia ser mais eficaz em gerar superávit, ao mesmo tempo em que corrigiria distorções de equidade na economia brasileira (Mariano, 2017, p. 274-275).

Seria relevante a revisão do gasto tributário, que consiste nos benefícios fiscais e renúncias fiscais concedidos pelo Estado, para que se verifique a real necessidade em cotejo com a contrapartida do mercado de geração de empregos, por exemplo. Conforme dados da Receita Federal do Brasil (RFB) constante no Demonstrativo dos Gastos Tributários PLOA 2020 (2019, p. 9), as renúncias fiscais estimadas para 2020, nos termos do projeto de lei orçamentária anual, alcançaram o montante de R$ 330,85 bilhões.

4.  A cobrança pelo ensino superior como retrocesso social e a violação a cláusula pétrea

Nada obstante, é extremamente necessário repisar a discussão do tratamento isonômico, haja vista que as posições contrárias à gratuidade da educação superior podem sofrer de vieses, mormente quando os adeptos são egressos do ensino superior público gratuito e provém de famílias de classe média e alta. De um ponto de vista da economia comportamental, o pagamento de mensalidades ou anuidades por alguns alunos pode gerar alguns efeitos deletérios para o clima organizacional, criando ou acirrando situações de privilégios e status e discriminações entre os alunos pagantes e os não pagantes em termos de prioridade para atendimento e solução de problemas.

Da mesma forma, pode introduzir na cultura universitária uma política informal de predileção pelos alunos pagantes, por parte de docentes e da alta administração. Em última instância, a universidade pública pode passar a ser alvo de enxugamento financeiro, provocado por uma agenda eventual voltada para o custeio privado do ensino superior como meio para desafogar supostas crises financeiras do Estado brasileiro.

Ao estabelecer a gratuidade do ensino superior, se estabelece uma cultura republicana por meio da qual não existem diferenças essenciais entre os alunos, senão, ao menos naquilo que deveria importar, a partir de critérios acadêmicos. De uma maneira não ingênua, as predileções ainda persistirão, por razões informais e subjetivas, mas a gratuidade diminui a percepção institucional quanto à existência de categorias de alunos a partir de um critério capitalista.

Do ponto de vista administrativo, a gratuidade fortalece o princípio da impessoalidade no contexto universitário, conferindo um tratamento mais isonômico para os alunos, independentemente de sua classe econômica.

Propostas de emendas constitucionais para quebrar o ensino superior gratuito poderiam configurar eventual violação à cláusula pétrea. Nesse sentido, o ministro Marco Aurélio de Mello, em seu voto vencido no julgamento do RE 597854, postulou a gratuidade do ensino público estabelecido no art. 206, inc. IV, da CF/88 como um princípio inafastável do sistema constitucional educacional brasileiro.

Essa discussão não passou despercebida pelo primeiro relator da PEC 206/2019, o deputado Kim Kataguiri, em cujo voto há o enfrentamento específico do art. 60, § 4º, da CF/88. Afastando eventual violação ao voto, à forma federativa do Estado e ao princípio da separação de poderes, entende que não há malferimento à direitos individuais pois o direito à educação seria um direito social, relacionado a políticas públicas que demandam recursos financeiros do Estado. Enfrenta ainda a questão do princípio da vedação do retrocesso social (ou efeito cliquet), argumentando que a cobrança de mensalidades ou anuidades não atinge o núcleo essencial do direito à educação de modo a liquidá-lo, pois a gratuidade continuará existindo, porém com restrições.

O deputado também cita os entendimentos de Ingo Sarlet e de Luis Roberto Barroso quanto à inocorrência de violação ao núcleo essencial do direito à educação a cobrança pelo ensino público de nível superior, porém sustentando sua qualificação como tal para o ensino fundamental.

Numa análise da literalidade e da sistemática do texto constitucional, uma leitura rápida e superficial permite concluir com segurança que o direito à gratuidade do ensino superior não é um direito individual. De fato, se analisado do ponto de vista do direito à educação, este se qualifica como um direito social, o primeiro citado na previsão no art. 6º da CF/88. No entanto, é necessário tomar os devidos cuidados para se evitar que uma medida que aparentemente afeta um direito social não atinja, de forma tendencial, o núcleo de direitos individuais.

Isso porque o argumento de que os direitos sociais são aqueles que demandam prestações positivas do Estado é falacioso. Sunstein e Holmes (2019) já demonstraram que direitos tradicionalmente negativos também demandam a provisão de políticas e recursos públicos para que possam ser gozados pelos cidadãos.

É necessário averiguar, assim, se o fim direito à educação superior gratuita pode gerar um efeito cascata para outros direitos fundamentais. Isso é especial no caso do direito à educação, pois ele se enquadra no seleto grupo de direitos fundamentais que servem de condicionante para o exercício pleno de outros direitos. De forma não específica, o direito à educação é condicionante para o exercício pleno dos direito de voto e das liberdades de consciência e de expressão. Especificamente para o ensino superior, ao permitir o acesso a determinadas carreiras profissionais, há um rebatimento necessário na liberdade de profissão, com assento no art. 5º, inc. XIII, da CF/88. Vale dizer, o ensino superior é política pública instrumental para ofertar a liberdade qualificada de profissão.

Dessa forma, a gratuidade do ensino público configura-se como uma garantia instrumental para o exercício pleno do direito à liberdade profissional. Por conseguinte, há uma repercussão evidente da gratuidade do ensino fundamental para o ensino superior que justifique um tratamento similar quanto ao atingimento do núcleo essencial do direito fundamental à educação.

As razões acima expostas apontam para uma possível degeneração da cultura universitária caso a gratuidade seja mitigada no ensino superior. Pode-se enquadrar a gratuidade da educação pública, no contexto da Constituição de 1988, como uma garantia institucional, na lição de Paulo Bonavides (2020, p. 549 e 554), configurando-se como uma proteção que a Constituição confere à instituição educação como fundamental para a sociedade brasileira, para preservar a essência dessa instituição mesma.

Não se trata de uma conclusão trivial, mas dependente de uma análise profunda da Constituição, a conclusão de que a PEC que quebra a gratuidade universitária configura, por uma via transversa e mediata, uma proposta de emenda tendente a abolir direitos e garantias individuais. A configuração do que significa “tendente a abolir”, na dicção do art. 60, § 4º, não é objeto de grandes preocupações na doutrina e em especial na jurisprudência do STF. Entretanto, referido entendimento, dada a complexidade para seu entendimento e à luz do debate decisório, não deve receber eco nas decisões pretorianas – a exemplo do voto vencido do ministro Marco Aurélio.

No tocante ao julgamento no STF do Tema 525, a partir de uma análise econômica, a oferta de cursos de pós-graduação lato sensu por universidades públicas passa a disputar recursos públicos escassos – referentes ao uso dos espaços físicos e custos das instalações dos equipamentos públicos, à carga horária dos professores vis a vis sua remuneração, uso do tempo útil do apoio técnico etc. – com a oferta de outros cursos, de graduação e de pós-graduação stricto sensu. Nesse sentido, não há estímulos suficientes para que cursos de aperfeiçoamento ou de especialização sejam amplamente ofertados pelas instituições universitárias sem que haja prejuízos para os cursos de graduação ou de pós-graduação stricto sensu. Assim, a decisão do STF acerta apenas quanto à possibilidade de oferecimento desse estímulo financeiro; no entanto, cria um precedente que pode futuramente ser mal utilizado em situações não semelhantes.

Ademais, do ponto de vista da argumentação aqui traçada, sendo os cursos de aperfeiçoamento e de especialização etapas não essenciais para o exercício de determinadas profissões, elas não estariam protegidas por essa garantia institucional inafastável. Assim, de forma excepcional, nos casos em que esses cursos de pós-graduação lato sensu não sejam condicionantes para o exercício de profissões, a gratuidade não é constitucionalmente devida.

5.  Conclusão

Apesar de a ideia de cobrança de mensalidades para custeio do ensino público superior parecer razoável e ser presente no debate público, verifica-se que significaria um retrocesso constitucional, em face da conquista obtida na Constituição de 1988 que estipulou a gratuidade ampla ao ensino prestado nos estabelecimentos oficiais, a incluir o ensino superior (arts. 206, inc. IV e 242 da CF/88).

A cobrança seria medida ineficiente na captação de recursos públicos pois, segundo dados da V Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e Cultural dos Graduandos das IFES 2018 (Andifes, 2019), 70,2% dos alunos das universidades federais são de baixa renda, cuja renda familiar per capita é até 1,5 salário-mínimo por mês, e o percentual de estudantes com renda per capita familiar maior que 10 salários-mínimos não chega a 1% do total. Os valores mais fariam falta no bolso das famílias do que seriam efetivos na captação de recursos para recomposição do financiamento público do ensino superior.

Cobrar de quem pode pagar poderá acabar cobrando de quem não pode pagar e endividando famílias ou reduzindo os recursos públicos destinados à universidade, ao fantasiar um importante financiamento por meio de mensalidades, a exemplo do modelo americano privado. A medida, ao invés de impactar significativamente no orçamento público e de alcançar os mais ricos, corre o risco de sobrecarregar ainda mais o orçamento das classes média e baixa, vez que o acesso às universidades públicas se tornou mais democrático e plural com a implementação de políticas afirmativas como a Lei 12.711/2012(Lei de cotas raciais e sociais) e o Enem.

Por isso, conclui-se que medidas mais inteligentes e justas podem ser pensadas para recompor os recursos públicos e garantir o acesso à educação superior pública de qualidade, a exemplo da revisão de renúncias e benefícios fiscais, além de medidas tributárias, como a revisão da progressividade do imposto de renda e a criação do imposto sobre grandes fortunas, em concomitância com a redução da tributação que incide sobre produtos e serviços, que acaba onerando os menos favorecidos.[3]

Referências

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[1]   Após muitas reuniões, houve a criação do Fórum de entidades que se uniram em prol de uma plataforma comum em defesa da escola pública, por meio da participação de quinze entidades nacionais a Associação Nacional de Educação (Ande); a Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior (Andes); a Associação Nacional de Profissionais de Administração da Educação (Anpae); a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped); o Centro de Estudos Educação e Sociedade (Cedes); a Federação Nacional de Orientadores Educacionais (Fenoe); a União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes); a Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas (Seaf); a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT); a Confederação dos Professores do Brasil (CPB); a Central Única dos Trabalhadores (CUT); a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Federação das Associações dos Servidores das Universidades Brasileiras (Fasubra) (Pinheiro, 2014, p. 320-321).

[2]   A pesquisa de Perfil Socioeconômico e Cultural dos graduandos das IFES também foi realizada nos anos de 1996, 2003, 2010, 2014 e 2018, com o fim de pesquisar os aspectos fundamentais do perfil básico socioeconômico e cultural dos discentes dos cursos de graduação (ANDIFES, 2018, p. 03).

[3]   Para uma leitura mais aprofundada, ver Fagnani (2018).