DIREITO
ADQUIRIDO CONTRA AS EMENDAS CONSTITUCIONAIS
CARLOS
AYRES BRITTO (*)
VALMIR
PONTES FILH0 (**)
SUMÁRIO:
1. A Constituição como norma que se põe na linha de largada do Direito.
2. A emenda constitucional como norma que se põe a meio caminho do
Direito.
3. A subsistência do direito adquirido, ante as emendas constitucionais.
4. A permanência do direito adquirido como forma de manifestação do
princípio constitucional da segurança jurídica.
5. A justificativa lógica de cada remissão constitucional à lei, e não
às emendas.
6. O direito adquirido como fato bloqueador da produção das leis e das
emendas à Constituição.
7. Considerações finais.
1. A Constituição como norma que
se põe na linha de largada do Direito.
1.1. Há direito adquirido, sim, contra as emendas constitucionais.
O que não há é direito adquirido contra Constituição, tal como originariamente
posta, porque a Constituição originariamente é o começo lógico de toda a
normatividade jurídico-positiva de um Estado soberano (KELSEN
). Logo, não tem compromisso com a ordem jurídica anterior, justamente
por ser inaugural de uma nova ordem cujo primeiro efeito é sepultar a própria
Constituição primitiva.
1.2. Noutros termos, então, somente a Constituição originária é que se põe na
linha de largada do Direito Positivo. Sua irrupção no cenário jurídico
significa a postura do começar tudo de novo, e não simplesmente a do ajeitar as
coisas. Isto, pelo fato de que seu órgão de elaboração (Assembléia
Nacional Constituinte, no caso brasileiro). é o único
a se caracterizar como Instância capaz de normar sem
ser normada; vale dizer,como
instância que tem a exclusiva força de preservar, ou deixar de fazê-lo, toda a
qualquer norma produzida à luz da velha ordem jurídica.
1.3. Nada escapa à força de construção e ao mesmo tempo de demolição normativa
da Constituição originária, no sentido de que tudo que ela disser de forma
expressa ou até mesmo implícita passa a vigorar como norma jurídica e todo o
Direito anterior que não estiver de acordo com ela deixa de vigorar como norma
jurídica ( princípio da instantânea perda de eficácia
das normas não recepcionadas pela nova ordem constitucional ). É exprimir:
todas as relações possíveis e imagináveis estão à mercê da Constituição e por
isso é que se pode ajuizar que contra ela não há direito adquirido.
2. A emenda constitucional como
norma que se põe a meio caminho do Direito
2.1. Não é bem isto o que sucede com as emendas à Constituição,
que já se encontram a meio caminho do Direito positivo. Seu órgão de elaboração
é destituído da característica de instância exclusivamente normante,
exatamente porque já derivado da primaria manifestação de vontade normativa
daquele que elabora a Constituição. Daí não se lhe poder reconhecer a natureza
de um verdadeiro poder constituinte, como ensinava GEORGE BURDEAU e como
insistem na diferenciação GEORGE MIRANDA e JOSÉ GOMES CANOTILHO.
2.2. Pois bem, por não ser possível conhecer o órgão de produção das emendas
constitucionais a ontologia de um verdadeiro poder constituinte, mas apenas a
de um poder reformador, é centro deliberativo que não exercita a plenitude de um
poder correlatamente desconstituinte. Ele não zera a
contabilidade jurídica anterior e daí a compreensão de se tratar de um aparelho
decisório que não tem a força de ignorar de todo a Constituição preexistente,
pois somente pode normar nos termos em que pela
Constituição mesma já se encontra normado.
2.3. Daqui se conclui, obviamente, que a permanência ou não de um direito já
adquirido é matéria que se equaciona, antes de tudo, à face do originário Texto
Maior. E não das emendas à Constituição, propriamente. É sempre necessário ver
se existe, no assoalho da própria Constituição, um regime específico para o
chamado direito adquirido, imune a incidência das próprias emendas.
3. A subsistência do direito
adquirido ante as emendas constitucionais
3.1. Anotada a diferenciação, para logo se percebe que a
afirmativa dos que negam a sobrevivência do direito adquirido, ante as emendas,
é feita com apoio na intelecção de que a lei é que está proibida de
desrespeitar esse tipo de direito. Não as emendas, que têm hierarquia superior
à da lei.
3.2. É como se pronuncia PAULO MODESTO, em recente e precioso estudo sobre o
tema, do qual reproduzimos, o seguinte trecho: "O direito adquirido, por
conseguinte, ao contrário do que alguns órgãos de imprensa teimam em dizer, não
é garantia dirigida ao poder constituinte, originário ou reformado, É garantia
do cidadão frente ao legislador infraconstitucional, utilizável para impedir a
eficácia derrogatória da lei nova em face de situações jurídicas constituídas
no passado por leis ordinárias ou leis complementares"(em REFORMA
ADMINISTRATIVA E DIREITO AO REGIME DA FUNÇÃO PÚBLICA, pg. 7 ).
3.3. Ocorre que não nos parece inteiramente acertado esse modo de pensar a
Constituição de 1988. As emendas têm força impositiva superior a da lei - certo é dizê-lo -, mas nem por isso estão
liberadas da vedação constitucional da imposição de prejuízo ao direito já
adquirido pelo respectivo titular. Se elas não foram incluídas na disposição
literal do inciso XXXVI do art..5° da Magna Carta ("a lei não prejudicará
o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada"), foi pela
principal razão de que o direito ali referido é exclusivamente o concedido por
lei. Não o concedido pela Constituição, diretamente.
3.4. Com efeito, o direito adquirido a que se referiu o mencionado dispositivo
constitucional foi o conferido por lei, exclusivamente, pois os direitos
conferidos pela Constituição mesma, de modo pronto a acabado, não se encontram
à mercê da lei. A lei não pode desconsiderar os direitos objetivos que o
próprio Texto Magno plasmou de todo, sem que ele mesmo admitisse a menor
constrição por via legal, como, por exemplo, os constitutivos da liberdade de
manifestação do pensamento, de reunião e de sindicalização, ou os consistentes
na estabilidade dos servidores públicos civis e na irredutibilidade dos
respectivos vencimentos.
3.5. Agora, como a lei poderia tomar o que ela mesma deu, segundo o princípio
de que a lei posterior revoga a anterior, a Constituição entrou no circuito
para impedir o "toma-lá-dá-cá". Isto, sempre que o titular do direito
abstratamente concedido já houver preenchido, em concreto, as respectivas
condições de exercício ( direito adquirido, portanto,
a significar permanência de efeito pontual de norma já riscada do mapa jurídico).
4. A permanência do direito
adquirido como forma de manifestação do princípio constitucional da segurança
jurídica.
4.1. Assim dispôs a Constituição, no prefalado
inciso XXXVI do art.5°, como uma das formas de particular manifestação do
princípio da segurança jurídica. Princípio, esse, de logo entalhado no
"caput" do mesmo artigo, no capítulo versante
sobre direitos e garantias marcantemente individuais, e por isso mesmo,
subtraído ao poder legiferante do Congresso Nacional, ainda que agindo este
como poder reformador. É a vedação que se contém no inciso IV do § 4° do art.
60, nestes esclarecedores termos:
"Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV - os direitos e garantias individuais".
4.2. Ora bem. se o princípio constitucional da
segurança abarca o direito que se adquire por simples disposição legal, quanto
mais o direito que se adquire por disposição nuclearmente constitucional... Ou,por outra, se a Constituição recusasse aos direitos por
ela mesma conferidos a cota de segurança que decididamente emprestou aos
direitos obtidos por lei, estaria a hierarquizar os direitos adquiridos em
constitucionais e legais, para privilegiar estes últimos.
4.3. Em diferentes palavras, a Constituição estaria a se proclamar lei menor,
em tema de direitos adquiridos, reservando o designativo de lei maior para a
lei ordinária ou complementar, em igual matéria. Linha de interpretação que nos
parece rejeitável, por desconsiderar o vinculo
funcional direto entre a obra do verdadeiro poder constituinte ( que é Constituição originária ) e a maior estabilidade das
relações jurídicas nela substanciadas, quando comparadas com as relações
instituídas por leis de um poder simplesmente constituído, como é o Congresso
Nacional.
4.4. Com este nosso modo de ver as coisas, não estamos negando que as emendas
possam prejudicar (por modificação ou supressão )
certos direitos subjetivos que não façam parte da relação dos expressamente
nominados como "direitos e garantias individuais". O que estamos a
afirmar é que tais direitos, uma vez adquiridos, seja qual for a respectiva
natureza ( direito social, político, funcional, etc ), não podem mais ser lesionados por efeito de reforma
constitucional. A normatividade das emendas, no caso, já nasce etiquetada com o
timbre do "doravante", e jamais com o timbre do "desde
sempre".
5. A justificativa lógica de cada
remissão constitucional à lei e não ás emendas.
5.1. É enganoso pensar, assim, que a interdição da lei para
ofender certos direitos ou garantias subjetivas venha sempre a significar
liberação das emendas constitucionais para fazê-lo. Uma coisa não puxa a outra,
necessariamente, por que há justificativa lógica para o fato em si da remissão
constitucional explícida à lei.
5.2. Só para ilustrar este nosso enunciado, pense-se na regra constitucional
que proíbe a retroatividade da lei penal, salvo para beneficiar o réu. Ou no
preceito de que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia
cominação legal. Ou, ainda, no dispositivo que veicula a norma interditante da lei quanto à possibilidade de excluir da
apreciação do poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Por que tanto
chamamento expresso à lei- Simplesmente, porque a Constituição reserva para a
lei a conformação de matéria penal, assim como de matéria processual, seja esta
de natureza igualmente penal, ou civil, conforme a seguinte voz de comando:
"Art.. 22 Compete privativamente à União
legislador sobre:
I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo,
aeronáutico, espacial e do trabalho".
"Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da
República, não exigida esta para o especificado nos
arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União (...)
".
5.3. Pois é esse mesmo fundamento racional que está na base da citação
da lei, alusivamente à interdição de ofensa ao direito adquirido. É que o Texto
Magno convocou expressamente a lei para criar direitos subjetivos, como,
"verbi gratia", os atinentes a trabalhadores urbanos e rurais (art.
7° 1, X, XI, XIX...) e à isonomia entre os servidores públicos civis da
Administração Direta ( § 1 ° do art. 39). Se não
proibiu literalmente as emendas de retroagirem, foi porque também não autorizou
expressamente que elas ampliassem a pauta dos direitos já constitucionalmente
deferidos.
5.4. Salta à evidência, então, que não é pelo fato de haver citado a lei, e não
as emendas, que a Constituição esteja a liberar estas últimas quanto àquelas
proibições. Além de dever pesquisar sobre a razão específica da citação
constitucional da lei, intérprete não pode esquecer que é justamente a lei a
forma usual ou cotidiana de se inovar a Ordem Jurídica (não de se fundar essa
Ordem, claro). As emendas são extraordinárias, episódicas, e não é por outra
causa que a "Lex Fundamentalis" deixa de
indicar os assuntos por elas reguláveis.
5.5. Deveras, as emendas constitucionais se caracterizam, não pela indicação
das matérias que lhes são reservadas, mas pela indicação das matérias que lhes
são proibidas (cláusulas pétreas). Já as leis são numerosamente referidas pela
Constituição, tanto para o efeito de poder conformar certas relações, quanto
para o efeito de não poder fazê-lo, exatamente porque a Ordem Jurídica tem na
lei o seu elemento próprio de dinamização, a partir da peregrina regra de que
"ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei" (inciso II do art. 5°. da Carta
de Outubro).
5.6. Seria até o caso de se perguntar: só porque a Constituição apenas,
mencionou a lei como fonte de obrigação positiva ou negativa, as emendas
estariam proibidas de obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa-
Clarissimamente que não! A Constituição calou quanto às emendas, tão somente
porque em nenhum momento delas falou (a não ser por implicitude)
como veículo de concessão de direitos subjetivos, ou instrumentos de imposição
de deveres. E também porque delas não fez - insista -se- mecanismo usual de
regulação jurídica da vida coletiva, tanto que dificultou sobremodo o processo
da respectiva gestação. Ao contrário do que fez com a lei, cujo processo de
elaboração é comparativamente simplificado e cujo aptidão conformadora é
abrangente de todas as matérias de competência da União ( tal
como se deduz da letra do art.48, ao falar de "sanção"do
Presidente da República, ato de controle que não faz parte do processo das
emendas).
6. O direito adquirido como fato
bloqueador da produção das leis e das emendas.
6.1. Isto mesmo é de se entender quanto à interdição da lei para
prejudicar o direito já adquirido. A omissão do vocábulo "emendas"
não significa ordem , diversa daquela que prevalece
para a lei. "O vento que venta lá é o mesmo que venta aqui", pois o
que importa preservar é a inteireza do principio da
segurança das relações jurídicas, que tem na intocabilidade do direito
adquirido uma das suas mais expressivas manifestações pontuais.
6.2. Daqui resulta que defender a tese da aptidão das emendas constitucionais
para a infligência de dano ao direito adquirido, ou
para definir crimes ou cominar penas inexistentes à época da materialização dos
atos humanos que venham a sancionar, ou ainda para agravar penalidade já fixada
por sentença condenatória em fase de execução, tudo sob fundamento do silêncio
da Constituição quanto à palavra "emenda", defender esse tipo de tese
é descambar para o reducionismo ou a dessubstancialização
do princípio da segurança jurídica, relativizando o que a Lei Maior concedeu, a
esse respeito, como princípio absoluto.
6.3. Numa frase, incorrer nessa prática relativizadora
ainda não é abolir pura e simplesmente o direito individual da segurança, mas
não foi apenas isto o que a Constituição proibiu. A Constituição fez muito
mais, porque proibiu que se discutisse a proposta de emenda tendente a abolir
os diretos e garantias daquela espécie individual ( entre
outras matérias intangíveis). E por tendência há-de
se entender a propensão, a vocação, a inclinação, o propósito velado, ou
obliquo. ou mesmo diferido, de infligir redução de
substância na originária carga protetiva da norma constitucional erigida à
suprema dignidade de cláusula pétrea.
6.4. Em síntese, a norma constitucional veiculadora da intocabilidade do
direito adquirido é norma de bloqueio de toda função legislativa
pós-Constituição. Impõe-se a qualquer dos atos estatais que se integram no
"processo legislativo". sem exclusão das
emendas.
7. Considerações Finais
7.1. A guisa de remate, que não se estranhe o fato de a
subsistência do direito adquirido implicar ultraoperatividade
tópica de uma lei que se tomou incompatível com emenda constitucional, porque
esse tipo de ultraoperatividade foi antecipadamente
ressalvado pela Constituição originária, no estratégico inciso XXXVI do art.
5°. Mera conseqüência lógica do irrefutável juízo de
que a Constituição originária tudo pode, inclusive para esse efeito de não
permitir o desfazimento de um direito cuja lei de concessão venha a colidir com
a futura emenda constitucional.
7.2. Em rigor de interpretação, a lei cuja materialidade venha a ser abalroada
por emenda constitucional já não prossegue como centro de imputação jurídica.
Perde a eficácia. Mas o direito por ela outorgado sobrevive, incólume, desde
que já inscrito no rol dos adquiridos. Com o que não se tem a
"invenção" de uma nova cláusula pétrea, mas simplesmente a
compreensão de que a cláusula pétrea dos direitos e garantias individuais é
suficientemente lata para incorporar a ultraatividade
de norma legal produtora de um direito subjetivo cujas condições de gozo já se
encontrem factualmente preenchidas.
7.3. Tão dilatado é o raio de abrangência material da cláusula em apreço, que a
Lei das Leis chegou a embutir no inventário dos direitos e garantia individuais
"outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos
tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte" (§ 2° do art. 5°). E é claro que nos mencionados princípios foi
encartado o da segurança das relações jurídicas, a patentear a cientificidade daquele
tipo "generoso"de interpretação a que se
reportava SEABRA FAGUNDES.
7.3. Enfim, é o nosso jeito pessoal de ver as coisas, sem nos deixar abater com
a jurisprudência contrária que se formou à sombra de passadas Constituições.
Não, porém, da atual, exigente de formação de novos quadros mentais.
(*) Carlos Ayres Brito é jurista e professor de Direito Constitucional da
Universidade Federal de Sergipe
(**) Valmir Pontes Filho é jurista, professor de Direito Constitucional da
Universidade de Fortaleza e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Direito
Administrativo.