DA
OMISSÃO POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO DO EXERCICIO DO PODER REGULAMENTAR:
POSSIBILIDADE DE CONTROLE JUDICIAL
JOSÉ
VIDAL SILVA NETO
Procurador
do Município de Fortaleza
SUMÁRIO:
I - INTRODUÇÃO;
II - PRINCÍPIO DA LEGALIDADE;
III -DISCRICIONARIEDADE E VINCULAÇÃO;
IV - PODER REGULAMENTAR: NATUREZA;
V - CASO CONCRETO;
VI - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.
1. INTRODUÇÃO
Pretende-se em breve digressão estabelecer a natureza do ato
administrativo de exercício do poder regulamentar-se discricionária ou
vinculada- e daí retirar as conseqüências jurídicas
atinentes à possibilidade de incidência do controle jurisdicional sobre a
omissão injustificada de seu exercício pela autoridade a tanto incumbida, seja
a título de responsabilidade patrimonial ou criminal, seja através de sentença
que remedie a própria não regulamentação do comando
legal. Nesse intuito, parte-se inicialmente do estudo do princípio da
legalidade, para, ao depois, esclarecer os conceitos de atribuição regulamentar
e discricionariedade e se o segundo caracteriza o desempenho da primeira,
analisando-se, ao final, um caso concreto, à luz das conclusões teóricas antes
obtidas.
2. PRINCIPIO DA LEGALIDADE i
Imbrica-se estreitamente tal noção com o surgimento histórico do
Estado-de-Direito. Diga-se como advertência essencial que Estado-de-Direito não
é apenas um ente regulado pelo direito ou por um determinado ordenamento. Seria
tautologia de todo descabida e inútil, assente que toda organização política se
funda em determinada concepção de Direito, desde o regime de força à
democracia. Sob esse ângulo, não se diferenciam. Na medida em que o poder,
qualquer que ele seja, almeja à legitimação, inexistindo aquele que a priori se
funde na falta de razão, usurpação ou arbítrio, todo poder se arroga o direito
de mandar e, assim, os Estados historicamente dados são, sem exceção,
Estados-de-Direito. Ou, na expressão kelseniana, Estado e Direito são uma e a
mesma coisa.
Em outra acepção, distinguem-se os Estados pelo ideal de Direito que inspirou
seus ordenamentos, i.é., pelos princípios axiológicos
de direito natural que se localizam no cerne de seus sistemas jurídicos.
Exemplificando, o direito absolutista-feudal tem como sua pedra basilar o
princípio da autoridade incontrastável do monarca, justificada na chancela
divina de uma soberania sem limites; o direito liberal-burguês, base das
instituições modernas, sustenta-se no princípio democrático, segundo o qual a
origem do poder e do direito é a vontade geral da coletividade a cuja regulação
se volta.
O Direito Administrativo hodierno nasce como manifestação direta das teorias
jurídicas da Revolução Francesa, que firmaram o conceito valioso de Estado-de-Direito.
Em linhas concisas, trata-se o mesmo de que o Estado se assujeita,
na gama múltipla de sua atividade, aos parâmetros da lei (ai abrangidos a
Constituição, a lei e os atos normativos inferiores), gozando a asserção de
igual validade para a execução de competência vinculada ou discricionária.
Isso deriva do axioma da igualdade dos seres humanos: se é dessa forma,
impossível que a uns pertença todo o poder ou maior dose dele, e a outros nada
ou menor quantidade. A Potestade Estatal é a resultante da reunião das ínfimas
parcelas de poder dos indivíduos, idênticas entre si. A CF o expressa nos
seguintes termos: " todo o poder emana do povo..." (art. 2.°) e
"todos são iguais perante a lei...'' (art. 5.° caput).
Advém; outrossim, o perfil do Estado-de-Direito, da constatação de que quem tem
poder tende a dele abusar, sendo o melhor antídoto dessa inevitável propensão a
divisão do poder ou de suas funções (legislativa, executiva e judiciária) entre
vários detentores, de modo a que uns controlem os outros, num sistema de freios
e contrapesos, limitando-se o poder pelo próprio poder. Com a conjunção dos
consectários da soberania popular e da tripartição do exercício do poder, a
atividade administrativa centralizada no Poder Executivo se cingirá estritamente
a cumprir a vontade normativa, expressão da vontade geral, fixada na
Constituição e leis (emanadas do órgão criado na CF para legislar e de acordo
com rito aí definido para sua criação).
Ainda mais: a lei não vincula a Administração apenas negativamente, como
acontece ao particular, que tudo pode fazer se não proibido pela norma legal.
Vincula-a positivamente: os atos do Poder Público devem ser por ela permitidos
ou autorizados.
Não há espaço em branco na lei que a Administração possa livremente preencher,
em atuação livre de conformação jurídica. A conseqüência
irrogada ao comportamento administrativo contra lagem
ou praeter legem é
semelhante, cifrando-se na nulidade plena de que o ato se macula, ao contrário
da conduta do particular, que só comporta essa solução em caso de contradição
com a lei.
Dessa pecularidade de aplicadora de oficio de
dispositivos legais, de plano representativos de interesses públicos ou
coletivos relevantes, revela-se claramente o papel precípuo da Administração: o
de curadora de interesses alheios, que não são dela nem definidos por ela, mas
da sociedade e estipulados mediante seus representantes no Poder Legislativo.
Há para os agentes estatais uma finalidade a ser buscada - a legal - cujo
cumprimento classifica-se de função, pois deve ser obrigatoriamente atingida
(dever), em benefício de outrem, os administrados. No fito de desincumbir-se de
seus misteres, defere-se aqueles competências e poderes, de que não podem
dispor a seu alvedrio, porque o exercício delas se vota completamente à
implementação, do dever legal de satisfazer necessidades da comunidade, não dos
instrumentalizadores do poder.
Por conseguinte, o poder, não importando se discricionário ou vinculado, é
sempre o instrumento secundário, isto sim, do dever de alcançar um escopo legal
e dessa baliza não se afasta. A discricionariedade ou a vinculação do ato não
divergem na submissão ou não à lei, já que ambas lhes são firmemente
obedientes, mas se separam em relação ao modo peculiar pelo qual a lei regula o
exercício das duas.
3. DISCRICIONARIEDADE E VINCULAÇÃO
A atuação do ente administrativo é vinculada quando a norma a ser
aplicada predetermine em abstrato o único comportamento a ser tomado nos casos
concretos, estando o fato típico condicionador da incidência da regra e o
mandamento que a ele se associa de antemão descritos integralmente, sem dar azo
a dúvida quanto a seu reconhecimento.
Ao reverso, é discricionária em face da maneira como a regra legal regeu o ato
administrativo, permitindo ao agente apreciação subjetiva sobre o que fazer,
gerando pelo menos mais de uma opção de como agir na espécie, não havendo
critério puramente objetivo a apontar a providência ou providências corretas a
tomar, ou deixando que escolha alguma mediante juízos de conveniência ou
oportunidade.
A discricionariedade é ensejada em um dos momentos de produção do fenômeno
jurídico, desde a elaboração da norma até sua efetivação no mundo prático.
Basta que a hipótese de incidência não seja desenhada com detalhes ou os
conceitos que a definam sejam fluidos para facultar a multivocidade
de aplicações razoáveis. Produz-se discricionariedade também no núcleo do
mandamento, abrindo ensanchas a que, embora delineada objetivamente a fattispécie, o administrador decida se aplica ou não a
norma, ou escolha o instante certo de aplicá-la, ou lhe confira margem de
escolha na forma sob que se revestirá o ato, além de autorizá-lo a selecionar
entre duas ou mais alternativas de atos a que melhor amoldar o caso concreto.
Acabam-se aqui as variantes elencáveis de discricionariedade.
No entender de Celso Antônio Bandeira de Mello, cabível o despontamento de
discricionariedade, ao lado das cogitações acima, na finalidade da norma,
inteligência esta em descompasso com a hegemonia
doutrinária. Na verdade, a imprecisão de expressões vagas como "moralidade
pública" interfere na percepção do momento da ocorrência do pressuposto
fático.
Exemplifique-se com a seguinte norma. "Será expulso da praia o banhista
que usar roupas indecorosas" . A incerteza quanto
ao fato reside efetivamente na qualificação valorativa que o envolve: a indecorosidade é sinônimo de imoralidade, protegendo a
norma e a moralidade pública de uma dada época. Antes de saber o que é
indecoroso, o administrador se debruçará sobre a noção da finalidade albergada
na norma: o conceito de moralidade pública.
4. PODER REGULAMENTAR: NATUREZA
Poder regulamentar, para os fins estreitos desse estudo, é a
competência da Administração de emanar atos normativos, ou seja, de caráter
genérico e abstrato, para que uma lei possa ser executada e surta eficácia
concreta. Na nossa opinião, só o regulamento estritamente necessário a
preencher as condições de plena aplicabilidade da lei é que merece esse nome.
Lei que não demande complementação normativa e contenha em si todos os
requisitos de produção dos efeitos que lhe são inerentes dispensa
regulamentação, acarretando a inocuidade do regulamento porventura feito ou a
sua anulação, se em algo pretender, mesmo indiretamente, alterá-la.
Há uma escola que faz repousar o fundamento jurídico do poder regulamentar na
atribuição orginária e discricionária de que são
portadores os órgãos da Administração. Dimanaria a prerrogativa da natureza
ínsita da administração como aplicadora dinâmica da lei, prescindindo-se de delegação
, legislativa..
A que lhe é oposta, contrariamente, compreende a atribuição regulamentar como
uma competência derivada e concebida como autêntica legislação, que seria, em principio da órbita do Legislativo, não fosse a delegação
deferida em sede constitucional ou legal ao Executivo, a primeira, genérica, a
segunda, específica, restrita à matéria versada em cada lei e prevista
expressamente.
A doutrina da competência orginária é a que visamos
essencialmente criticar, devido aos inúmeros abusos administrativos
perpetráveis licitamente, se o exegeta a adotar, como veremos adiante. Com
efeito, ela retroage aos princípios do direito administrativo monárquico,
incinerando o dogma da rígida separação de poderes bem assim o da subordinção completa da Administração ao quadro normativo,
da lei. Ora. competência administrativa não oriunda de
fundamento legal ou constitucional expresso, com o oferecimento ao agente
público, apenas por exercer poder de liberdade em tudo que a lei não proibir,
equivale a retirar-lhe todas as peias garantidas pelo regime democrático, pois
ao legislador eleito pelo povo ficaria impraticável gastar tempo integral em
editar normas constritoras e proibitivas dos exageros do Leviathan.
De fácil simulação a realidade nesse cenário jurídico kafkiano; duas ordens
normativas contraditórias duelariam pela interferência na vida privada, uma
baseada no princípio da autoridade, outra, a do legislador eleito, externaria
os últimos suspiros da representatividade popular.
A nosso ver, o fundamento da atribuição regulamentar fixa-se em pedestal
superior ao legal, na Constituição Federal, em um de seus corolários primordias: o da própria tripartição de poderes, dele se
podendo deduzir para a generalidade dos órgãos administrativos encarregados de
fazer cumprir as leis atinentes ao exercício de suas competências. Se ao
Executivo ficou reservada a tarefa precípua de executar os mandamentos legais,
a que não cabe se furtar e o legislador, em sua faina, elabora lei inexeqüível sem complementação normativa, a possibilidade
de regulamentação provocaria dupla violação à CF, a uma ,
pela negação de vigência e aplicibilidade de lei
regulamente promulgada, a duas, pela castração da finalidade-mor da
Administração, a concretização do interesse público, tão -somente localizado na
lei ineficaz. Infere-se, portanto, que o preceito da tripartição de poderes
coloca claramente a competência regulamentar a serviço dos órgãos
administrativos no cumprimento de suas peculiares funções. Além dessa
competência genérica, estatui a Carta Magna duas específicas: a do Presidente
da República, no tocante à regulamentação para a fiel execução de qualquer lei
saída do Congresso Nacional e a dos Ministros de Estado, no que tange à
expedição de instruções para a execução de leis, decretos e regulamentos
(respectivamente, art. 84, inc. IV e art. 87, inc. II).
Bem vê-se que inexiste margem de discricionariedade estendida ao
administrador encarregado de exercer competência regulamentar. Esta delineia
seus contornos exaustivamente no Estatuto Político. Diga-se, de passagem, que
certa e determinada lei está também apta a criar em seu bojo competência
regulamentar e deferi-la a um órgão individualizado em detrimento dos demais,
se não desbordar do âmbito legal de suas competências.
Resumindo: no ordenamento brasileiro, há três fontes que autorizam o exercício
de poder regulamentar:
a) uma, constitucional genérica (art. 2.° CF), que se materializa no órgão a
que o ordenamento incumbiu a aplicação da lei sob mira, independente de
autorização nela ou em outra expressa;
b) a segunda, desdobrável em duas específicas, também constitucionais, a do
Presidente, englobadora de quaisquer leis e a dos
Ministros de Estado, relativa unicamente às leis que tragam assunto próprio de
suas pastas:
c) a terceira, legal, em cada lei que pugnar expressamente por sua
regulamentação, se o órgão escolhido não repugnar ao quadro geral de
competências antes demarcado.
Note-se, então, que o exercício de função regulamentar não comporta
discricionariedade. À hipótese objetiva de existência de brechas na lei, que
inviabilizem sua aplicação ao caso concreto pela Administração, a só aí, a
Constituição ou a lei ordenam taxativamente ao agente estatal que desempenhe
atividade normativa e a complemente, nos exatos termos e limites permissivos da
eficácia dos fins inspiradores de sua criação. Nada mais e nada menos, sob pena
de poda dos excessos ou complementação obrigatória do que falta. Não se venha
argumentar com a obscuridade ou ignorância da autoridade responsável no respeitante
a saber quais dispositivos merecem complementação e quais não e como será ela.
Mesmo que falte critério objetivo para estipulá-los, impedindo delimitar a
específica regulação ideal, em conteúdo e extensão, o que é difícil de conceber
em se tratando do cotejamento de normas positiva e objetivamente. cristalizadas, é cediço que esse resto de discrição (ver n.° 1 e 2) terá de ser objeto do dever discricionário de colmatação, que cumpra a função da Administração de atingir
fins alheios a ela em si considerada (como organização composta de indivíduos
funcionários), mediante o adimplemento à lei, supostamente arraigada de
interesses da comunidade. Ou melhor: há vinculação, em qualquer caso, na
decisão de exercer ou não competência regulamentar, não restando margem à
vontade do administrador quanto a pô-la ou não em prática. Retiradas essas
asserções da investigação teórica, impende vertê-las na vida.
5. CASO CONCRETO
A Lei 6.874, de 3.12.80 determinou, em inovação à ordem
legislativa, que as empresas exploradoras de serviços de telecomunicações
editassem catálogos telefônicos através de contratos com empresas
especializadas, mediante processo licitatório a ser descrito em regulamentação
do Ministério encarregado.
Depois de prazo razoável, nada tinha sido providenciado, criando sérias
dificuldades para as concessionárias de serviços telefônicos, que necessitam da
atualização periódica da lista de assinantes no sentido de prestarem
eficientemente o serviço.
Escorado no estudo feito acima, fica evidente que a Administração não goza de
um tico de liberdade ou discricionariedade para revestir de licitude a omissão
da regulamentação determinada em sede legal. In casu.
não propriamente a ordem legislativa e o seu
descumprimento continuado que caracterizam o abuso e desvio de poder, mas a
constatação de que a real falta de regulamentação do procedimento licitatório
vem pondo em xeque parte da eficácia da lei, cuja execução é tarefa
constitucional da Administração, e a sua finalidade legal, a continuidade de
prestação eficiente do serviço público, pela qual impõe-se, no exercício de
função, pugnar. O seu poder de emanar ou não o regulamento adere, não à vontade
de quem o exerce, e sim. ao atendimento do interesse
dos usuários do serviço. Se, para tanto, urge que seja editado o regulamento, a
omissão desborda dos lindes da legalidade e é remediável através de mandado de
segurança, a desembocar em sentença mandamental que ordene a imediata feitura
do ato abusivamente sonegado em face da Constituição. Não aceitar tal interpretação
seria condenar, em despropósito flagrante, a eficácia dos comandos legislativos
à chancela do Executivo, em contrariedade absurda ao princípio democrático e ao
da separação de poderes. Isso não exclui o processamento da autoridade por
crime de responsabilidade e a cobrança de danos patrimoniais em sede hábil.
6. BIBLIOGRAFIA:
1. Gasparini,
Diógenes - "Poder Regulamentar", RT, SP 1982.
2. Meirelles, Hely Lopes - "Estudos e Pareceres de Direito Púublico", vol. VII, RT, SE 1983.
3. Mello, Celso Antônio Bandeira de - "Discricionariedade e
Controle Jurisdicional", Malheiros, SP, 1992.
4. Enterria, Eduardo Garcia de e Fernandez,
Tomás-Ramón - "Curso de Direito Administrativo", RT, SP, 1991.
5. Cléve, Clémerson
Merlin - "Atvidade Legislativa do Poder
Executivo no Estado Contemporâneo e na Constituição de 1988.