DO
DESFAZIMENTO DO ATO ADMINISTRATIVO VÁLIDO POR INTERESSE EXCLUSIVO DO PARTICULAR
ANDRÉA
PONTE BARBOSA
Procuradora
do Município de Fortaleza
SUMARIO;
I - Introdução;
II - Anulação do Ato Administrativo;
III - Revogação do Ato Administrativo;
IV - Conclusão;
V - Referências Bibliográficas.
I- INTRODUÇÃO:
Nossa exposição objetiva, substancialmente, averiguar a
possibilidade de a Administração Pública revogar, a pedido do particular, um
ato administrativo por ela emanado a requerimento daquele e em seu benefício,
inobstante ter o ato reunido os elementos suficientes à sua validade,
tornando-se perfeito e eficaz.
Cumpre esclarecer que estes questionamentos nos interessaram a partir da
análise de um processo administrativo no qual um servidor aposentado solicitou
a anulação ou revogação da averbação, por ele requerida e levada a efeito pela
Administração, de um tempo de serviço prestado a outro órgão.
Alegou, para tanto, que o período laboral averbado findou revelando-se
desnecessário para sua aposentação por haver ele, empós, implementando o tempo
exigido em lei.
Revogação e anulação são modos de desfazimento do ato administrativo que não se
confundem, nem podem ser empregados indistintamente. A esse respeito é a Súmula
473 do Supremo Tribunal Federal.
"A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios
que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los,
por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos,
a ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial".
Como vemos, é comum a preocupação dos juristas em que a Administração, no afã
de defender os interesses da coletividade, não desrespeite os direitos
adquiridos pelo particular. É nesse sentido que, usualmente, são analisadas as
hipóteses de revogação de um ato administrativo, impondo freios à atuação do
poder público. A matéria aqui desenvolvida distingue-se por não ser usual que o
interesse na revogação do ato administrativo transfira-se ao particular por ele
beneficiado.
II - ANULAÇÃO DO ATO
ADNBNISTTATIVO
Anulação é o desfazimento de um ato administrativo ilegal ou
ilegítimo pela Administração ou pelo Poder Judiciário.
Com efeito, o ato só pode ser declarado nulo se lhe faltar em requisitos
substanciais ou se ferir princípios de direito, porque é com base neles que se
pratica o ato. Sendo, entretanto, o ato administrativo perfeitamente acabado e
plenamente eficaz não cabe a aplicação de sua nulidade. Um ato que reúne todos
os elementos necessários à sua exeqüibilidade e que
produziu seus regulares efeitos, torna-se um ato perfeito, legal, insusceptível,
portanto, de ter decretada a sua anulação.
Oportuno invocar o autorizado juízo de Henrique Carvalho Simas,
in Manual Elementar de Direito Administrativo, 3ª ed. Liber
Juris, ps. 137 e 138.
"O ato administrativo pode ser encarado tanto sob o aspecto da legalidade
ou legitimidade, como sob o aspecto do mérito ou merecimento. Assim, ele se
extingue, se desfaz, é eliminado, tendo em vista esses dois aspectos. Daí
também existirem duas formas diferentes de desfazimento dos atos
administrativo, quanto à legalidade a quanto ao mérito: a anulação e a
revogação.
A anulação consiste no desfazimento, na extinção, na eliminação do ato
administrativo, atendendo-se a considerações relacionadas como a sua
legalidade. Se o ato administrativo, que gravita em torno da lei quanto aos
seus elementos constitutivos, dela discrepa, este ato será nulo, destituído de
validade jurídica e, conseqüentemente, ineficaz".
De tudo isto, concluímos que não se há de falar em anulação de um ato
perfeitamente legal e legítimo. Analisaremos a seguir a possibilidade de
revogação a pedido do particular de um ato administrativo emanado em seu favor.
III- REVOGAÇÃO DO ATO
ADNBNÌSTRATIVO
Conforme os ensinamentos do mestre Hely Lopes Meirelles, in
Direito Administrativo Brasileiro, 16a ed., RT, p. 179, "revogação é a
supressão de um ato administrativo legitimo e eficaz, realizada pela
Administração - e somente por ela - por não mais lhe convir a sua existência.
Toda revogação pressupõe, portanto, um ato legal e perfeito, mais inconveniente
ao interesse público".
Assim, a Administração Pública não deve fazer uso de sua faculdade de
extinguir um ato administrativo, senão quando o interesse público o exige. A
inconveniência do ato, neste caso, deve necessariamente atingir a própria
administração. Um ato administrativo inoportuno e inadequado somente ao
particular e que em nada aflige o ente público não há que ser revogado.
Por outro lado, consoante o artigo do insigne Carlos Ari Sundfeld, "Discriminariedade e Revogação do Ato Administrativo",
in Revista de Direito Público n.° 79, p. 132 e ss, sendo o ato administrativo válido. perfeito
a eficaz. torna-se ele irretratável, desde que
mantidas as condições que o produziram ou se os motivos alegados para retirar
uma autorização já eram conhecidos quando concedida esta.
Se o ato for válido, terá alcançado a finalidade pública. A revogação que
dispõe contrariamente a este ato, não pode atender á
mesma finalidade. Tal revogação, portanto, atentaria contra o interesse
público.
Disciplinando igualmente a espécie, Manuel Maria Diez,, em seu "El Acto Administrativo ',1956, ps. 242 e 243, preconiza:
"A mudança no estado material das coisas justifica e revogação do ato
apenas quando se produz mutação na valoração concreta do interesse público que
se fazia no momento do ato. A divergência superveniente será juridicamente
relevante em função exclusiva do interesse público. A simples alteração do
estado de fato, imperante no momento de editar-se o ato, não tem, influência de
espécie alguma se não se modifica a avaliação do interesse público".
O modus procedendi da Administração face ao
administrado mudou consideravelmente depois da superação do Estado Autocrático
per um Estado de, Direito. A experiência histórica ensinou que uma larga margem
de poder autônomo, limitado unicamente pelos critérios de justiça do detentor,
favorecia antes o esmagamento e impotência do subordinado face à vontade
egoísta do mandante, do que o atendimento desinteressado do pleito justo do
cidadão. Para o homem comum, é preferível um órgão administrativo de que se
conheça mais ou menos antecipadamente a atuação, com base em um critério
objetivo, que não desça à equidade de cada caso concreto, do que um poderio
ilimitado e pleno de surpresa e insegurança, que era se sensibiliza com o
direito de uns, era despreza o direito de outros, isto muito mais do que
aquilo.
As idéias liberais partiram do fundamento de que é
melhor um Estado menos imponente, supostamente de todos e de ninguém, do que um
Estado de um só ou de um grupo e de ninguém mais. Surgiu ai a teoria de um
aparelho de poder controlado pelos Próprios destinatários de seus comandos,
consubstanciados na lei como presumível emanação do querer coletivo, gerada na
realidade per uma assembléia dos mais diversos e
fragmentários estratos sociais, nem sempre representativos dos anseios do
grupo. Com efeito, um Estado manietado pela ficção invertebrada da lei perde a
liberdade de fazer justiça em um caso especial. Mas os administrados ganham a
segurança de que nenhuma injustiça será praticada a não ser que prevista em
lei. Um Executivo servo da mediocridade do legislador, acarreta, na média, bem
menores malefícios do que a magnanimidade de um rei todo poderoso, sujeita à
volubilidade da natureza humana e não à voz de anjos do céu, muito longínqua para
ser escutada na Terra.
Na espécie em comento, os princípios de atuação do administrador num Estado de
Direito que o obrigam a fazer o que está na lei e nada além dela impedem que
ele revogue ato válido em atenção a interesse justo de particular, mesmo que a
revogação não atinja o interesse público. Isso porque a Administração, no
Estado de Direito, por prudência histórica, deve se ater à inércia, quando
nenhum interesse público está em jogo. Motivo sólido de tanta precaução é
evitar abrir qualquer margem de liberdade para que o detentor da competência
fique estimulado a proteger tantos interesses particulares, que esqueça dos
públicos. Ou pior: que passe a confundir os seus interesses particulares, as
suas metas individuais de justiça, ou de seus apaniguados, com os da sociedade
inteira. favorecendo aqueles em detrimento destes.
Conclui-se que é melhor preservar o rigor igualitário da lei em todas as
situações, inobstante a injustiça perpetrada isoladamente, do que afrouxar os
mecanismos legais devotados a afastar a injustiça constante que adviria de um
poder amplamente discricionário, incitador do arbítrio do agente usuário.
Acresce que, sendo incabível anular-se ato plenamente válido e eficaz, a
revogação, única figura que sobra para desfazer atos administrativos, não seria
capaz de satisfazer aos reclamos do particular, posto que sua eficácia seria ex nunc, não retroagindo à época da averbação para, como em
passe de mágica, fazer de conta que os anos excedentes do prazo mínimo de
aposentadoria não foram empregados na formação e concessão do ato de
afastamento do servidor. Assim preleciona Seabra Fagundes:
"A revogação opera da data em diante (ex nunc).
Os efeitos que a precederam, esses permanecem de pé. O ato revogado, havendo
revestido todos os requisitos legais, nada justificaria negar-lhe efeitos
operados ao tempo de sua vigência" (Apud Hely Lopes Meirelles, op. cit.
(Bibliografia), p. 180).
Ressalte-se, por fim, a lição de Paula da Costa Manso, em
"Revogação dos Atos Administrativos". Revista de Direito Público n.° 31, 1974, RT;
"São ainda, insusceptíveis de revogação atos cujos efeitos já se
extinguiram; atos exercidos em tempo certo, preparatórios de um provimento já
emanado ou os que se exaurem de um só vez, transformados seus efeitos jurídicos
em operações materiais" (grifei).
Procedendo a um parâmetro entre o texto acima reproduzido e a matéria em baila,
temos que o ato de averbação, além de ser um ato meramente preparatório de um
provimento já emanado (concessão da aposentadoria ao servidor), teve seus
efeitos extintos pela aposentação definitivamente deferida. A partir deste
momento, o instrumento, ao atingir sua finalidade, esgotou toda e qualquer
potencialidade de atuação, integrando, sem volta, o ato principal da
aposentadoria e perdendo o caráter subsidiário que tinha de simples averbação.
IV - CONCLUSÁO
No caso concreto por nós ventilado, ao solicitar a averbação de
seu período laboral, o servidor estava ciente de quais
efeitos iria este ato produzir, conhecia, por certo, quando e porque estes
efeitos se concretizariam. A averbação por ele solicitada só se tornou
desnecessária por ter ele continuado a desempenhar suas funções, mesmo já tendo
implementado o tempo suficiente à sua aposentadoria. Não houve mudanças nas
condições que produziram o ato. Ocorre que o servidor poderia ter utilizado um
direito subjetivo seu e, por motivo de foro íntimo, não o utilizou.
A Administração Pública estava inerte e foi movimentada pelo particular a fim
de lhe reconhecer um direito previsto em lei. Para tanto, o ente público
investigou se todos os requisitos para a feitura do ato de averbação estavam
presentes e julgou ser de interesse público proceder a este ato.
Levando em consideração que a revogação é a exclusão de um ato inconveniente ao
interesse público, proceder à revogação desta averbação, sem que tenham se
modificado as condições que a produziram, equivale a reconhecer que, à época da
feitura do ato, era inconveniente ao interesse público, o que não seria
verdade. Impossível, portanto, esta revogação.
V - REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
1. SIMAS,
Henrique de Carvalho. Manual Elementar de Direito Administrativo. 3a ed. Liber Juris.
2. MEIRELLES Hely Lopes, Direito Administrativo Brasileiro. 16a ed. RT
3. SUNDFELD, Carlos Ari. Discricionariedade e Revogação do Ato
Administrativo. Revista de Direito Público n.° 79. p.
132 e ss.
4. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de
Direito Administrativo. 4.a ed. Malheiros Editores.
5. ENTERRIA, Eduardo Garcia de. FERNANDEZ, Tomás Ramón. Curso de Direito
Administrativo. RT. 1a ed.
6. DIEZ, Manuel Maria El Acto Administrativo,
1956.
7. MALACHINI, Edson Ribas. Ato Administrativo, Juruá Editora Ltda.
8. MANSO, Paulo da Costa. Revogação dos Atos Administrativos. Revista de
Direito Público n.° 31,1974, RT