REFORMAS
ADMINISTRATIVAS
LUCIOLA
MARIA DE AQUINO CABRAL
Procuradora
do Município
Esta exposição tem como ponto de partida a análise de preceitos
constitucionais por demais debatidos, porém, freqüentemente, desrespeitados sob
as mais diversas formas.
Referimo-nos aos princípios da ISONOMIA, insculpido no art. 5.° caput da
Constituição segundo o qual "Todos são iguais perante a lei sem distinção
de qualquer natureza ..." e àqueles concernentes à Administração Pública,
colocados no texto constitucional, quer de maneira explícita (LEGALIDADE,
MORALIDADE, IMPESSOALIDADE e PUBLICIDADE) ou implícita.
Importa-nos, apenas, oferecer uma visão panorâmica acerca das variadas
hipóteses de infringência dos mencionados princípios, para, confrontando-os com
a realidade, posicionamentos e comportamentos do Poder Público estimular a
discussão e a reflexão sobre questões que nos são apresentadas no dia-a-dia e
que, no entanto, para a grande maioria dos cidadãos escapam a gravidade e
dimensão.
Dizer que vivemos uma crise de "cidadania", infelizmente, não é
novidade. O direito à vida, à liberdade, à honra e à intimidade são direitos
inerentes a personalidade humana, por isso mesmo denominados personalíssimos,
albergados constitucionalmente. Encontram-se todos eles dentre os Direitos e
Garantias Fundamentais, ocupando, destarte, posição tão relevante quanto o
direito ao tratamento isonômico, conferido que há de ser a qualquer cidadão em
um pais democrático.
Em um Estado Democrático de Direito que tem como fundamentos a cidadania, a
dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa, para citar apenas alguns, que consagra o princípio da legalidade
" ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei", como consectário natural, é impertativo o respeito aos
direitos e garantias fundamentais dos indivíduos ou se viverá uma democracia às
avessas.
Convém que se esclareça o seguinte: em um Estado Democrático de Direito, não é
somente o indivíduo que está obrigado ao cumprimento das leis, mas também o
próprio Estado a ela se submete, havendo-se, desse modo, em idênticas condições
ao particular. Este um primeiro aspecto que se quer enfocar.
Em um segundo momento, quer-se advertir que, como decorrência do princípio da
legalidade e que nos reportamos anteriormente, somente a lei pode limitar a
conduta do homem, restringir seus direitos ou privá-lo de sua liberdade.
Pode-se concluir que, em princípio, tudo será permitido ao particular, desde
que a lei não proíba e, que, qualquer procedimento em contrário constitui
violação de direito e, em última análise, ofensa ao texto constitucional.
O princípio da legalidade, assim explicitado, destina-se ao asseguramento dos
direitos e garantias fundamentais do cidadão. Esta proteção é erigida frente ao
próprio Estado e exercitado por meio de diversos instrumentos postos á
disposição dos cidadãos como o mandado de segurança, o habeas-corpus, o
habeas-data, o mandado de injunção etc., a fim de permitir que se expurguem os
excessos praticados pelo Poder Público, através de seus agentes. Arbítrio e
legalidade são coisas mutuamente excludentes incapazes de conviver lado a lado
em um Estado que se diz Democrático de Direito.
Este mesmo princípio da legalidade é encontrado no caput do art. 37 da
Constituição, desta feita inserto como orientador da conduta da Administração
Pública ao lado de outros como o da moralidade, da impessoalidade e da
publicidade, afora aqueles estatuídos implicitamente. É de se destacar, porém,
que o princípio da legalidade na esfera do Poder Público, se coloca em distinto
contexto, ou seja, é ele que deve ditar e de modo EXPLÍCITO sua atuação. Vale
dizer, ao Administrador Público só é lícito fazer o que a lei determina e, em
caso de omissão legal deve-se entender como NÃO PERMITIDO. Nesse sentido, o
eminente Hely Lopes Meirelles já ensinava que "o Administrador Público, ao
contrário do particular, não possui vontade própria". Isto decorre, como é
lógico, do fato de que ele não administra bens e interesses seus, mas
pertencentes à comunidade.
Repetindo mais uma vez as palavras do saudoso mestre ele é "mero gestor da
coisa pública e como tal está obrigado a prestar contas". Por essa mesma
razão, possui o dever de zelar o patrimônio administrado e de o fazê-lo com
eficiência por estar investido no exercício de função pública.
Com não menos brilhantismo e lucidez, Celso Antônio Bandeira de Melo diz muito
apropriadamente que "Quem exerce função administrativa está adstrito a
satisfazer interesses públicos, ou seja. interesses de outrem: a coletividade.
Por isso, o uso das prerrogativas da Administração é legítimo se, quando e na
medida indispensável ao atendimento dos interesses públicos, vale dizer, do povo,
porquanto nos Estados democráticos o poder emana do povo e em seu proveito terá
de ser exercido".
É de vital importância que se compreenda que o princípio da legalidade é que
deverá moldar os contornos da atuação do Estado, legitimando suas ações, pois cada
conduta em desconformidade com a lei, cada decisão adotada será considerar os
verdadeiros interesses públicos fere as bases do Estado democrático e aniquila
a sustentação do nosso ordenamento jurídico. E de que valerão então direitos e
garantias fundamentais em um Estado que não prestigia o respeito à ordem
político jurídica estabelecida'?
Este é o nosso questionamento no momento em que assistimos PACIFICAMENTE a uma
ruptura em nossa ordem jurídica. A isto que alguns chamam de Projeto de
Reformas Administrativas preferimos denominar de Projeto de Desvalorização do
Servidor Público. É fato que o servidor não é o único alvo das tão propugnadas
reformas, mas é indiscutivelmente o cerne de toda ela. A idéia, na realidade, é
antiga, a diferença é que agora foi oficializada. É impressionante a habilidade
de determinados políticos e de pseudo - juristas que se propõem a criar toda
sorte de artifícios para sucatear o serviço público e extinguir, se possível,
com a figura do servidor.
Mas, penso eu, que não vivemos em uma republiqueta, que ainda existem pessoas
sérias e determinadas a não se acomodar a esta deplorável situação. Entretanto,
é preciso que se faça algo com urgência, que as pessoas procurem se
conscientizar da gravidade do momento e, sobretudo, que procurem se esclarecer
acerca de todas essas questões, antes de aderir à onda de modismo instalada
entre nós. Bom que se diga antecipadamente que não nos insurgimos contra a
proposta de mudanças pura e simplesmente. O que não concordamos é com a forma
como esta quer se impor. Ao que parece, o poder subiu de tal forma à cabeça da
classe política que esta se vê impedida de encontrar soluções adequadas e
objetivas aos problemas de nosso tempo. Assistimos a uma triste
"nadificação da consciência política" se podemos fazer uso de uma
expressão Sartreana.
Alguns pontos dessa proposta de mudanças merecem especial atenção como, por
exemplo, a questão de elastecimento do período de estágio probatório passando
de 02 (dois) para 05 (cinco) anos. O estágio probatório é o, período de efetivo
exercício do servidor no cargo para o qual foi concursado, condição sine qua
non para aquisição do direito à ESTABILIDADE. Pergunta-se, pois: será que 02
(dois) anos não será tempo suficiente para se avaliar a competência, a dedicação,
a aptidão do servidor para o cargo'- Qual o objetivo real dessa mudança.
Outro ponto relevante consiste na EXTINÇÃO DA ESTABILIDADE a pretexto de que
servidor estável ineficiente. Não pensamos assim. Em verdade, acreditamos que
quem o é, e. em grau bem maior, é o Dirigente omisso, aquele que, dispondo de
meios efetivos para exclusão do mau servidor dos quadros do serviço público
nada faz. Estes meios já existem hoje e, se não são utilizados, é porque mais
prático será simplesmente remover o servidor
como se tira uma pedra do sapato, sem explicações e sem direito de defesa.
O que se verifica, na prática, é que falta seriedade àqueles que, por uma
fatalidade do destino, encontram-se ocupando postos na Administração. Na grande
maioria das vezes, pessoas absolutamente despreparadas encontram-se em postos
de comando, sem que tenham a mínima qualificação para o cargo que desempenham e
o resultado, como estamos cansados de observar, é que o cargo se mostra maior
que seu ocupante.
Essa inadequação em geral, lhe faz lançar mão de meios irregulares, adotando
comportamentos quase sempre arbitrários, como se não pudessem ser por eles
responsabilizados. A máxima outrora tão em moda "The king can do no wrong'
sintetiza o pensamento de enorme parcela de administradores públicos, o que é
de todo lastimável. E a causa disso, todos sabem: é a IMPUNIDADE. Portanto, a
premissa calcada na base da proposta de reforma administrativa não é
verdadeira: não é o servidor que não quer nada. Ele quer sim. Quer porque todo
homem precisa de trabalho, mas há que se trabalhar com DIGNIDADE. O que está
faltando é estímulo, porque não se valoriza o trabalho dos servidores. Muito ao
contrário. A visão que se difunde é que o serviço público é deficiente, é
precário. que são todos acomodados e isso tudo é uma inverdade. Faltam meios e
incentivos. Há maus servidores, há bons servidores, há excelentes servidores
como há, de outra parte, bons administradores, poucos, mas há: como há bons
empresários e maus empresários. Como tudo na vida, já que a vida é uma via de
mão dupla. Entretanto, ainda se diz, hoje em dia, que é preciso demitir
servidores porque estes oneram os cofres públicos. Pensamos que isso não é de
todo verdadeiro. Sabemos que muito dinheiro público tem fluído por torneiras
como se fosse água correndo, todavia para outros rios. O caminho não é este.
Por que não se buscam outras soluções como, por exemplo, regulamentar o
impostos sobre grandes fortunas? Porque não recuperar os prejuízos causados por
maus administradores públicos'? Porque não extinguir privilégios de pequenas
categorias que só servem para onerar a União, como é o caso dos Juízes
Classistas'? Melhor seria que, ao invés de lhes conceder pomposas
aposentadorias, depois de 05 (cinco) anos de exercício no cargo (atividade temporária),
fossem criadas mais Juntas por todo o país para, aí sim, aprimorar a qualidade
de trabalho dos membros do Judiciário Trabalhista. Soluções existem e as
questões precisam ser repensadas. Por que não se faz um trabalho criterioso
para saber onde existe excesso ou escassez de pessoal para depois se proceder a
um remanejamento, ao invés de demitir? E mais, por que não são
responsabilizados penal, civil e administrativamente aqueles que se utilizam de
seus cargos para obter privilégios e construir suas fortunas pessoais'? Por que
não cobrar judicialmente os impostos e demais encargos devidos pelas grandes
empresas? A quem interessa o mau funcionamento do Poder Judiciário- Ficam estas
sugestões para reflexão. Queremos apenas demonstrar que o problema é muito mais
estrutural. Demissão de servidor não é, nem nunca foi, solução para a falta de
recursos públicos. Corte de pessoal para enxugar a folha de pagamento é
procedimento mais apropriado e condizente com a realidade de empresas privadas.
Temos atualmente uma das Constituições mais modernas e avançadas que, por
certo, merece alguns reparos, mas não estes que se pretendem introduzir.
Não se faz Constituição por via de emenda constitucional. Ora, cogita-se
instituir o PROCESSO SELETIVO como forma de ingresso no serviço público e
ressuscitar a velha admissão para emprego ou função. Qual será a diferença
entre concurso público e processo seletivo- O que sei porque sou concursada é
que o concurso público permite a realização na prática do PRINCÍPIO DA ISONOMIA
porque propicia igualdade de condições a todos os concorrentes. A extinção da
estabilidade tão defendida por políticos reformistas é o absurdo dos absurdos.
Convém que se diga que já está acentuado SERVIDOR SEM ESTABILIDAD E É SERVIDOR
DESCOMPROMISSADO com o serviço público e com suas funções, porque esta é a
única garantia de sua autonomia, viabilizando, por outro lado, a manifestação
de sua discordância com eventuais desmandos e ilegalidades praticados pelo
Dirigente de ocasião. O mau servidor, aquele que nunca é punido, não precisa de
estabilidade porque ele tem as "costas quentes", como se costuma
dizer e, estas pessoas serão sempre beneficiadas, porque se prestam a todos os
favores. Estas sim, juntamente com as que adentram no serviço público via trem
da alegria, é que precisam ser expurgadas de seus quadros. Aqueles princípios
mencionados inicialmente: legalidade, moralidade, impessoalidades e publicidade
não são meras figuras de retórica e não foram inseridos no texto constitucional
para ornamentá-lo, mas para ser obedecidos. Devem ser tidos como norte da
conduta do Estado, quer em suas relações com os particulares ou com o próprio
Poder Público. Aos servidores não é dado o direito de descumprir tais
princípios, ao contrário, exige-se deles maior rigor em sua observância.
Que MORALIDADE haverá em demissão de servidores ou em extinção de
estabilidade'?
Com certeza, não é este o sentido do princípio contido na Carta de República. É
preciso ter cautela com os meios que se utilizam para promover reformas
políticas ou jurídicas, acima de tudo, é imprescindível ter bom sensor pois
Constituições fazem parte da cultura moderna dos povos, mas não são produtos
descartáveis. Se é que assim podemos dizer, temos uma Constituição de última
geração em plena fase de aperfeiçoamento, merecendo, sem dúvida, pequenos
ajustes à nova realidade brasileira.