POLÍTICA DE PESSOAL NO SERVIÇO PÚBLICO, REGIME CELETISTA E GRATIFICAÇÕES

PAULO ANTÔNIO DE M. ALBUQUERQUE

Procurador do Município e Professor da Universidade de Fortaleza – UNIFOR

SUMÁRIO:

1. Introdução.

2. O regime celetista e a Administração.

3. As gratificações.

4. Conclusão.

1 - Introdução

A questão concernente a pessoal representa ponto delicado nas relações da administração pública com sua higidez financeira e contábil. Se tal aspecto ganhou maior dimensão a partir da chamada. "crise do Welfare State" e conseqüente questionamento da aplicação dos recursos, no caso brasileiro há agravantes que lançam raízes na formação histórica dos costumes e relações de mando e prestígio políticos, tudo configurando um conjunto de questões que envolvem, entre outras diretrizes a fixação das prioridades administrativas, as possibilidades de gestão eficiente e, especificadamente, a alocação ideal de pessoal.

Como decorrência da problemática da colocação do numerário administrativo, a política salarial passou a ser, no contexto de uma economia nacional inflacionária e recessiva, o pomo do discórdia entre a administração e seus servidores. Tencionamos abordar aqui um aspecto punctual - sem perder de vista a visão global - dessas relações, ou seja a questão do regime celetista e das gratificação na administração pública.

2. O regime celetista e a administração.

A administração pública brasileira teve, até a Constituição de 1967, o regime "geral" estatutário para seus funcionários. As eventuais necessidades de trabalhos temporários eram supridas pelo regime dos extranumerários, de natureza provisória. Posteriormente, invocou-se a necessidade, de maior agilidade na alocação desses recursos humanos, justificando assim a adoção do regime, celetista para o serviço público. Tal política foi implementada muitas vezes sem o devido acuro para a estrutura do ordenamento jurídico (ou talvez por isso mesmo. haja vista a circunstância política da época), atropelando instancias e controles de poder, quando não até a própria língua pátria (de que é exemplo a criação de "quadros provisórios permanentes", apud Adilson de Abreu Dallari, Regime Constitucional dos Servidores Públicos, SP, ED. RT, 2. Ed., 1990).

Essa digressão é feita tendo em vista a repercussão que hoje assumem as medidas adotadas no passado, principalmente quando se considera - com honrosas e raras exceções - a descontinuidade ou até mesmo a inexistência

políticas claras de pessoal nas sucessivas administrag6es.

A adoção do regime celetista para o serviço público tem muitos inconvenientes. Tal entendimento encontra sua razão de ser na medida em que o exercício de funções estatais exige o resguardo dos indivíduos que concretamente representa atuação estatal. Esta separação representa conquista elementar conseqüente 'a critica do absolutismo do século XVIII.

Paralelamente, há o entendimento de juristas como o prof. Celso Antônio Bandeira de Melo, no sentido de que o regime estatutário deva ser aplicado.

As atividades jurídicas e atividades fins do Estado (por exemplo: fiscalização, ensino educação), cabendo o regime celetista As atividades meramente materiais e "instrumentais" (por exemplo, pessoal para obras, apud Adilson de Abreu Dallari, op. Cit., pg. 46). O tema remete, como se vê, a questão política da definição da composição das forças estatais. A este respeito, o debate atual acerca da "desestatalização" na realidade revela uma "disputa" de forças - ainda não plenamente decidida - ( torno da fixação de diretrizes administrativas, via controle dos órgãos estatais. Gera-se uma contradição: o elogio da livre iniciativa é acompanhado pelo uso de influências e pressões para manter incentives fiscais, subsidies, política de juros baixos, financiamento etc., em favor de determinados setores (isto sem falar da tradicional "socialização dos prejuízos").

Nesse contexto, como se situa a administração pública como gerente de força de trabalho, frente As exigências lógicas de uma maior racionalização dos recursos? Este aspecto suscita dados problemáticos, como o conceito de produtividade no serviço público.

No corpo de uma economia existem setores que, apesar de não apresentarem retorno de investimento imediato, repercutem sobre o desempenho de outras atividades econômicas tais são, basicamente, os serviços de infraestrutura e de regulamentação que são quase que monopolizados pelo Estado. Desse modo, visualiza-se a função determinante que essa entidade representa, e que é realizada através do serviço público, sem falar do fator de racionalização das decisões que representa a existência de órgãos com função burocrática (com a ressalva de deverem ser controlados politicamente). Com isto queremos combater, motivadamente, a "estereotipização" da imagem do servidor como "parasita do tesouro" e " causa dos problemas nacionais" , que não corresponde de maneira nenhuma aos fatos, mas que vem sendo veiculada recentemente por interesses políticos nem sempre explícitos. Este reparo não implica em desconhecer o corporativismo ainda presente em nossa cultura e até certo ponto inerente a todo grupo ou categoria social; visa, porém, chamar a atenção para a ausência de critérios de controle, treinamento e promoção de servidores, já que em si a mera quantidade de servidores não significa tanto quanto a distribuição de pessoal nos diversos órgãos e o papel destinado a estes.

3 - As gratificardes.

Enfocaremos agora uma particularidade técnico-jurídica: as gratificações conferidas ao servidor público civil .(termo que pela Constituição de 1988 substituiu a antiga denominação geral de funcionário público). O princípio basilar do interesse público há de sofrer aqui uma cristalização especifica, já que o servidor representa também a administração, embora com ela não se identifique.

O zelo pelo erário público por tanto não justifica a economia em incentivos ou compensação frente a cindições especiais em que o serviço é prestado por parte do servidor, elemento de influência psicológica fundamental. Acrescente-se a isto a realidade do mercado de trabalho, em que a administração por vezes terá que disputar profissionais bem qualificados, e que são importância vital para o desenvolvimento e, execução de projetos e tarefas. Mesmo que este aspecto mercadológico não se apresente com tanta radicalidade, a administração deverá ter conta também a qualidade específica do serviço e condições da atividade. Estes são alguns dos fundamentos a justificar a existência das gratificações, embora o ideal fosse uma política salarial consistente, voltada 'a manutenção de um nível de vida digno para o conjunto da população como um todo e os servidores em particular. As decisões políticas no entanto têm agido em outro sentido, fazendo com que na maior parte das vezes as gratificações tenham se revelado como fator de compensação de perdas salariais ou de vencimentos, distribuídas de maneira heterogênea, de acordo com o poder de "barganha" de cada categoria específica, e portanto assim atomizando as reivindicações.

Tal prática causou problemas jurídicos particulares, entre os quais a adoção de políticas diferentes para situações análogas, conforme fosse o servidor estatutário ou celetista, endossado pelo fato de diferente se apresentarem as "incorporações" de gratificações e vantagens nos dois regimes.

Quanto aos celetistas, as gratificações se constituem em razão da natureza da atividade ou das condições momentâneas de trabalho. Têm, pois, natureza precária, 'a primeira vista, já que atingem os empregados como "prêmio ou incentivo para lograr a maior dedicação e perseverança destes" (Pla Rodriguez). Vêm atender 'a conveniência de serviço e em retribuição a condição específica de exercício de uma atividade profissional dentro de uma relação de emprego. Cessada a motivação original, cessaria sua obrigatoriedade. A especialidade das gratificações levou alguns juristas a aceitar a necessidade de pactuação prévia para o seu pagamento. Esta exigência foi quebrada, conforme, leciona Mozart Vitor Russomano, pela " figura da gratificação imposto por lei, que tem natureza salarial" (in Comentários A CLT, Forense.. R.J., Vol. 1, 13. ed., 1990, pg. 436). Este aspecto é- melhor compreendido em conjunto com as implicações econômicas.

Não se há de relegar ao esquecimento o aspecto material de que com a continuidade do pagamento da gratificação estendendo-se no tempo, gera-se uma expectativa de disponibilidade econômica por parte do empregado, dispondo ele de um poder aquisitivo maior em relação 'a remuneração originária. Este fato vem sendo abordado informalmente, mas de maneira muito eficaz no Direito brasileiro pela jurisprudência (vide súmulas 207 do STF e 76 do TST), reconhecendo o direito 'a' continuidade da percepção das gratificações habituais (em remissão ao artigo 458 da CLT).

Este entendimento compactua da compreensão ampla do contrato de trabalho, que não se perfaz somente com as condições expressamente adotadas, nem tem função meramente particularista. Na esteira da constatação desse fato, a chamada teoria "do uso da empresa" advoga que "a comprovação do acordo tácito atinge sua etapa definitiva quando se forma na empresa o uso de gratificar os empregados, ao qual o empregador não manifestou a vontade de, interromper. Rouast esclarece, que, neste caso, há uma promessa tácita de quem gratifica" (Orlando Gomes e Elson Gottschalk, in Curso de Direito do Trabalho, Forense, RJ. 11. ed.. 1990, pg. 270). Adotou-se, portanto, como é da tradição do STF desde 1948, (apud Arnaldo Sussekind e ots., lnstituições de Direito do Trabalho, SP, ED. Ltr, 1991, pg. 354), a teoria objetiva quando às gratificações, independentemente da intenção do empregador. Por isto é que entendemos que a recente alteração da postura do TST através do enunciado 291, limitando a incorporação ao salário de pagamentos extras não subsiste. data vênia, frente à coerência, do exame da questão.

Vale a pena transcrever o trecho de Orlando Gomes e Elson Gottschalk em que pontificam acerca da visão social ampla que rege o contrato de trabalho, depois de advertirem no início do estudo, que "o problema da natureza jurídica da gratificação ( ... ) não pode ser colocado em termas genéricos, porque não comporta solução uniforme" (op. Cit., pg. 268):

"Por outro lado, exigências " tutela social dos trabalhadores determinam alguns princípios gerais de direito do trabalho, quais a presunção de correlatividade de qualquer prestação fornecida pelo empregador ao empregado; a inserção no contrato de trabalho, como obrigado contratual, de qualquer benefício que não seja declarado expressamente, como liberalidade; a conservação das condições mais favoráveis para o empregado, no caso de diversa disposição legislativa judiciária ou profissional." (op. Cit., Pg. 271).

No caso da administração pública em relação aos servidores estatutários, a natureza do regime faz supor que não há que se falar em direito adquirido contra a administração pública. Daí o desafio à isonomia gerado por servidores em que regimes diferentes: os, estatutários só poderiam incorporar as gratificações por expressa menção legal. A presunção de desigualdade frente ao empregador da lógica celetista acaba portanto concorrendo com as instituições da "coisa pública em que coaxistem servidor e cidadão. Dai porque essa tendência de "dupla personalidade" da administração pública em empregador e gestor da coisa pública foi majoritariamente superada pelo entendimento a favor do regime único, de natureza estatutária, adotado a partir da Constituição de 1988.

4 - Conclusão.

A política de pessoal na administração pública depende prévio estabelecimento de pianos governamentais que não sofram solução de continuidade, dotadas de ampla visão sócio-econômica, capazes de delimitar as prioridades nacionais em função do bem-estar de seu povo, e em relação a o direcionar os recursos do Estado. Neste sentido, as disposições jurídicas existentes em relação aos vencimentos e gratificações, em particular, desempenham fator estratégico tático. Com esses pressupostos de equilíbrio, estaria pronto cenário para um pertinente controle de produtividade no serviço público, que evidentemente, não dispensaria o controle político-legislativo. Neste contexto é que a valorização do servidor - admitido como ideal o regime geral estatutário, com exceção da execução de serviços contingentes e emergenciais - caminharia passo a passo com a noção da relevância do serviço público, enriquecida por uma perspective comunitária.