CLAÚSULAS
PÉTREAS CONSTITUCIONAIS
STÊNIO
CARVALHO LIMA
Procurador
Geral do Município de Fortaleza
A reforma do Estado, ora em discussão no Congresso Nacional, tem
sido um tema dominante neste trânsito da vida republicana brasileira, como
ponto fundamental para mudar as condições de vida da população brasileira.
Objetiva-se, não apenas mudar a Constituição, como, também, criar condições
concretas para um novo patamar de desenvolvimento que permita ao Estado cumprir
a sua destinação social.
O Brasil conheceu a sua primeira reforma administrativa no Governo Getúlio
Vargas, orientada por teorias recolhidas de sistemas mais avançados de
administração, revendo estruturas, racionalizando os métodos, buscando
simplificar e padronizar a administração de material no serviço público,
introduzindo a concepção de orçamento, mudando a administração de pessoal,
nascendo o DASD.
Seu objetivo, era o de robustecer os padrões éticos do serviço público mediante
critérios objetivos de recrutamento, seleção e promoção de pessoal.
Novamente, em 1952, o presidente Getúlio Vargas, eleito pelo voto popular,
retomou o curso de seu primeiro governo após o Estado Novo.
Foi, então, institucionalizado o planejamento na área da administração pública,
projeto encaminhado ao Congresso Nacional em 1953, que não chegou a ser
aprovado.
No Governo do presidente Juscelino Kubitschek, nenhuma medida concreta de
reforma administrativa, foi tomada, salvo a criação de uma Comissão de
Simplificação Burocrática junto ao DASP.
Já na administração do Presidente João Goulart, criou-se o Ministério
Extraordinário visando aperfeiçoar os instrumentos de pesquisa, previsão,
planejamento, direção, execução, coordenação e controle de que carecia o Poder
Executivo para transformar-se em propulsor do desenvolvimento nacional.
De logo, sublinhe-se que a reforma da administração pública é essencial para o
equilíbrio das contas públicas e para a retomada do crescimento econômico numa
perspectiva de médio e longo prazos.
Sabe-se ser extremamente difícil a situação dos orçamentos públicos sem
perspectiva de equilíbrio fiscal, com deficits
vultosos na maioria dos estados e municípios. Em alguns deles, a folha de
salários consome até 80/90% das receitas correntes, sem investimentos em
infraestrutura, educação, saúde, segurança etc.
No tempo da hiperinflação, a redução das despesas públicas era fácil: bastava
atrasar por alguns meses (até dias) a correção
monetária de despesas diversas(em geral, salários do
funcionalismo e pagamento de obras públicas) para conseguir expressivos ganhos
de receita. Agora isso não é mais possível.
Vê-se, pois, que a reforma administrativa não é importante apenas pelo seu
impacto financeiro senão pela grave questão da eficiência dos serviços
prestados pelo Estado.
O Estado brasileiro tributa seus cidadãos com alíquotas de Primeiro Mundo e
oferece aos contribuintes serviços de Terceiro e até
Quinto Mundos.
Muitos são os pontos dessa nova Reforma. Umas delas acaba de introduzir a
flexibilização da estabilidade dos servidores públicos.
Outras modificações propostas pelo Executivo, não serão capazes, de resolver a
questão da baixa produtividade e da desmotivação funcional no serviço público
brasileiro.
Pode-se pensar na possibilidade de demissão por necessidade de reestruturação
ou redução de quadros na administração pública buscando um comportamento mais
produtivo e eficiente dos servidores, abrindo a possibilidade de melhores
remunerações, conforme os parâmetros do mercado de trabalho.
Sou daqueles que pensa que o fim da estabilidade no serviço público, pode
aumentar a politização da administração pública.
Mas tenha-se presente que a baixa variação do emprego poderá ser invertido,
acarretando situações tão ou mais prejudiciais ao funcionamento do Estado.
Dúvida não resta, no entanto, que a desconsideração do direito adquirido dos
servidores, como defende o projeto do governo, pode ser boa do ponto de vista
financeiro, mas é prejudicial do ponto de vista administrativo.
Penso que o governo deve dar um tratamento justo aos funcionários, essencial em
qualquer organização.
Observe-se que a maior parte dos servidores públicos investiu tempo e esforço
árduos para entrar no serviço público.
É sabido a ressabido que uma economia capitalista estável,
operando em regime democrático, exige o respeito às regras do jogo e tal
respeito está consubstanciado no instituto do direito adquirido.
O Congresso Nacional examina mudanças na Constituição através de diversos
dispositivos inseridos na proposição do Governo que se revelam conflitantes com
os fundamentos do sistema constitucional brasileiro, além de ofender princípios
tidos mesmo por supraconstitucionais, tais como os da Isonomia (inserido nos
art. 3°., IV e art. 5°. "caput") e da proteção aos direitos
adquiridos (art. 5°, XXXVI), afrontando o inciso IV do §4°. do
art. 60, da Carta Magna. Exemplifica-o, à exaustão, a proposta de alteração ao
§2°. do art. 39, que visa permitir a fixação de limite
de idade para ingresso em cargo público, estabelecendo, a priori, discriminação
entre cidadãos em função da sua idade, frente à Administração e o Estado.
A nossa Constituição brasileira, é do tipo rígido.
Para o seu emendamento, requer procedimento singular
e especialmente dificultoso. No dizer de JOSÉ AFONSO DA SILVA,
"...
a rigidez constitucional decorre da maior dificuldade para a sua modificação do
que para a alteração das demais normas jurídicas da ordenação estatal. Da
rigidez emana, como primordial conseqüência, o
princípio da supremacia da Constituição que, no dizer de Pinto Ferreira, é
reputado como uma pedra angular, em que se assenta o edifício do moderno
direito político. Significa que a Constituição se coloca no vértice do sistema
jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são
legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção por ela
distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontra a
própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham
as normas fundamentais do Estado, e só nisso se notará a sua superioridade em
relação às demais normas jurídicas" (In Direito Constitucional Brasileiro,
RT, 7° ed., p.44).
Portanto, o ordenamento constitucional está protegido e
resguardado por uma série de formalidades consignados na própria Constituição
para o exercício do poder reformador.
São as chamadas cláusulas pétreas.
GOMES CANOTILHO, observa que o poder de revisão é naturalmente restrito:
trata-se de poder constitucional derivado, que por si só contém limitações, de
natureza temporal, material e formal.
Cuida-se "de proteger o princípio contra a ocasião, o direito contra o
interesse", segundo as palavras de RUI BARBOSA.
Daí, dizem os doutos, que
"a ordem constitucional não pode, a cada momento, ser
alterada para satisfazer todas as novas tendências sociais ou econômicas da
Nação, para alimentar a fogueira em que se incineram direitos sociais e
individuais sob o argumento da falência do Estado, ou para que se resolvam
problemas conjunturais muitas vezes provocados pelos próprios Agentes Públicos
mediante atos de gestão de constitucionalidade nula ou duvidosa. A Constituição
por ser o Estatuto supremo do Estado, deve forçosamente se manter num patamar
especial, onde lhe seja garantida estabilidade e supremacia frente às normas
inferiores".
Embora seja inquestionável que o ordenamento constitucional deve
contemplar os anseios da sociedade, também é mais verdadeiro que a função
preponderante da atribuição decorre sua posição de supremacia jurídica e a sua
modificação dificultada, a salvo de injunções momentâneas e de conveniências
políticas.
Tanto que a admissibilidade de propostas de emendas constitucionais é complexa
a requer um exame acurado de seu mérito e forma, em especial face ao teor do
art. 60, §4°. da CF:
Diz a CF/88:
"Art.
60...
§4°. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direito, secreto, universal e periódico;
III - a separação de poderes;
IV - os direitos e garantias individuais".
Tocante ao inciso IV, acima, remete-se a discussão ainda para o
disposto no art. 5°., §2°., que prevê que "os direitos e garantias
expresso nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte".
Trata-se de dispositivo incluído no Capítulo I(Dos Direitos e Deveres
Individuais e Coletivos) do Título II(Dos Direitos e Garantias Fundamentais),
cujo conteúdo se irradia sobre toda a Constituição, em diversos dispositivos
que, inseridos em outros Capítulos e Títulos, dizem respeito àqueles direitos e
garantias expressos no art. 5°., ou são decorrentes destes e dos princípios
adotados nos artigos 1° a 4° da Lei Maior.
Com efeito, os direitos fundamentais, como parte do sistema, constituem um
ponto de referência sistêmico para a teoria da Constituição do Estado.
Àqueles contemplados nos arts. 5°, 6°, 7°, 8°, e 9°, (direitos individuais e
direitos sociais), se somam aos demais inseridos nos arts. 12, 13,14, 15, 16,
17, e muitos outros.
Vê-se, pois, que
"...
a vedação atinge a pretensão de modificar qualquer elemento conceitual de
Federação, ou do voto direto, ou indiretamente restringir a liberdade
religiosa, ou de comunicação ou outro direito e garantia individual; basta que
a proposta de emenda se encaminhe, ainda que remotamente, "tenda"
(emendas tendentes, dia o texto), para a sua abolição." (In Curso de
Direito Constitucional Positivo, p.61).
Dessarte, ante às "cláusulas pétreas" não é essencial
que a emenda promova a extirpação do texto constitucional dos direitos e
garantias protegidos: basta que os ameace, enfraqueça, mitigue ou os tome
atenuados, para que também seja inadmissível a proposta de emenda.
GERALDO ATALIBA, sobre o tema, pontifica:
"não
pode o orago de reforma, o Congresso Nacional, sequer discutir qualquer
dispositivo tendente(que abrigue tendências, que leve,
que conduza, que encaminhe, que facilite, que possibilite indiretamente) à
abolição dos dois princípios, reputados, tão importantes, tão fundamentais, tão
decisivos, que tiveram um tratamento sacro, proteção absoluta, erigidos que
foram em tabus jurídicos".
O poder de emendar deve, portanto, preservar a harmonia das
normas, respeitar a sua integração, a sua correlação, a sua adequação
principiológica, como ditam os mestres constitucionalistas.
A reforma que o Congresso Nacional ora discute, desprezando direitos e
garantias, consagradas na CF, fere, dentre os princípios adotados pela
Constituição, admitidos como acessórios daqueles insertos no art. 5°, os que
dizem respeito à Administração Pública contemplados pelo art. 37, resguardadores dos direitos e garantias individuais
relativos a Administração Pública.
"...no
qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situação
jurídicas sem as quais a pessoal humana não se realiza, não convive, e às
vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais, no homem, no sentido de que a todos,
por igual devem ser, não penas formalmente reconhecidas, mas concreta e
materialmente efetivados. (...) Direitos fundamentais do homem significa
direitos fundamentais da pessoa humana ou direitos humanos fundamentais. É com
esse conteúdo que a expressão direitos fundamentais encabeça o Titulo II da Constituição que se completa, como direitos
fundamentais da pessoa humana, expressamente, no art. 17." (Curso de
Direito Constitucional Positivo, RT, 6a. ed., p.159).
"Consumado
o ato segundo a lei vigente ao seu tempo, ou configuradas todas as condições ou
requisitos legais estabelecidos para produzir certa situação, é inadmissível
dentro do estado democrático de direito tomá-los írritos por norma posterior,
ainda que de hierarquia constitucional, tanto mais que emanada do poder
constituinte derivado.
A nova tessitura só poderá alcançar, destarte, os casos vindouros, situações
ainda não consolidadas, sob pena de institucionalizar-se o arbítrio e violar
alguns dos pilares mais firmes do estado de Direito e do regime democrático
vigente no pais." (parecer do Dep. Rodrigues
Palma, p. 33, PEC?33/95).
A reforma elege o servidor público como bode expiatório de todas
as mazelas que se acumulam há anos na administração pública.
O Governo Federal recusa o enfrentamento das questões estruturais que se
reproduziram ao longo das ultimas décadas e que tem
contribuído para a descaracterização do setor publico,
com o inchamento das atividades-meio e
o abandono das atividades-fim, especialmente as sociais; a inoperância de
mecanismos de fiscalização e controle dos gastos públicos; a inexistência de
avaliação qualitativa das políticas públicas; a inexistência de políticas de
recursos humanos que qualifiquem, estimulem e remunerem adequadamente os
servidores públicos e promovam sua adequada alocação nos setores mais
necessitados; e o mais grave de todos os vícios, a inexistência de mecanismos
que viabilizem uma efetiva participação dos cidadãos na formulação,
implementação e avaliação de políticas públicas.
As constituições, asseveram os mestres, "se caracterizam por sua
organicidade e lógica interna, onde os diversos dispositivos estão submetidos a
princípios gerais, que perpassam toda a constituição e princípios específicos
relativos a um determinado campo temático".
"Os
princípios, conforme consolidado ao longo dos anos no constitucionalisrno
mundial, são as normas de todo o arcabouço jurídico. Os demais dispositivos não
possuem vida autônoma, desprendidos desta lógica supra-mencionada.
Pelo contrario, a ela estão jungidos e
adequados".
Os direitos individuais antes elencados - por serem cláusulas
pétreas - são incapazes de supressão, por proposta de emenda à Constituição, já
que alcançaram status de direito adquirido, nos termos do inciso XXXVI do art.
5°.
É que tais direitos foram incorporados ao patrimônio dos servidores, no
dizer de José Afonso da Silva, que afirma,
"...Para
compreendermos um pouco melhor o que seja o direito adquirido cumpre relembrar
o que se disse acima sobre direito subjetivo: é um direito exercitável segundo
a vontade do titular e exigível na via jurisdicional quando seu exercício é
obstado pelo sujeito obrigado a prestação correspondente. Se tal direito é
exercido, foi devidamente prestado, tornou-se situação jurídica consumada(...)
Se o direito subjetivo não foi exercido, vindo a lei nova, transforma-se em
direito adquirido, porque era direito exercitável e exigível a vontade de seu
titular. Incorporou-se no seu patrimônio para ser exercido quando lhe
conviesse".
"...Não
é rara a afirmativa de que não há direito adquirido em face de lei de ordem
pública ou de Direito Publico. A generalização não é
correta nestes termos. O que se diz com boa razão é que não corre direito
adquirido contra o interesse coletivo, porque aquele é a manifestação do
interesse particular que não pode prevalecer sobre o interesse geral..."
A visão democrática do Estado moderno não pode ficar nos limites
do velho Estado cartorial, que vende serviços pela acumulação de funções e
controles.
Nem por isso se pode afastar para o segundo plano o cidadão, razão primeira da
existência do Estado, nem fazer do servidor público, -que se pretende
funcionário qualificado e eficaz, ? mero instrumento a serviço dos interesses
das elites dirigentes.
Para mim, o Estado moderno não pode ser apenas, o prestador de serviços
públicos, concentrador de poderes, capaz de engolir a liberdade pela disciplina
aos seus superiores desígnios. Ele deve assegurar não só a liberdade do cidadão
mas também um conjunto de condições concretas para plena realização da pessoa
humana.
Não "pode ser centralizado e desconfiado, como na reconstrução do pós
guerra, mas, sim, regulador, compatível com a passagem da velha idéia do Estado nacional para o novo tempo da integração
plurinacional, com uma administração pública moderna, apta a prestar serviços
públicos de qualidade naqueles setores essenciais que justificam sua
intervenção na sociedade".
Nesta esteira de considerações, parece-me que não há como, à luz dos princípios
constitucionais, pretender-se pura e simplesmente, suprimir as cláusulas
pétreas constitucionais citadas, por ferir a regra do art. 60, § 4°, da CF/88.
Com efeito, "o que hoje se exige do Estado no Brasil é a sua qualificação
para enfrentar as demandas crescentes da sociedade, que se quer rica e justa. A
ineficiência amplia as áreas de pobreza e promove uma desmesurada acumulação de
renda a de privilégios".
O ato jurídico perfeito, a coisa julgada e o direito adquirido, devem
ser intocáveis.
É, assim em todos os Paises que professam o Estado
democrático de direito.
Fortaleza, 28
de novembro de 1997
STENIO CARVALHO LIMA
Procurador Geral do Município de Fortaleza