LEGITIMIDADE
PARA INGRESSAR COM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE*
FERNANDO
LUIZ XIMENES ROCHA
Desembargador
do Tribunal de Justiça do Ceará e Professor de Direito Constitucional da Universidade
Federal do Ceará
O controle da constitucionalidade das leis impõe-se diante do
sistema de constituições rígidas, pois este, acentuando a distinção entre o
Poder Constituinte e os Poderes Constituídos, faz resultar a supremacia da
Constituição sobre as demais leis(dado que estas são produto do poder
constituído, enquanto aquela é a obra do poder constituinte). Significa, no
dizer do Professor José Afonso da Silva, "que a constituição se coloca no
vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, a que todos os
poderes estatais são legítimos na medida em que ela os reconheça e na proporção
por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do estado, pois é nela que se
encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos: é vela
que se acham as normas fundamentais do Estado, e só nisso se notará sua
superioridade em relação às demais normas jurídicas" 1.
De fato, é incontestável a supremacia da Constituição sobre as demais normas de
direito, estabelecendo-se uma hierarquia de normas, onde a lei constitucional
desponta no ápice da pirâmide normativa, daí ser a Constituição chamada Lei
Maior, Lei Magna, nas palavras de Paulo Bonavides, "a mais alta expressão
jurídica da soberania" 2.
Com efeito, as leis infraconstitucionais - produzidas pelo Poder Legislativo,
órgão cuja competência é haurida da Constituição - não podem contrariá-la, sob
pena de ser consideradas inválidas e inconsistentes perante a ordem jurídica
estabelecida.
Incontroversa a primazia da lei constitucional, resta estabelecer qual o órgão
competente para expurgar de um determinado sistema jurídico as leis
inconstitucionais, ou seja, exercer o chamado controle de constitucionalidade, cuja
tarefa pode ser confiada a um órgão político ou a um órgão jurisdicional.
O controle jurisdicional de constitucionalidade das leis, objeto de nossa
reflexão, pode se dá tanto pela via de exceção, nos casos concretos, como pela
via da ação direta. Na via de exceção, o controle é feito no curso de uma
demanda judicial, quando uma das partes argüi em defesa de sua causa a
inconstitucionalidade da lei que se lhe quer aplicar. No caso, a parte invoca
como questão incidental, para não cumprir a obrigação que lhe está sendo
demandada ou para exigir seja resguardado direito de que se julga possuidor, a
contrariedade da lei frente ao texto constitucional. Nesse tipo de controle,
qualquer juiz, entendendo procedente a alegação, deixará de aplicar a lei ao
caso concreto.
Já no chamado controle por via de ação, o que se visa é a norma in abstracto.
Trata-se de controle exercido através de ação direta. Por esse meio, como
afirma Michel Temer, "objetiva-se obter a invalidação da lei, em
tese" 3. No âmbito da ação direta de inconstitucionalidade, que é o
instrumento processual do controle concentrado, não existe caso concreto a ser
solucionado, o que se busca é a retirada do sistema jurídico do ato normativo
que contrarie o texto constitucional, não se levando em conta interesses
pessoais ou materiais de possíveis litigantes.
No Brasil, a ação direta de inconstitucionalidade surge em 1965, com a Emenda
n.° 16 à Constituição de 1946. Até então, tínhamos somente o controle difuso,
que esteve presente desde a primeira Constituição da República, de 1891, cujo
artífice maior foi Rui Barbosa.
A Constituição de 1988 avançou bastante em matéria de controle da
constitucionalidade das leis. Começou por ampliar o número de legitimados para
ingressar com ação direta de inconstitucionalidade, retirando do
Procurador-Geral da República a titularidade exclusiva da representação contra
inconstitucionalidade de lei ou ato normativo. A rigor, mencionada
exclusividade sempre foi objeto de muitas críticas, pois ficando ao crivo do
Procurador-Geral a argüição ou não da inconstitucionalidade de lei levada ao
seu conhecimento, este acabava se transformando em juiz da representação,
usurpando competência que era própria do Supremo Tribunal Federal.
A grande controvérsia existente antes do advento da vigente Constituição dizia
respeito a saber se o Procurador-Geral da República, ao receber uma
representação argüindo inconstitucionalidade de determinada lei ou ato
normativo, estaria obrigado a submetê-la ao Supremo Tribunal Federal. Entendiam
alguns que, ainda que o Procurador-Geral não concordasse com o pedido que lhe
fosse dirigido teria de encaminhá-lo à Suprema Corte, embora o fizesse
ofertando parecer em sentido contrário. O que ele não podia era se transformar
em juiz da representação, invadindo competência daquela Corte 4.
Em 1970, o Movimento Democrático Brasileiro, único partido "de oposição à
época, provocou o Procurador-Geral da República, solicitando a instauração do
controle concentrado contra o Decreto-Lei n.1.077, de 26 de janeiro de 1970,
que estabelecera a censura prévia de livros, jornais e periódicos. A
representação foi arquivada pela citada autoridade, por entender não estar
constitucionalmente obrigada a submetê-la ao exame do Supremo Tribunal Federal.
Em razão do arquivamento da dita representação pelo então Procurador-Geral da
República, Xavier de Albuquerque, o MDB ingressou com Reclamação perante o
Supremo Tribunal Federal, a qual foi rejeitada, tendo a Corte acolhido a
doutrina daqueles que reconheciam ao Chefe do Ministério Público Federal o
direito de submeter ou não a questão ao Pretório Excelso, já que detinha, com
exclusividade, a competência constitucional para instaurar o controle abstrato
de normas.
A discussão sobre a discricionariedade ou não do Procurador-Geral da República
para ofertar representação de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal
gerou bastante polêmica doutrinária. O professor Celso Bastos procurou sustentar
uma posição intermediária, entendendo que, se a representação fosse formulada
por pessoa jurídica de direito público, estaria o Procurador-Geral obrigado a
encaminhar a representação, em razão da presunção de estar a mesma conforme o
interesse público, o que não significa afirmar que tivesse ocorrido,
efetivamente, a inconstitucionalidade, porém, o móvel que acionou a pessoa
jurídica é um motivo de interesse público" 5.
Hoje, no entanto, com as inovações da atual Constituição, a questão que gerou
tanta controvérsia se encontra inteiramente superada, pois, de conformidade com
o seu art.103, estão legitimados a propor ação direta de inconstitucionalidade
o Presidente da República, a Mesa do Senado, a Mesa da Câmara dos Deputados, a
Mesa da Assembléia Legislativa, o Governador do Estado, o Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil, partido político com representação no Congresso
Nacional e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Com relação aos titulares da ação direta de inconstitucionalidade, gostaria de
deter-me um pouco sobre a chamada confederação sindical e a entidade de classe
de âmbito nacional, tendo em vista que a falta de Lei regulamentando a matéria
levou o Supremo Tribunal Federal a dar uma interpretação restritiva da norma.
Assim é que, procurando delimitar o conceito do que seja entidade de classe de
âmbito nacional, direcionou o entendimento tão-somente para as associações
formadas por pessoas que representem interesses comuns de uma determinada
categoria.
Conseqüentemente, não constituem entidade de classe legitimada a propor ação
direta de inconstitucionalidade aquelas associações que são integradas por
pessoas de estrato social, profissional ou econômico diverso, cujos interesses
possam ser conflitantes, como, por exemplo, a Associação Brasileira de
Profissionais Liberais.
Da mesma forma, não reconhece tal condição àquelas organizações que congregam
várias outras associações, v g., a Associação Brasileira de Bancos, por se
tratarem de verdadeiras associações dentro de associações, faltando-lhes,
portanto, a qualidade de ente de classe, dado essencial para, com legitimidade,
impulsionar o controle concentrado de constitucionalidade.
Também não constituem entidade de classe aquelas associações que, embora de
nível nacional, estão voltadas para fins altruístas, por exemplo, a Associação
dos Alcoólicos Anônimos e a Associação das Senhoras de Caridade.
O mesmo ocorre com aquelas associações que congregam representantes de órgãos
públicos sem personalidade jurídica, tais como a Associação Nacional dos
Prefeitos Municipais e o Colégio Nacional de Presidentes de Tribunais de justiça.
A Suprema Corte, além de procurar delimitar o raio de abrangência dessas
associações de que trata o art.103, inciso XI, do Diploma Maior, tem exigido,
através de seus pronunciamentos, que essas organizações tenham, em seus
quadros, associados de pelo menos nove Estados da Federação, para que possam
serem consideradas de âmbito nacional, numa analogia à Lei Orgânica dos
Partidos Políticos.
Igualmente, deixou-se de reconhecer legitimidade às chamadas Federações, para,
numa interpretação mais restrita, compreender como organizações sindicais
apenas aquelas constituídas nos moldes do artigo 535 da CLT, no caso, as
Confederações Sindicais, que, de acordo com o texto consolidado, devem se
organizar com o mínimo de três federações e terão sede na Capital da República.
Por fim, a jurisprudência do Pretório Excelso tem concebido que o objeto da
ação direta de inconstitucionalidade, proposta pelas entidades em questão,
guarde relação de pertinência com suas atividades de representação.
Ante o que ficou dito, cumpre-nos, inicialmente, louvar a posição do Supremo,
quando se preocupa em definir e delimitar o entendimento do que venha a ser
confederação sindical, entidade de classe de âmbito nacional, uma vez que o
constituinte, realmente, colocou as expressões no texto de forma bastante
abrangente.
Entretanto, entendo, com a devida vênia, que o Supremo comete um equívoco,
quando faz analogia com a Lei Orgânica dos Partidos Políticos, pois me parece
frágil ou de nenhum fundamento jurídico tal proceder. Como assevera Gilmar
Ferreira Mendes: "Ainda que se possa reclamar a fixação de um critério
preciso sobre esses conceitos vagos - entidade de classe de âmbito nacional e
confederação sindical -, não há dúvida de que eles devem ser fixados pelo
legislador e não pelo Tribunal, no exercício de sua atividade jurisdicional. O
recurso à analogia aqui é de duvidosa exatidão". 6
De outro modo, tratando-se de processo de natureza objetiva, como é a ação
direta de inconstitucionalidade, não concebemos possível exigirse, para sua
proposição, que a matéria nela versada tenha pertinência com os objetivos da
representação da entidade proponente. Achamos que mencionada restrição não
poderia sequer ser estabelecida pelo legislador, muito menos pelo Tribunal,
ainda que se trate da Corte Suprema que tem a função precípua de interprete
maior da Constituição.
Com efeito, a nosso ver, semelhante restrição só poderia ocorrer se originária
do próprio texto constitucional, o que não se verifica, até mesmo porque a
Constituição já estabeleceu instrumentos outros, visando a que essas
associações pudessem atuar na defesa de seus interesses e no de seus associados,
como é o caso do mandado de segurança coletivo, previsto no artigo 5°, inciso
LXX, letra "b", da Constituição Federal.
Então, afigura-se-nos que, quando o Supremo Tribunal limita este direito de
provocar o controle abstrato de constitucionalidade das leis e atos normativos
às entidades de classe, cria uma injustificável diferenciação entre os órgãos e
entes legitimados a propor a ação . direta de inconstitucionalidade, não
encontrando citada restrição qualquer respaldo constitucional, já que a Constituição
não diferenciou entre os que ela elegeu como titulares da ação em referência.
Outra observação que merece ser feita, é que o art. 103 da Constituição Federal
fala em Governador de Estado e em Mesa das Assembléias Legislativas,
silenciando, contudo, a respeito do Governador e da Mesa da Câmara Legislativa
do Distrito Federal, já que o Distrito Federal não é tratado como Estado, tanto
que a Constituição afirma que a Federação é formada da união indissolúvel dos
Estados, dos Municípios e do Distrito Federal (art. 1°).
De feito, impende verificar se Governador do Distrito Federal é ou não parte
legítima para propor ação direta de inconstitucionalidade.
O § 1° do artigo 32 da Carta Magna diz que ao Distrito Federal são atribuídas
as competências legislativas reservadas aos Estados e aos Municípios, não
havendo, portanto, razão plausível para negar ao Governador do Distrito
Federal, bem como à Mesa da Câmara Legislativa do mencionado ente federativo,
legitimidade para a propositura de ação direta de inconstitucionalidade. Não há
como pretender transformar a omissão do constituinte num silêncio eloqüente.
Esse assunto, alias, já foi pacificado na ADIN N° 645, quando entendeu a Corte
Suprema ter esse governante a mesma legitimidade que têm os Governadores dos
Estados.
É preciso ressaltar, todavia, que, pelo disposto no § 1° do citado art. 32, ao
Distrito Federal são atribuídas competências legislativas reservadas aos
Estados e aos Municípios. Destarte, o Governador só pode propor ação direta de
inconstitucionalidade de leis que tratem de matérias reservadas aos
Estados-membros. Se cuidar das atribuições próprias dos Municípios, como por
exemplo, a política do parcelamento do solo urbano, essa matéria não pode ser
objeto de controle pela via de ação perante o Supremo Tribunal Federal, porque
se trata de Lei de natureza municipal. Como se sabe, consoante juízo pacificado
pela nossa Corte Excelsa, as Leis municipais não são objeto da fiscalização
concentrada em face da Constituição Federal, somente podendo serem questionadas
no âmbito do controle difuso, à mingua de previsão constitucional.
Concluindo, observamos que, com o advento da nova ordem constitucional, cessou
a grande polêmica sobre a obrigatoriedade ou não do Chefe do Ministério Público
instaurar o procedimento de controle abstrato de constitucionalidade das leis,
quando encaminhado lhe fosse representação nesse sentido. Isso deve-se a
salutar providência adotada pelo constituinte de 1988 (no art. 103), retirando
do Procurador-Geral da República e legitimidade exclusiva para desencadear o
processo concentrado de controle de constitucionalidade, estendendo-a a outros
órgãos e entidades.
Todavia, o Supremo Tribunal Federal tem estabelecido restrições às
confederações e às associações de classe de âmbito nacional, ao nosso modo de
entender, totalmente descabidas, só se ' justificando" como meio de conter
a crise por que passa a nossa Corte Maior, devido ao volume despropositado de
processos que ali chegam, impossibilitando uma prestação jurisdicional adequada.
NOTAS
1 Este trabalho constitui notas de participação do autor no painel
sobre Ação Direta de Inconstitucionalidade na 1a. Semana de Direito, Política e
justiça promovida pelo Instituto dos Magistrados do Ceará, em 18.03.97.
1José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 5a ed., São
Paulo, RT,1989, p. 45
2 Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 5a ed., São
Paulo, Malheiros, 1994, p. 267
3 Michel Temer, Elementos de Direito Constitucional, São Paulo, 6a.
ed., RT, 1989, p.45
4 Sobre o assunto, confira Paulo Bonavides, op. cit., p. 299 e
Gilmar Ferreira Mendes, jurisdição Constitucional , São Paulo, Saraiva, 1996,
p. 66-77.
5 Cf. Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, 7a. ed.
, São Paulo, Saraiva, 1984, p.72-76.
6 Op. cit., p. 141-142