LICITAÇÕES E CONTRATOS: O ANTEPROJETO DA NOVA LEI

JOSÉ EDUARDO MARTINS CARDOZO

Professor de Direito Administrativo da PUC/SP a do Setor de Pós-Graduação da Universidade Católica de Santos | Ex-Secretário do Governo do Município de São Paulo | Ex-Chefe de Gabinete da Secretaria da Administração Federal | Procurador e Vereador do Município de São Paulo.

Em um país onde a corrupção é um mal endêmico e de ampla incidência em todos os níveis federativos, é natural que as contratações firmadas pela Administração Pública sejam vistas como um tema de extrema atualidade.

Principalmente quando se discute, com fortes motivações políticas e ideológicas, o papel do Estado e a necessidade da sua própria modernização em face dos desafios apontados pela nova realidade da conjuntura mundial.

Que atividades devem ser executadas diretamente pelo Poder Público ?

Quais devem ser exercidas por meio de contratos firmados com particulares? Que regras devem orientar a escolha das pessoas a serem contratadas pelos órgãos públicos ? Qual o grau e qual a flexibilidade que deve possuir o administrador no momento em que define as regras e as condições de um ajuste negocial que firmará com terceiros? Estas e outras perguntas tem sido objeto de permanentes e acalorados debates no mundo jurídico e administrativo brasileiro, em especial nas últimas décadas.

E como não poderia deixar de ser, esta aguda controvérsia tem motivado sucessivas alterações legislativas no campo das licitações e dos contratos celebrados pelo Poder Público. E, digamos, em ritmo relativamente acentuado, contrariamente , aliás, ao que acontece em outros campos do direito positivo brasileiro.

Deveras, enquanto o nosso Código Comercial data de 1850, o nosso Código Civil de 1916, o nosso Código Penal de 1940, o nosso Código Tributário Nacional de 1966, nestes últimos trinta anos assistimos em nosso país, até o momento, nada menos que três diplomas legislativos diferentes se sucedendo no trato da disciplina dos procedimentos destinados a celebração de contratos pelo Poder Público. Isto, esclareça-se, sem nos referirmos às próprias modificações -algumas, alias, de grande porte -a que estiveram sujeitos estes próprios diplomas ao longo do período das suas respectivas vigências.

De fato, tivemos no Decreto-Lei n° 200, de 25 de fevereiro de 1967, a nossa primeira efetiva tentativa de tratar de modo sistematizado o instituto da licitação 1. Revogado nos dispositivos que cuidavam dessa matéria, foi este diploma legislativo substituído, em 21 de novembro de 1986, pelo
Decreto-Lei n° 2.300/86. E este, por sua vez, passou a ter o seu lugar ocupado pela nossa vigente lei de licitações e contratos da Administração Pública, em 21 de junho de 1993 (Lei n° 8.666/93).

Agora, nem tendo ainda completado cinco anos de vida a nossa atual legislação, já se pensa em nova modificação. Alegando a necessidade de se agilizar a atuação do Estado e os altos custos decorrentes dos controles impostos pela Lei n° 8.666/93, fez o governo federal elaborar anteprojeto de nova lei disciplinadora da matéria a ser oportunamente encaminhado ao Congresso Nacional.

É sobre esta proposta que gostaríamos de tecer algumas breves considerações.

De imediato, poderíamos dizer que seria de todo adequado que diante das razões alegadas pelo governo, a proposta de texto elaborada para substituir a atual Lei n° 8.666/93 fosse um conjunto global de disposições harmônicas e bem talhadas, orientadas no sentido de superar alguns dos graves problemas que apresenta nossa atual legislação, sem prejuízo dos controles que introduziu na busca de forçar contratações mais adequadas à satisfação de princípios básicos como os da isonomia, probidade e moralidade administrativa.

Deveras, se problemas de técnica legislativa existem na nossa vigente Lei n° 8.666/93, em momento algum, porém, poderá vir a ser esta acusada de não ter criado óbices a históricas práticas imorais que em nosso país serviram apenas para favorecer maus administradores e espertos empresários, com prejuízos incalculáveis para os cofres públicos. De todos os textos legislativos que tivemos, sem sombra de dúvida, no que concerne a mecanismos de fiscalização, de controle e de combate a práticas imorais na realização de procedimentos licitatórios, a lei n° 8.666/93 vem sendo a melhor.

Assim, seria de se esperar que o governo federal tomasse como ponto de partida os avanços deste diploma legislativo, a se ocupasse apenas da correção dos seus problemas ao elaborar um novo anteprojeto de lei de licitações.

Não foi, lamentavelmente, o que ocorreu.

Embora tenha superado alguns dos graves problemas apresentados pela lei n° 8.666/93, o texto do atual anteprojeto qualifica, a nosso ver, um radical retrocesso no campo dos controles que devem existir sobre as licitações e sobre as contratações efetuadas pelo Poder Público. Muitos dos dispositivos introduzidos pela nossa atual legislação na busca de evitar os desmandos e as imoralidades foram colocados por terra. Algumas das inovações introduzidas parecem se postar na linha de legitimar conhecidas artimanhas daqueles que se doutoraram na arte de burlar as exigências éticas que devem recair necessariamente sobre os atos de gestão da res publica.

Nesta medida, ousaríamos mesmo a dizer que a pretexto de se modernizar o Estado e de se dar maior maleabilidade ao seu agir acabou esta proposta legislativa por colocar em cheque o próprio instituto da licitação. A liberdade de contratar do administrador será tão grande, seu agir na definição de parâmetros tão largamente discricionário, a ausência de definições prévias de conduta tão acentuadas, que os cidadãos, os Tribunais de Contas, os Legislativos, e os órgãos jurisdicionais de todo o país, terão em muito reduzidas as possibilidades de questionar comportamentos suspeitos ou até de comprovar de forma objetiva a ocorrência de práticas imorais.

Não queremos dizer com isso que a técnica jurídica pode ser capaz de elaborar um texto legislativo em matéria de licitações e contratações da Administração Pública que seja imune a falcatruas, a privilegiamentos imorais, a contribuições eleitorais firmadas em contraprestação a favores concedidos por governantes ou ao desvio de dinheiros públicos. Isto é, a bem da verdade, impossível. A mente humana normalmente é mais eficaz na busca de mecanismos de burla à lei, no que no encontrar de definições e regramentos capazes de aperfeiçoar os seus propósitos.

Todavia, o caminho do anteprojeto elaborado a mando do governo federal - que se nos perdoe a contundência - extrapola em muito os limites que dentre nós devem ser vistos como verdadeiras conquistas na luta contra a imoralidade e o desrespeito aos interesses públicos. Sem dúvida, ela possibilitará maior agilidade administrativa. Mas a um custo tão alto de princípios que os cofres públicos brasileiros com certeza preferirão a menor rapidez - que pode ser perfeitamente compatibilizada com diretrizes de planejamento e eficácia de gestão dos órgãos públicos - do que a celeridade liberta de parâmetros de conduta de administração que forcem a obediência de critérios isonômicos, éticos e de probidade no dispêndio de recursos públicos.

Talvez em países mais avançados, onde a cultura predatória do que é público não esteja tão impregnada nos comportamentos e atos dos agentes públicos que governam ou que administram o Estado, propostas deste jaez tenham mais chance de frutificar. Afinal, em certos lugares do mundo, governantes submetidos à mera suspeita de improbidade ou de uso da máquina administrativa são submetidos a execração pública, e muitas vezes quando descobertos em flagrante delito preferem pôr fim à própria vida do que se submeterem aos olhares de reprovação moral de uma sociedade que lhes indica, como única alternativa para os seus dias futuros, o fim da vida pública e o recolhimento a cárcere muito bem fechado.

Dentre nós, não é bem assim que as coisas se passam. Governantes enriquecem a olhos vistos, empreiteiros de obras públicas engordam suas empresas ilicitamente, e os calabouços se encontram abarrotados apenas por pequenos assaltantes ou meliantes que nunca tiveram a oportunidade de freqüentar palácios governamentais, serem donos de uma empreiteira ou exercerem algum mandato parlamentar ou junto ao Executivo. Os que notoriamente enriqueceram com dinheiro público voltam a ocupar cargos de mando. Nada acontece. A tudo se assiste passivamente.

Não se pode, por conseguinte tratar o nosso país como um Estado em que a distinção entre o público e o privado seja uma marca da sua cultura política. Aqui as restrições legais, os rígidos controles jurídicos, são a única salvaguarda para que os predadores do Estado não assumam ainda mais a sua gestão. O extermínio desses controles, assim, não é um avanço, ou uma postura voltada à modernidade. É a conivência com um estado de coisas que com certeza o cidadão comum - aquele que paga impostos e não se beneficia com o resultado dos serviços públicos que com seu trabalho custeia - se pudesse ter uma exata compreensão do que ocorre assumiria uma praxis transformadora e, porque não dizer, revolucionária até. Afinal, neste país, cada vez mais, fazer com que os interesses privados não se apropriem do que é público parece ser uma tarefa verdadeiramente revolucionária.

Mas, no que baseamos estas contundentes críticas ao anteprojeto de lei elaborado pelo governo federal -

Passemos, pois, a analisá-lo topicamente. Primeiro, apontando alguns de seus poucos aspectos positivos. Depois, dando alguns exemplos dos seus muitos pontos negativos.

No campo das inovações positivas, haverão de merecer destaque, a nosso ver, dois aspectos.

Em primeiro lugar, deve ser louvado o tratamento dado ao problema da definição das normas legislativas federais que devem obrigatoriamente incidir sobre Estados, Distrito Federal e Municípios.

Este é um problema antigo que começa agora, por via desse anteprojeto, dar os primeiros passos para ser superado.

De fato, já sob o período da vigência da Constituição da República de 1967 se discutia se a União poderia impor normas legais à obediência obrigatória de Estados e Municípios. Um dos dispositivos daquela Carta Constitucional (o artigo 8°, XVII, "c") autorizava a União editar normas gerais em assuntos relacionados com o direito financeiro. Para os que entendiam que a licitação era um instituto deste campo do direito estas regras, por óbvio, haveriam de ser vistas como vinculantes em nível nacional. Para outros que, como nós, entendiam que a licitação era um instituto de direito administrativo estas normas jamais poderiam ser impostas como obrigatórias a Estados e Municípios.

Reinava, pois, relativa confusão, em especial em sede doutrinária 2 sobre a matéria.

Com o advento da nossa atual Constituição da República, todavia, o problema foi reduzido. Estabeleceu o artigo 22, XXVII, deste texto que compete privativamente a União legislar sobre "normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades para a Administração Pública, Direta e Indireta". Nesta medida, passou a restar incontroverso que embora a competência para legislar sobre licitação ainda continue a ser concorrente, a União pode editar normas gerais de âmbito nacional de forma a vincular as licitações e as contratações realizadas por Estados, Distrito Federal e Municípios.

Dissemos, porém, que o problema acima foi apenas reduzido, e não solucionado. Isto porque o tratamento legal dado ao problema ainda continua a ser confuso e tormentoso. Assim afirmamos porque embora disciplinando a Lei n° 8.666/93 de forma detalhada o processamento das licitações e as contratações a serem firmadas pelos órgãos e pessoas da Administração Direta e Indireta, veio esta a afirmar literalmente em seu próprio artigo 1° que todas as suas regras são normas gerais aplicáveis indistintamente a União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Disto decorreu um grave problema. Muitos, seguindo a literalidade desta disposição, passaram a entender que a lei n° 8.666/93 em todos os seus termos teria verdadeiro caráter nacional. Todos os entes da Federação estariam, nessa medida, obrigados a seguir a totalidade das suas regras.

Outros, contudo, em melhor exegese, passaram a ver nessa interpretação literal uma manifesta colidência com a Constituição Federal. Reconheceram que muitos dispositivos da lei n° 8.666/93 não teriam um caráter verdadeiramente nacional. Apenas alguns de seus dispositivos, nessa medida, deveriam ter aplicabilidade a Estados, Distrito Federal e Municípios: as suas verdadeiras normas gerais, ou seja, os seus princípios e as suas orientações gerais. As suas demais normas, por serem específicas, não teriam este condão. Teriam seu campo de aplicabilidade restrito à União, ou seja a Administração Pública Federal, direta e indireta.

Esta polêmica que ainda hoje permanece acalorada em sede doutrinária, encontrará o seu fim se for convertido em lei o anteprojeto em comento.
Deveras, dividiu esta proposta legislativa seu conjunto de regras em três "Títulos". No primeiro, a que denominou " Dos princípios e normas gerais", reuniu as regras que terão plena e integral aplicação a União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. No segundo, denominado "Das normas e dos procedimentos da Administração Pública Federal Direta, autárquica e fundacional", estabeleceu os comandos específicos que devem incidir exclusivamente sobre a órbita federal. E finalmente, no terceiro, fixou as

"disposições finais e transitórias" válidas para todos entes da Federação.
Com isso, dúvidas não mais existirão acerca de quais regras tem autêntico caráter nacional, e quais apenas exclusivamente federal. A Constituição desta feita será respeitada, na medida em que não se terá buscado qualificar normas específicas como se fossem gerais com desrespeito aberto e escancarado à autonomia legislativa de Estados, Distrito Federal e Municípios.

Em segundo lugar, deve também ser aplaudida a tentativa de se dar novo tratamento às modalidades de licitação.

A lei n° 8.666/93 ao consagrar as cinco modalidades de procedimentos licitatórios (concorrência, tomada de preços, convite concurso e leilão), deu a cada uma destas modalidades um tratamento em certa medida confuso, dando origem a dúvidas interpretativas (em especial quanto ao convite) e a críticas generalizadas (em particular, quanto a própria utilidade da existência da tomada de preços em face da reduzida distinção que passou a ter, no seu específico modus de processamento, em relação à modalidade concorrência).

Independentemente de outras críticas que possam vir a ser feitas, julgamos ter se apresentado em bom tom a nova definição das modalidades de licitação contida no artigo 5° do anteprojeto. Serão agora quatro as modalidades de licitação, a saber: concorrência, coleta de preços, concurso e leilão. A nova modalidade introduzida, em substituição a tomada de preços e ao convite ("coleta de preços") será um procedimento realizado apenas entre interessados devidamente cadastrados.

Nisto, como dissemos, alguns dos poucos pontos positivos do anteprojeto.
Já os pontos negativos se acumulam, sendo quase que impossível em um modesto e rápido estudo abordar de modo aprofundado e suficiente a sua totalidade.

Nos dediquemos, porém, a sinteticamente fazer referência a alguns.
Um dos mais escandalosos inconvenientes está, sem sombra de dúvida, no tratamento que a lei dá ao dever de licitar de empresas públicas, sociedades de economia mista e das demais entidades controladas direta ou indiretamente pelo Poder Público.

De início, afirma literalmente o projeto que as hipóteses de dispensa de licitação para estas pessoas deverão estar previstas em regulamento e não em lei. Isto, proclamemos em alto e bom som, além de manifestamente inconstitucional é de todo inaceitável.

Inconstitucional porque o artigo 37, XXI, da nossa lei maior ao estabelecer o dever de licitar para a "Administração Direta, Indireta e Fundacional", apenas ressalvou deste dever nos "casos especificados na legislação". Ou seja: as hipóteses de dispensa de licitação apenas podem ser consagradas em lei. Regulamentos internos de entidades estatais de direito privado não podem ter, em nosso direito, este poder.

Inaceitável porque admitir que regulamentos internos fixem hipóteses de dispensa de licitação será o mesmo que admitir por vias oblíquas o fim da incidência deste instituto para as pessoas jurídicas de direito privado que integram a Administração Indireta. Qual administrador não se sentirá tentado em criar o maior número possível de hipóteses de dispensa de licitação- Os honestos pensarão que como se guiam pela probidade administrativa não necessitarão perder tempo com "trâmites burocráticos" inúteis. Os desonestos verão a possibilidade de agir de forma livre e sem riscos nos seus atos de rapinagem.

Esqueceu-se, assim, o governo federal que a licitação não é algo que deve passar pela vontade do administrador, mas por uma imposição que está acima dele, decidida por representantes diretamente eleitos pela própria coletividade. Se é a coletividade que por desejo de atender a isonomia e de satisfazer a probidade impõe pela Constituição e pela lei o dever de licitar, somente esta mesma coletividade, pela lei, pode dizer os casos em que a realização de procedimentos licitatórios não é necessária.

Mas, lamentavelmente, não é só. Estabelece o anteprojeto que "a alienação, cessão ou locação de bens" obedecerão "às normas estabelecidas em regulamento", "no caso de empresa pública, sociedade de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pelo Poder Público"(art.10) . E mais: afirma que "as empresas públicas e as sociedades de economia mista poderão estabelecer suas normas próprias sobre licitação e contrato, independente de lei", devendo apenas obediência às normas gerais estabelecidas no Título I (art. 48, parágrafo único).

Tal somatória de disposições deixa claro que as empresas estatais licitarão quando quiserem, e basicamente do modo que desejarem. A lei, instrumento pelo qual a comunidade afirma como deve ser gerida a res publica muito pouco ou quase nada poderá dizer em relação a estas entidades. Uma lei estadual ou municipal, por exemplo, que pretenda estabelecer maior controle em relação às licitações e às contratações das suas empresas públicas ou das suas sociedades de economia mista estará impedida de fazê-lo. Estabeleceu-se em nível nacional que, em princípio, tudo ou quase tudo os regulamentos destas pessoas podem estabelecer. Assim, os próprios administradores de momento decidirão os caminhos que estas entidades deverão seguir em matéria de licitação e contratos.

Voltamos, assim, praticamente ao período anterior ao da entrada em vigor do Decreto-Lei n° 2.300/86 em que predominava a visão de que empresas públicas e sociedades de economia mista estavam livres do dever de licitar.

Os desmandos, as falcatruas, as imoralidades, a esbórnia com o dinheiro público se sucediam e exigiram do legislador uma postura, qual seja a própria extensão para tais entes do dever de licitar.

Só que agora a intenção é de modernizar o Estado. E esta modernização exigirá que venhamos a retroceder ao que já existia há mais de uma década.

As estatais licitarão quando e como bem entenderem.. A probidade e a isonomia serão respeitadas quando desejarem o governo e os senhores dirigentes destas estatais. É a velha e desejada modernidade do Estado livre, leve e solto que volta agora travestida com nova roupagem e nova aparência, mas ainda sujeita a um velho custo que a nossa sociedade tristemente já pagou e ainda hoje continua pagando nas seqüelas que remanescem no tempo.

Outro ponto inaceitável se prende a abordagem que faz o anteprojeto acerca dos tipos de licitação. Estabelecendo que as licitações serão julgadas, em princípio, pelos critérios de melhor preço, melhor técnica e técnica e preço, não colocou o anteprojeto quaisquer limites à sua adoção discricionária pelo administrador. Com isso, evidentemente, permitirá que a licitação de qualquer objeto possa ser realizada pelo tipo melhor técnica ou técnica e preço.

Isto é também inaceitável. É sabido teoricamente que todo e qualquer julgamento que em licitação adote o componente técnica envolve certo subjetivismo que não pode, mesmo nos mais bem talhados instrumentos convocatórios, ser eliminado. Por isso é que a melhor doutrina sempre recomendou que sua adoção se deva dar apenas em casos excepcionais, em que o seu acolhimento tenha uma efetiva justificativa à luz dos interesses públicos. Assim, alias, o fez a atual lei n° 8.666/93, na medida em que limitou a sua adoção para a contratação de alguns objetos, como por exemplo, nos procedimentos em que se licitam serviços predominantemente intelectuais (art. 46, caput).

Nos termos do anteprojeto, porém, estas restrições cairão por terra. Tudo, a livre critério da Administração poderá ser licitado pelos tipos melhor técnica e técnica e preço. Inclusive - pasme-se - as obras públicas.

Com isso, sem dúvida, felizes devem estar as empresas que nesse país se esmeraram na arte de bem enriquecer às custas da execução de obras públicas. O julgamento por técnica poderá voltar a estas licitações. Os riscos da elaboração de Editais dirigidos diminuirão sensivelmente. A eficácia de resultados nas licitações conduzidas será maior. Agora, pela possibilidade do julgamento de licitações de obras pelo tipo técnica ou técnica a preço, os conluios ficarão menos expostos, e os favorecimentos menos evidentes.

Voltamos, assim, com a nossa "modernidade" ao que tínhamos antes da lei n° 8.666/93.

Mas talvez mais grave seja o problema das faixas de valor atribuídas às modalidades de licitação. Estabelece o artigo 5°, parágrafo 4°, do anteprojeto que "os valores fixados para a União Federal constituem os limites para a dispensa de licitação, a coleta de preços e a concorrência no âmbito dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, das empresas públicas e das sociedades de economia mista".

E quais serão estes valores- Pasme-se: para a dispensa de licitação o valor será de trinta mil reais (art. 68). Entre este valor e o de três milhões de reais a modalidade cabível será a coleta de preços. E acima deste Ultimo valor a concorrência (art. 63).

Estes valores, nos desculpem a franqueza, são absurdos e escandalosos. Liberar licitações até o valor de trinta mil reais é injustificável. Exigir concorrências apenas em contratações superiores a três milhões de reais também. Pode-se dizer que acolhidos estes limites por outros entes da Federação (e ninguém duvide que o serão na quase totalidade dos casos, como o diz a nossa história administrativa) a licitação deverá ser um fenômeno quase excepcional em nosso país. As concorrências então um privilégio praticamente desconhecido. Alias, podemos dizer que inúmeros Municípios não terão que licitar nunca. Receberão, assim, uma verdadeira alforria licitatória.

Outros, pontos ainda devem ser lembrados nesse anteprojeto. Não com menor indignação.

É o caso, por exemplo, do estranho parágrafo 1° do seu artigo 14. Afirma este dispositivo que "as cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos não poderão ser alteradas sem prévia concordância da contratada".

O que se quer dizer com tal disposição-

Em má redação, poderíamos pensar, o que pretenderia o anteprojeto nesse dispositivo é que os valores estabelecidos no contrato devem ser revistos de comum acordo pelas partes contratantes para que se assegure sempre a manutenção do seu equilíbrio econômico-financeiro.

Deveras, seria razoável que fosse isso o que se estivesse pretendendo dizer. Afinal é noção absolutamente assentada em doutrina que o equilíbrio econômico financeiro dos contratos é uma garantia própria e característica destes ajustes negociais regidos pelo direito público.

Todavia, em boa hermenêutica não parece ser isto o que se pretende com este dispositivo. Com efeito, se assim fosse não precisaria o anteprojeto voltar a reproduzir este mesmo dispositivo na parte das normas aplicáveis à União (art.103, parágrafo 1°) quando logo a seguir estabelece literalmente que as partes de comum acordo devem restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato sempre que "sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de conseqüências incalculáveis" (art. 110, II, "d").

O que pretenderá então o anteprojeto- Apenas uma única resposta nos parece possível. Mas nos repugna pensar que esta seja a canhestra intenção subjacente a este dispositivo. Trata-se da intenção de permitir que as partes contratantes possam de comum acordo alterar o próprio equilíbrio econômico-financeiro do contrato, burlando o resultado oriundo da própria licitação. Afinal, o dispositivo em comento nos diz que as "cláusulas econômico-financeiras" não podem ser alteradas sem prévia concordância da contratada. Mas então de comum acordo podem alterar estas cláusulas- Poderá então a Administração consentir na mudança do equilíbrio econômico-financeiro de um contrato oriundo de uma proposta licitada-
Se esta for a intenção do anteprojeto, melhor teria sido eliminar de vez o instituto da licitação do direito brasileiro. A modernização pretendida teria a mesma eficácia, e muito mais transparência de propósitos.

Muito mais poderia ser dito. Optamos, porém, por interromper aqui a nossa análise. E o suficiente para demonstrar que se esse anteprojeto for acolhido estaremos mergulhando em um profundo retrocesso administrativo e ético. A lei que antes em nosso país não era suficiente para evitar as falcatruas em matéria de licitação, agora passará a legitimar a improbidade.

Nessa medida, se é para mudar nesses termos, melhor seria ficar como estamos. Já temos problemas demais com o nosso "velho" Estado. O que não ocorrerá então se voltarmos a ter esse nosso antigo e decrépito Estado "moderno"-

NOTAS

1 O Decreto-Lei n° 200/67 denominado de "Reforma Administrativa Federal" cuidava das "normas relativas a licitações para compras, obras, serviços e alienações" no seu Título XII, composto pelos artigos 125 a 144.

2 Dizemos doutrinária porque havia à época um entendimento jurisprudencial dominante no sentido de que sendo a licitação um instituto de direito financeiro seria possível a União legislar sobre normas gerais sobre licitações de modo a poder vincular, na sua respectiva obediência, a Estados e Municípios. Já em sede doutrinária esta posição era também predominante, mas encontrava a contradita de diversos administrativistas de grande respeitabilidade, dentre os quais deve ser destacado o nome de CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO (V., em especial a monografia Licitação, Editora Revista dos Tribunais,1980, pags. 6 a 8)