LICITAÇÕES
E CONTRATOS: O ANTEPROJETO DA NOVA LEI
JOSÉ
EDUARDO MARTINS CARDOZO
Professor
de Direito Administrativo da PUC/SP a do Setor de Pós-Graduação da Universidade
Católica de Santos | Ex-Secretário do Governo do Município de São Paulo |
Ex-Chefe de Gabinete da Secretaria da Administração Federal | Procurador e
Vereador do Município de São Paulo.
Em um país onde a corrupção é um mal endêmico e de ampla
incidência em todos os níveis federativos, é natural que as contratações
firmadas pela Administração Pública sejam vistas como um tema de extrema
atualidade.
Principalmente quando se discute, com fortes motivações políticas e
ideológicas, o papel do Estado e a necessidade da sua própria modernização em
face dos desafios apontados pela nova realidade da conjuntura mundial.
Que atividades devem ser executadas diretamente pelo Poder Público ?
Quais devem ser exercidas por meio de contratos firmados com particulares? Que
regras devem orientar a escolha das pessoas a serem contratadas pelos órgãos
públicos ? Qual o grau e qual a flexibilidade que deve possuir o administrador
no momento em que define as regras e as condições de um ajuste negocial que
firmará com terceiros? Estas e outras perguntas tem sido objeto de permanentes
e acalorados debates no mundo jurídico e administrativo brasileiro, em especial
nas últimas décadas.
E como não poderia deixar de ser, esta aguda controvérsia tem motivado
sucessivas alterações legislativas no campo das licitações e dos contratos
celebrados pelo Poder Público. E, digamos, em ritmo relativamente acentuado,
contrariamente , aliás, ao que acontece em outros campos do direito positivo
brasileiro.
Deveras, enquanto o nosso Código Comercial data de 1850, o nosso Código Civil
de 1916, o nosso Código Penal de 1940, o nosso Código Tributário Nacional de
1966, nestes últimos trinta anos assistimos em nosso país, até o momento, nada
menos que três diplomas legislativos diferentes se sucedendo no trato da
disciplina dos procedimentos destinados a celebração de contratos pelo Poder
Público. Isto, esclareça-se, sem nos referirmos às próprias modificações
-algumas, alias, de grande porte -a que estiveram sujeitos estes próprios
diplomas ao longo do período das suas respectivas vigências.
De fato, tivemos no Decreto-Lei n° 200, de 25 de fevereiro de 1967, a nossa
primeira efetiva tentativa de tratar de modo sistematizado o instituto da
licitação 1. Revogado nos dispositivos que cuidavam dessa matéria, foi este
diploma legislativo substituído, em 21 de novembro de 1986, pelo
Decreto-Lei n° 2.300/86. E este, por sua vez, passou a ter o seu lugar ocupado
pela nossa vigente lei de licitações e contratos da Administração Pública, em
21 de junho de 1993 (Lei n° 8.666/93).
Agora, nem tendo ainda completado cinco anos de vida a nossa atual legislação,
já se pensa em nova modificação. Alegando a necessidade de se agilizar a
atuação do Estado e os altos custos decorrentes dos controles impostos pela Lei
n° 8.666/93, fez o governo federal elaborar anteprojeto de nova lei
disciplinadora da matéria a ser oportunamente encaminhado ao Congresso
Nacional.
É sobre esta proposta que gostaríamos de tecer algumas breves considerações.
De imediato, poderíamos dizer que seria de todo adequado que diante das razões
alegadas pelo governo, a proposta de texto elaborada para substituir a atual
Lei n° 8.666/93 fosse um conjunto global de disposições harmônicas e bem
talhadas, orientadas no sentido de superar alguns dos graves problemas que
apresenta nossa atual legislação, sem prejuízo dos controles que introduziu na
busca de forçar contratações mais adequadas à satisfação de princípios básicos
como os da isonomia, probidade e moralidade administrativa.
Deveras, se problemas de técnica legislativa existem na nossa vigente Lei n°
8.666/93, em momento algum, porém, poderá vir a ser esta acusada de não ter
criado óbices a históricas práticas imorais que em nosso país serviram apenas
para favorecer maus administradores e espertos empresários, com prejuízos
incalculáveis para os cofres públicos. De todos os textos legislativos que
tivemos, sem sombra de dúvida, no que concerne a mecanismos de fiscalização, de
controle e de combate a práticas imorais na realização de procedimentos
licitatórios, a lei n° 8.666/93 vem sendo a melhor.
Assim, seria de se esperar que o governo federal tomasse como
ponto de partida os avanços deste diploma legislativo, a se ocupasse apenas da
correção dos seus problemas ao elaborar um novo anteprojeto de lei de
licitações.
Não foi, lamentavelmente, o que ocorreu.
Embora tenha superado alguns dos graves problemas apresentados pela lei n°
8.666/93, o texto do atual anteprojeto qualifica, a nosso ver, um radical
retrocesso no campo dos controles que devem existir sobre as licitações e sobre
as contratações efetuadas pelo Poder Público. Muitos dos dispositivos
introduzidos pela nossa atual legislação na busca de evitar os desmandos e as imoralidades
foram colocados por terra. Algumas das inovações introduzidas parecem se postar
na linha de legitimar conhecidas artimanhas daqueles que se doutoraram na arte
de burlar as exigências éticas que devem recair necessariamente sobre os atos
de gestão da res publica.
Nesta medida, ousaríamos mesmo a dizer que a pretexto de se
modernizar o Estado e de se dar maior maleabilidade ao seu agir acabou esta
proposta legislativa por colocar em cheque o próprio instituto da licitação. A
liberdade de contratar do administrador será tão grande, seu agir na definição
de parâmetros tão largamente discricionário, a ausência de definições prévias
de conduta tão acentuadas, que os cidadãos, os Tribunais de Contas, os
Legislativos, e os órgãos jurisdicionais de todo o país, terão em muito
reduzidas as possibilidades de questionar comportamentos suspeitos ou até de
comprovar de forma objetiva a ocorrência de práticas imorais.
Não queremos dizer com isso que a técnica jurídica pode ser capaz de elaborar
um texto legislativo em matéria de licitações e contratações da Administração
Pública que seja imune a falcatruas, a privilegiamentos imorais, a
contribuições eleitorais firmadas em contraprestação a favores concedidos por
governantes ou ao desvio de dinheiros públicos. Isto é, a bem da verdade,
impossível. A mente humana normalmente é mais eficaz na busca de mecanismos de
burla à lei, no que no encontrar de definições e regramentos capazes de
aperfeiçoar os seus propósitos.
Todavia, o caminho do anteprojeto elaborado a mando do governo federal - que se
nos perdoe a contundência - extrapola em muito os limites que dentre nós devem
ser vistos como verdadeiras conquistas na luta contra a imoralidade e o
desrespeito aos interesses públicos. Sem dúvida, ela possibilitará maior agilidade
administrativa. Mas a um custo tão alto de princípios que os cofres públicos
brasileiros com certeza preferirão a menor rapidez - que pode ser perfeitamente
compatibilizada com diretrizes de planejamento e eficácia de gestão dos órgãos
públicos - do que a celeridade liberta de parâmetros de conduta de
administração que forcem a obediência de critérios isonômicos, éticos e de
probidade no dispêndio de recursos públicos.
Talvez em países mais avançados, onde a cultura predatória do que é público não
esteja tão impregnada nos comportamentos e atos dos agentes públicos que
governam ou que administram o Estado, propostas deste jaez tenham mais chance
de frutificar. Afinal, em certos lugares do mundo, governantes submetidos à
mera suspeita de improbidade ou de uso da máquina administrativa são submetidos
a execração pública, e muitas vezes quando descobertos em flagrante delito
preferem pôr fim à própria vida do que se submeterem aos olhares de reprovação
moral de uma sociedade que lhes indica, como única alternativa para os seus
dias futuros, o fim da vida pública e o recolhimento a cárcere muito bem
fechado.
Dentre nós, não é bem assim que as coisas se passam. Governantes enriquecem a
olhos vistos, empreiteiros de obras públicas engordam suas empresas ilicitamente,
e os calabouços se encontram abarrotados apenas por pequenos assaltantes ou
meliantes que nunca tiveram a oportunidade de freqüentar palácios
governamentais, serem donos de uma empreiteira ou exercerem algum mandato
parlamentar ou junto ao Executivo. Os que notoriamente enriqueceram com
dinheiro público voltam a ocupar cargos de mando. Nada acontece. A tudo se
assiste passivamente.
Não se pode, por conseguinte tratar o nosso país como um Estado em que a
distinção entre o público e o privado seja uma marca da sua cultura política.
Aqui as restrições legais, os rígidos controles jurídicos, são a única
salvaguarda para que os predadores do Estado não assumam ainda mais a sua
gestão. O extermínio desses controles, assim, não é um avanço, ou uma postura
voltada à modernidade. É a conivência com um estado de coisas que com certeza o
cidadão comum - aquele que paga impostos e não se beneficia com o resultado dos
serviços públicos que com seu trabalho custeia - se pudesse ter uma exata
compreensão do que ocorre assumiria uma praxis transformadora e, porque não
dizer, revolucionária até. Afinal, neste país, cada vez mais, fazer com que os
interesses privados não se apropriem do que é público parece ser uma tarefa
verdadeiramente revolucionária.
Mas, no que baseamos estas contundentes críticas ao anteprojeto de lei
elaborado pelo governo federal -
Passemos, pois, a analisá-lo topicamente. Primeiro, apontando alguns de seus
poucos aspectos positivos. Depois, dando alguns exemplos dos seus muitos pontos
negativos.
No campo das inovações positivas, haverão de merecer destaque, a nosso ver,
dois aspectos.
Em primeiro lugar, deve ser louvado o tratamento dado ao problema da definição
das normas legislativas federais que devem obrigatoriamente incidir sobre Estados,
Distrito Federal e Municípios.
Este é um problema antigo que começa agora, por via desse anteprojeto, dar os
primeiros passos para ser superado.
De fato, já sob o período da vigência da Constituição da República
de 1967 se discutia se a União poderia impor normas legais à obediência
obrigatória de Estados e Municípios. Um dos dispositivos daquela Carta
Constitucional (o artigo 8°, XVII, "c") autorizava a União editar
normas gerais em assuntos relacionados com o direito financeiro. Para os que
entendiam que a licitação era um instituto deste campo do direito estas regras,
por óbvio, haveriam de ser vistas como vinculantes em nível nacional. Para
outros que, como nós, entendiam que a licitação era um instituto de direito
administrativo estas normas jamais poderiam ser impostas como obrigatórias a
Estados e Municípios.
Reinava, pois, relativa confusão, em especial em sede doutrinária 2 sobre a matéria.
Com o advento da nossa atual Constituição da República, todavia, o problema foi
reduzido. Estabeleceu o artigo 22, XXVII, deste texto que compete
privativamente a União legislar sobre "normas gerais de licitação e contratação,
em todas as modalidades para a Administração Pública, Direta e Indireta".
Nesta medida, passou a restar incontroverso que embora a competência para
legislar sobre licitação ainda continue a ser concorrente, a União pode editar
normas gerais de âmbito nacional de forma a vincular as licitações e as
contratações realizadas por Estados, Distrito Federal e Municípios.
Dissemos, porém, que o problema acima foi apenas reduzido, e não solucionado.
Isto porque o tratamento legal dado ao problema ainda continua a ser confuso e
tormentoso. Assim afirmamos porque embora disciplinando a Lei n° 8.666/93 de
forma detalhada o processamento das licitações e as contratações a serem
firmadas pelos órgãos e pessoas da Administração Direta e Indireta, veio esta a
afirmar literalmente em seu próprio artigo 1° que todas as suas regras são
normas gerais aplicáveis indistintamente a União, Estados, Distrito Federal e
Municípios.
Disto decorreu um grave problema. Muitos, seguindo a literalidade desta
disposição, passaram a entender que a lei n° 8.666/93 em todos os seus termos
teria verdadeiro caráter nacional. Todos os entes da Federação estariam, nessa
medida, obrigados a seguir a totalidade das suas regras.
Outros, contudo, em melhor exegese, passaram a ver nessa interpretação literal
uma manifesta colidência com a Constituição Federal. Reconheceram que muitos
dispositivos da lei n° 8.666/93 não teriam um caráter verdadeiramente nacional.
Apenas alguns de seus dispositivos, nessa medida, deveriam ter aplicabilidade a
Estados, Distrito Federal e Municípios: as suas verdadeiras normas gerais, ou
seja, os seus princípios e as suas orientações gerais. As suas demais normas,
por serem específicas, não teriam este condão. Teriam seu campo de
aplicabilidade restrito à União, ou seja a Administração Pública Federal,
direta e indireta.
Esta polêmica que ainda hoje permanece acalorada em sede doutrinária,
encontrará o seu fim se for convertido em lei o anteprojeto em comento.
Deveras, dividiu esta proposta legislativa seu conjunto de regras em três
"Títulos". No primeiro, a que denominou " Dos princípios e
normas gerais", reuniu as regras que terão plena e integral aplicação a
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. No segundo,
denominado "Das normas e dos procedimentos da Administração Pública
Federal Direta, autárquica e fundacional", estabeleceu os comandos
específicos que devem incidir exclusivamente sobre a órbita federal. E
finalmente, no terceiro, fixou as
"disposições finais e transitórias" válidas para todos entes da
Federação.
Com isso, dúvidas não mais existirão acerca de quais regras tem autêntico
caráter nacional, e quais apenas exclusivamente federal. A Constituição desta
feita será respeitada, na medida em que não se terá buscado qualificar normas
específicas como se fossem gerais com desrespeito aberto e escancarado à
autonomia legislativa de Estados, Distrito Federal e Municípios.
Em segundo lugar, deve também ser aplaudida a tentativa de se dar novo
tratamento às modalidades de licitação.
A lei n° 8.666/93 ao consagrar as cinco modalidades de procedimentos
licitatórios (concorrência, tomada de preços, convite concurso e leilão), deu a
cada uma destas modalidades um tratamento em certa medida confuso, dando origem
a dúvidas interpretativas (em especial quanto ao convite) e a críticas
generalizadas (em particular, quanto a própria utilidade da existência da
tomada de preços em face da reduzida distinção que passou a ter, no seu
específico modus de processamento, em relação à modalidade concorrência).
Independentemente de outras críticas que possam vir a ser feitas, julgamos ter
se apresentado em bom tom a nova definição das modalidades de licitação contida
no artigo 5° do anteprojeto. Serão agora quatro as modalidades de licitação, a
saber: concorrência, coleta de preços, concurso e leilão. A nova modalidade
introduzida, em substituição a tomada de preços e ao convite ("coleta de
preços") será um procedimento realizado apenas entre interessados
devidamente cadastrados.
Nisto, como dissemos, alguns dos poucos pontos positivos do anteprojeto.
Já os pontos negativos se acumulam, sendo quase que impossível em um modesto e
rápido estudo abordar de modo aprofundado e suficiente a sua totalidade.
Nos dediquemos, porém, a sinteticamente fazer referência a alguns.
Um dos mais escandalosos inconvenientes está, sem sombra de dúvida, no
tratamento que a lei dá ao dever de licitar de empresas públicas, sociedades de
economia mista e das demais entidades controladas direta ou indiretamente pelo
Poder Público.
De início, afirma literalmente o projeto que as hipóteses de dispensa de
licitação para estas pessoas deverão estar previstas em regulamento e não em
lei. Isto, proclamemos em alto e bom som, além de manifestamente
inconstitucional é de todo inaceitável.
Inconstitucional porque o artigo 37, XXI, da nossa lei maior ao estabelecer o
dever de licitar para a "Administração Direta, Indireta e
Fundacional", apenas ressalvou deste dever nos "casos especificados
na legislação". Ou seja: as hipóteses de dispensa de licitação apenas
podem ser consagradas em lei. Regulamentos internos de entidades estatais de
direito privado não podem ter, em nosso direito, este poder.
Inaceitável porque admitir que regulamentos internos fixem hipóteses de
dispensa de licitação será o mesmo que admitir por vias oblíquas o fim da
incidência deste instituto para as pessoas jurídicas de direito privado que
integram a Administração Indireta. Qual administrador não se sentirá tentado em
criar o maior número possível de hipóteses de dispensa de licitação- Os
honestos pensarão que como se guiam pela probidade administrativa não
necessitarão perder tempo com "trâmites burocráticos" inúteis. Os
desonestos verão a possibilidade de agir de forma livre e sem riscos nos seus
atos de rapinagem.
Esqueceu-se, assim, o governo federal que a licitação não é algo que deve
passar pela vontade do administrador, mas por uma imposição que está acima
dele, decidida por representantes diretamente eleitos pela própria
coletividade. Se é a coletividade que por desejo de atender a isonomia e de
satisfazer a probidade impõe pela Constituição e pela lei o dever de licitar,
somente esta mesma coletividade, pela lei, pode dizer os casos em que a
realização de procedimentos licitatórios não é necessária.
Mas, lamentavelmente, não é só. Estabelece o anteprojeto que "a alienação,
cessão ou locação de bens" obedecerão "às normas estabelecidas em
regulamento", "no caso de empresa pública, sociedade de economia
mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pelo Poder
Público"(art.10) . E mais: afirma que "as empresas públicas e as
sociedades de economia mista poderão estabelecer suas normas próprias sobre
licitação e contrato, independente de lei", devendo apenas obediência às
normas gerais estabelecidas no Título I (art. 48, parágrafo único).
Tal somatória de disposições deixa claro que as empresas estatais licitarão
quando quiserem, e basicamente do modo que desejarem. A lei, instrumento pelo
qual a comunidade afirma como deve ser gerida a res publica muito pouco ou
quase nada poderá dizer em relação a estas entidades. Uma lei estadual ou
municipal, por exemplo, que pretenda estabelecer maior controle em relação às
licitações e às contratações das suas empresas públicas ou das suas sociedades
de economia mista estará impedida de fazê-lo. Estabeleceu-se em nível nacional
que, em princípio, tudo ou quase tudo os regulamentos destas pessoas podem
estabelecer. Assim, os próprios administradores de momento decidirão os
caminhos que estas entidades deverão seguir em matéria de licitação e
contratos.
Voltamos, assim, praticamente ao período anterior ao da entrada em vigor do
Decreto-Lei n° 2.300/86 em que predominava a visão de que empresas públicas e
sociedades de economia mista estavam livres do dever de licitar.
Os desmandos, as falcatruas, as imoralidades, a esbórnia com o dinheiro público
se sucediam e exigiram do legislador uma postura, qual seja a própria extensão
para tais entes do dever de licitar.
Só que agora a intenção é de modernizar o Estado. E esta modernização exigirá
que venhamos a retroceder ao que já existia há mais de uma década.
As estatais licitarão quando e como bem entenderem.. A probidade e a isonomia
serão respeitadas quando desejarem o governo e os senhores dirigentes destas
estatais. É a velha e desejada modernidade do Estado livre, leve e solto que
volta agora travestida com nova roupagem e nova aparência, mas ainda sujeita a
um velho custo que a nossa sociedade tristemente já pagou e ainda hoje continua
pagando nas seqüelas que remanescem no tempo.
Outro ponto inaceitável se prende a abordagem que faz o anteprojeto acerca dos
tipos de licitação. Estabelecendo que as licitações serão julgadas, em
princípio, pelos critérios de melhor preço, melhor técnica e técnica e preço,
não colocou o anteprojeto quaisquer limites à sua adoção discricionária pelo
administrador. Com isso, evidentemente, permitirá que a licitação de qualquer
objeto possa ser realizada pelo tipo melhor técnica ou técnica e preço.
Isto é também inaceitável. É sabido teoricamente que todo e qualquer julgamento
que em licitação adote o componente técnica envolve certo subjetivismo que não
pode, mesmo nos mais bem talhados instrumentos convocatórios, ser eliminado.
Por isso é que a melhor doutrina sempre recomendou que sua adoção se deva dar
apenas em casos excepcionais, em que o seu acolhimento tenha uma efetiva
justificativa à luz dos interesses públicos. Assim, alias, o fez a atual lei n°
8.666/93, na medida em que limitou a sua adoção para a contratação de alguns
objetos, como por exemplo, nos procedimentos em que se licitam serviços
predominantemente intelectuais (art. 46, caput).
Nos termos do anteprojeto, porém, estas restrições cairão por terra. Tudo, a
livre critério da Administração poderá ser licitado pelos tipos melhor técnica
e técnica e preço. Inclusive - pasme-se - as obras públicas.
Com isso, sem dúvida, felizes devem estar as empresas que nesse país se
esmeraram na arte de bem enriquecer às custas da execução de obras públicas. O
julgamento por técnica poderá voltar a estas licitações. Os riscos da
elaboração de Editais dirigidos diminuirão sensivelmente. A eficácia de
resultados nas licitações conduzidas será maior. Agora, pela possibilidade do
julgamento de licitações de obras pelo tipo técnica ou técnica a preço, os
conluios ficarão menos expostos, e os favorecimentos menos evidentes.
Voltamos, assim, com a nossa "modernidade" ao que tínhamos antes da
lei n° 8.666/93.
Mas talvez mais grave seja o problema das faixas de valor atribuídas às
modalidades de licitação. Estabelece o artigo 5°, parágrafo 4°, do anteprojeto
que "os valores fixados para a União Federal constituem os limites para a
dispensa de licitação, a coleta de preços e a concorrência no âmbito dos
Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, das empresas públicas e das
sociedades de economia mista".
E quais serão estes valores- Pasme-se: para a dispensa de licitação o valor
será de trinta mil reais (art. 68). Entre este valor e o de três milhões de
reais a modalidade cabível será a coleta de preços. E acima deste Ultimo valor
a concorrência (art. 63).
Estes valores, nos desculpem a franqueza, são absurdos e escandalosos. Liberar
licitações até o valor de trinta mil reais é injustificável. Exigir
concorrências apenas em contratações superiores a três milhões de reais também.
Pode-se dizer que acolhidos estes limites por outros entes da Federação (e
ninguém duvide que o serão na quase totalidade dos casos, como o diz a nossa
história administrativa) a licitação deverá ser um fenômeno quase excepcional
em nosso país. As concorrências então um privilégio praticamente desconhecido.
Alias, podemos dizer que inúmeros Municípios não terão que licitar nunca.
Receberão, assim, uma verdadeira alforria licitatória.
Outros, pontos ainda devem ser lembrados nesse anteprojeto. Não com menor
indignação.
É o caso, por exemplo, do estranho parágrafo 1° do seu artigo 14. Afirma este
dispositivo que "as cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos
contratos não poderão ser alteradas sem prévia concordância da contratada".
O que se quer dizer com tal disposição-
Em má redação, poderíamos pensar, o que pretenderia o anteprojeto nesse
dispositivo é que os valores estabelecidos no contrato devem ser revistos de
comum acordo pelas partes contratantes para que se assegure sempre a manutenção
do seu equilíbrio econômico-financeiro.
Deveras, seria razoável que fosse isso o que se estivesse pretendendo dizer.
Afinal é noção absolutamente assentada em doutrina que o equilíbrio econômico
financeiro dos contratos é uma garantia própria e característica destes ajustes
negociais regidos pelo direito público.
Todavia, em boa hermenêutica não parece ser isto o que se pretende com este
dispositivo. Com efeito, se assim fosse não precisaria o anteprojeto voltar a
reproduzir este mesmo dispositivo na parte das normas aplicáveis à União
(art.103, parágrafo 1°) quando logo a seguir estabelece literalmente que as
partes de comum acordo devem restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do
contrato sempre que "sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém
de conseqüências incalculáveis" (art. 110, II, "d").
O que pretenderá então o anteprojeto- Apenas uma única resposta nos parece
possível. Mas nos repugna pensar que esta seja a canhestra intenção subjacente
a este dispositivo. Trata-se da intenção de permitir que as partes contratantes
possam de comum acordo alterar o próprio equilíbrio econômico-financeiro do
contrato, burlando o resultado oriundo da própria licitação. Afinal, o
dispositivo em comento nos diz que as "cláusulas
econômico-financeiras" não podem ser alteradas sem prévia concordância da
contratada. Mas então de comum acordo podem alterar estas cláusulas- Poderá
então a Administração consentir na mudança do equilíbrio econômico-financeiro
de um contrato oriundo de uma proposta licitada-
Se esta for a intenção do anteprojeto, melhor teria sido eliminar de vez o
instituto da licitação do direito brasileiro. A modernização pretendida teria a
mesma eficácia, e muito mais transparência de propósitos.
Muito mais poderia ser dito. Optamos, porém, por interromper aqui a nossa
análise. E o suficiente para demonstrar que se esse anteprojeto for acolhido
estaremos mergulhando em um profundo retrocesso administrativo e ético. A lei
que antes em nosso país não era suficiente para evitar as falcatruas em matéria
de licitação, agora passará a legitimar a improbidade.
Nessa medida, se é para mudar nesses termos, melhor seria ficar como estamos.
Já temos problemas demais com o nosso "velho" Estado. O que não
ocorrerá então se voltarmos a ter esse nosso antigo e decrépito Estado
"moderno"-
NOTAS
1 O Decreto-Lei n° 200/67 denominado de "Reforma Administrativa
Federal" cuidava das "normas relativas a licitações para compras,
obras, serviços e alienações" no seu Título XII, composto pelos artigos
125 a 144.
2 Dizemos doutrinária porque havia à época um entendimento
jurisprudencial dominante no sentido de que sendo a licitação um instituto de
direito financeiro seria possível a União legislar sobre normas gerais sobre
licitações de modo a poder vincular, na sua respectiva obediência, a Estados e
Municípios. Já em sede doutrinária esta posição era também predominante, mas
encontrava a contradita de diversos administrativistas de grande
respeitabilidade, dentre os quais deve ser destacado o nome de CELSO ANTÔNIO
BANDEIRA DE MELLO (V., em especial a monografia Licitação, Editora Revista dos
Tribunais,1980, pags. 6 a 8)