RESPONSABILIDADE CIVIL DECORRENTE DE CULPA OU OMISSÃO

LUIS GENTIL CHAVES

Procurador do Município de Fortaleza | Ex-Assessor jurídico da Secretaria da Saúde de Fortaleza e da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social Com especialização em Direito Público e Direito Penal pela Universidade de Fortaleza

Ainda na fluência do século XVI, instalou-se na Europa o regime monárquico absolutista, cujos soberanos, sob inspiração divina, reinavam despoticamente sobre todos, sem qualquer objeção de seus súditos. O monarca recebia seu poder diretamente de Deus, de quem era considerado representante, a exemplo do que ocorreu na França de Luis XIV, a quem se atribuíam dotes divinos.

À medida que o Estado se imiscuía na vida dos cidadãos, mais força obtinha.

Esse poder despótico, como sói acontecer, foi, passo a passo, gerando uma situação de impunidade e de irresponsabilidade no seio dos administradores, porquanto seus atos, ao invés de servirem ao bem comum a que se destinavam em princípio, estavam, no mais das vezes, causando danos ao povo. Desponta, assim, o Estado totalitário ou Etat Gendarm, de que nos fala Osvaldo Aranha Bandeira de Mello. Este, por sua vez, somente admitia a responsabilização de funcionários públicos individualmente quando agiam com dolo ou culpa, e, assim mesmo, com enormes dificuldades, pois, para acioná-los, o prejudicado precisaria da autorização do Estado, quase sempre negada.

A França, em meados do século XIX, foi a primeira nação a aceitar que o Estado deveria responder pelos danos que causasse. Principiou-se, desse modo, mesmo que timidamente, a teoria civilista da responsabilidade civil do Estado, embasada no instituto da preposição. Por ela, admitia-se ser o agente um representante do Estado, respondendo este pelos atos por ele praticados, quando agia nessa condição.

No Brasil, segundo CAHALI, a responsabilidade civil do Estado jamais foi posta em dúvida. Não obstante nossa primeira constituição republicana (1891) não ter sido clara a respeito desse instituto, sua presença é indiscutível, conforme se depreende da leitura de seu art. 82, pelo qual "os funcionários públicos são estritamente responsáveis pelas obras e omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim como pela indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os seus subalternos." (CAHALI, 1995, p. 28). Veja-se, também, o art. 13 da Lei 221, de 20 de novembro de 1894, fixando que "os Juízes e Tribunais Federais processarão e julgarão as causas que se fundarem na lesão de direitos individuais por atos ou decisões das autoridades administrativas da União." (op. cit. p. 28).

Em sede constitucional, pelo menos, de modo expresso, a Responsabilidade Civil do Estado teve sua primeira inserção na Carta de 1934, ao assentar que os funcionários públicos seriam solidariamente. responsáveis com a Fazenda Nacional, Estadual e Municipal, pelos prejuízos que causassem a terceiros por negligência, omissão ou abuso de poder, na forma de seu art. 171. Previa, também, nos seus §§ 1° e 2°, a ação de regresso contra o servidor responsável, assegurando que "na ação proposta contra a Fazenda Pública, e fundada em lesão praticada por funcionário, este será sempre citado como litisconsorte. Executada a sentença contra a Fazenda, esta promoverá execução contra o funcionário culpado." (CAHALI,1995, p. 29).

Posteriormente
, na Constituição Democrática de 1946, essa garantia constitucional ficou explícita e objetivamente consignada, ao afirmar que "as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.

Parágrafo único. Caber-lhes-á ação regressiva contra os funcionários causadores do dano, quando tiver havido culpa destes." (CARALI, 1995, E 29). Por igual, e de forma ainda mais clara e objetiva,dispunham os arts. 105 e 107 das Constituições de 1967 e 1969, respectivamente, que "as pessoas jurídicas de direito público responderão pelos danos que seus funcionários, nessa qualidade, causarem a terceiros. Parágrafo único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo." (op. cit. p. 29).

Finalmente, mantendo os mesmos princípios, a Constituição de 1988, a Constituição Cidadã, como ficou conhecida, ampliou, generosamente, a extensão dessa garantia, fixando em seu art. 37, § 6° que "as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa."(id. p. 29)

Lamentavelmente, entre nós, como se verá, a responsabilidade civil do Estado, conquanto tenha sido elevada à condição de garantia constitucional (art. 37, § 6° da CF), ainda não se assentou na consciência coletiva. Prova disso são as raríssimas ações reparatórias intentadas por quantos se viram atingidos direta ou indiretamente, em seus patrimônios, seja por ação ou omissão do Estado, mais acentuada, ainda, quando os danos sofridos decorreram não de uma ação direta do agente público, mas, particularmente, da sua omissão, quando legalmente isso não lhe era permitido.

No Brasil, adota-se a priori a responsabilidade objetiva, através da qual o administrado, para fazer valer seus direitos perante a Administração, necessita, tão-só, demonstrar o nexo causal entre o evento danoso e a conduta administrativa causadora ou ensejadora do dano. Contudo, como é sabido, há situações em que nem sempre é possível, objetivamente, determinar essa relação de causalidade pois alguns eventos, por sua própria natureza, derivam não necessariamente de uma ação do agente público, mas, ao contrário, decorrem de sua omissão. Quando isso ocorre, é forçoso que se providencie a devida apuração dos fatos, para só então pensar-se em reparação por parte do Estado. Está-se, pois, diante da chamada responsabilidade subjetiva ou com culpa, fruto da ação indevida ou ineficiente do Estado. Por ela, vê-se que o agente, culposa ou dolosamente, atuou ou omitiu-se de forma ilícita ou operou sem a eficiência esperada. Quando isso ocorre, a atuação estatal será sempre ilícita, o que não significa dizer que o Estado responderá somente quando agir com culpa ou dolo.

Casos há, a são a maioria, em que o Estado, mesmo agindo licitamente, poderá estar lesando os interesses de alguém e, como tal, deverá ser chamado a responder por esses danos.

A omissão ou a ineficiência estatal são uma rotina, qualquer que seja a esfera de poder. Por conta disso a em especial, face à passividade com que o homem comum tem aceitado a interferência governamental em sua esfera de proteção jurídica material ou moral, veio-nos o incitamento a escrever sobre o assunto, mais como demonstração de inconformismo com a situação reinante, do que pela ousadia de oferecer uma contribuição jurídica sobre um terra já tão explorado. Estaremos realizados se, por ventura, conseguirmos chamar a atenção de alguns, despertando-os do estado letárgico em que se encontram, a fim de que tomem consciência dos direitos que a Constituição Federal nos assegura. Por essa razão, procuramos enfocar, especialmente, os danos decorrentes da ausência, da inércia ou da ineficiência estatal. Estas, para nós, são as mais perniciosas formas de agressão aos direitos do cidadão, porque mais fáceis de ficar impunes.

Para ilustrar, citaremos alguns casos de que tomamos conhecimento, alguns deles, oficialmente, sem esquecer de inúmeros outros, estampados, diariamente, nos jornais, no rádio e na televisão. Todos os dias; muitos cidadãos são transformados em vítimas indefesas do poder estatal, em razão do desvalor conferido aos cidadãos e, em particular, à coisa pública, por parte de administradores despreparados ou mal intencionados. Como não poderia ser de outro modo, traremos à colação algumas decisões de nossos tribunais, para que, através delas, sintamo-nos estimulados a buscar a devida reparação. Agindo assim, estaremos contribuindo para o exercício pleno de nossa cidadania.

Está assentado na sabedoria popular que não se deve buscar a virtude através de atitudes extremadas. Isso não implica que devamos abrir mão de nossos direitos, face às dificuldades que seu exercício nos impõe, notadamente quando tais direitos são violados, omissiva ou comissivamente, pelo Estado. Pelo contrário, que isso nos sirva de estímulo a que mantenhamos atenta vigilância sobre as ações governamentais, a fim de que não venhamos a sofrer, direta ou indiretamente, quaisquer prejuízos.

Daí, ser imperioso que não deixemos, sem apuração todo e qualquer dano causado à coletividade. Se assim procedermos, estaremos assegurando tanto a reparação quanto o ressarcimento ao erário, em ação regressiva do Estado contra os que, efetivamente, deram causa aos danos, quando for possível a sua individualização. Caso contrário, estaremos contribuindo para a impunidade e, o que é mais grave, arcando indiretamente com tais prejuízos, uma vez que são pagos com os recursos oriundos dos impostos arrecadados de todos nós. Pagar sem apurar as responsabilidades é assumir, indisfarçadamente, a teoria do risco integral, segundo a qual basta provar-se o dano para ensejar a reparação. Noutras palavras, restando provado que o cidadão sofreu o dano, não importará saber se o mesmo se deu por culpa da administração. Neste caso, é como se estivéssemos de posse de um cheque em branco, cuja relação subjacente não se leva em conta. Seria por demais danoso para o Estado e, por conseqüência, para os demais cidadãos, se o Estado viesse a responder por todo e qualquer dano sofrido por seus administrados, sem qualquer discussão, porquanto sabemos que, no mais das vezes, significativa parcela de tais eventos, decorre da imprudência, ou negligência destes, e não da ação do governo.

Eis a razão por que devemos pugnar pela apuração das responsabilidades, para que os demais cidadãos não sejam, de algum modo, atingidos, direta ou indiretamente, uma vez que em nada contribuíram para a causação do dano, e, assim, não tenham que arcar com mais esse ônus.

A responsabilização do Estado, fundada na omissão, deve ser perseguida a todo custo, não mais se admitindo qualquer forma de impunidade, ou incúria administrativa na apuração das responsabilidades. Quando os atos ou omissões resultarem do comportamento de seus agentes, qualquer que seja a forma com que se apresentem, são perfeitamente tipificados como omissão, e, por conseqüência, indenizáveis.

A omissão estatal é talvez a principal "causa" de danos irreparados, particularmente por requerer do lesado a prova de que o estado não agiu, quando a isso estava juridicamente obrigado. Pox outro lado, não podemos esquecer os casos em que não se pode, precisamente, individualizar a culpa funcional, isto é, quando não é possível atribuí-la a este ou àquele servidor. É o que se convencionou chamar de culpa anônima. Assim sendo e uma vez demonstrado o nexo causal, responderá o Estado pelo dano, na condição de ente gerador da situação de risco.

A jurisprudência brasileira, sem embargo da ainda incipiente consciência coletiva, está prenhe de exemplos de responsabilização do Estado por omissão de seus agentes, como veremos a seguir:

RESPONSABILDADE CIVIL DO ESTADO - INUNDAÇAO DECORRENTE DE CHUVAS ANORMAIS E OBSTRUÇÃO DE GALERIAS - FALTA DE SERVIÇOS - CULPA ANÔNIMA - CONFIGURAÇAO.
"Responsabilidade civil do Município. Inundação Decorrente de Chuvas Anormais e Obstrução de Galerias. Falta do Serviço. Culpa Anônima da Administração. Dever de Indenizar os Danos Sofridos pelo Particular. Embora não seja a chuva agente do Estado, o que, em princípio, afasta a sua responsabilidade objetiva, responde a Administração pelos prejuízos por ela causados ao particular se resultar provado que a falta do serviço concorreu decisivamente para o evento. Há falta do serviço quando este não funciona, funciona mal ou funciona tardiamente. Na espécie, provado pericialmente que as chuvas, não obstante anormais, não teriam causado a inundação se as galerias estivessem desobstruídas, resulta configurada a chamada culpa anônima da Administração que, por si só, afasta a alegação de força maior. Recurso desprovido."(Ac. un. da 2a C. Civ do TJRJ - AC 1.320/95 -Rel. Des. Sergio Cavalieri Filho - j 13.06.95- Apte.: Município do Rio de Janeiro; Apdo.: Condomínio do Edifício Solmaior -DJ RJ 1 01.02.96, P.188 - EMENTA OFICIAL - in Repertório IOB de Jurisprudência - 2a. quinzena de março de 1996, n° 6/96 p.116.

O aresto retrata, com fidelidade, a chamada culpa anônima, ou seja, aquela que não pode ser atribuída a determinado agente público. No caso sob comento, o que falhou foi o serviço, como tal, a não o funcionário. Fatos como esses são corriqueiros, mormente nas grandes cidades. Aqui entre nós, podemos citar como exemplo o rompimento do "dique-fusível" , construído pela Companhia de Águas e Esgotos do Estado do Ceará -CAGECE em um dos açudes que abastecem a cidade. O citado dique foi construído com a finalidade de aumentar a capacidade de armazenagem daquele reservatório. No entanto, logo se mostrou ineficiente e prejudicial à população, visto que se rompeu, em razão das fortes chuvas caídas nas nascentes dos rios que alimentam o referido reservatório. Como conseqüência, observou-se o alagamento de inúmeras residências fincadas às margens do Rio Cocó, causando sérios prejuízos aos ribeirinhos e colocando em risco sua própria segurança.

Depreende-se, pois, que, não fora a construção do citado "dique-fusivel", o açude não teria sido sobrecarregado e conseqüentemente não teria rompido, evitando-se, assim, as enchentes, que tantos danos causaram à população.

O mais grave de tudo isso é que não se ouviu falar em qualquer reparação por parte da empresa estatal ou da construtora responsável pela obra, conquanto devidas, solidariamente, por ambas, nos termos do § 6° do art. 37 da CF Houve, como de costume, muita falação por parte de alguns políticos, especialmente no âmbito da Câmara Municipal de Fortaleza, não passando de mera ação demagógica e politiqueira, a exemplo da Audiência Pública realizada para discutir o problema. Além dessas manifestações, nenhuma outra medida, seja administrativa ou judicial, foi adotada contra a CAGECE, responsável direta pelos danos. O governo estadual, por seu turno, limitou-se, a prestar socorro às vitimas, retirando-as da área de risco, a fim de que não morressem afogadas.

Por ser de difícil individualização, a culpa recairia sobre o corpo dirigente da companhia e dos construtores. Forçoso é reconhecer ser esta a forma mais grave de culpa administrativa, particularmente pelo fato de que a própria administração dificulta a apuração, negando-se a fornecer as informações necessárias ao esclarecimento do fato. Dai resultarem impunes os que, flagrantemente, são desidiosos na condução dos negócios públicos, notadamente porque não há, por parte desses servidores, uma consciência de que o seu agir, a sua vontade, expressos nessa condição, representam o próprio Estado. Assim, não compreendem que, se errarem, foi o Estado que errou; se causarem danos, terão sido causados pelo Estado, porquanto deveriam saber que ele não atua por força própria, mas pela vontade de seus agentes, observando ou não as leis.

Muitos outros exemplos de culpa administrativa poderiam ser citados, sejam por culpa in vigilando ou por culpa in eligendo, como por exemplo:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - MORTE DE PRESO - CULPA'IN VIGILANDO'

"Indenização. Estado. Morte de preso na penitenciária. Teoria do Risco Integral. Suspeita de suicídio. Condenação. Recurso desprovido. Pela teoria do risco integral adotada pelo nosso sistema jurídico-constitucional, a pessoa jurídica de direito público responde sempre, uma vez que se estabeleça o nexo de causalidade entre o ato da Administração e o prejuízo sofrido, não se cogitando se houve ou não culpa, para concluir pelo dever de reparação. É dever do Estado zelar pela integridade física de seus presos, conforme inserido no art. 5°, XLIX, da Carta Magna. Deriva daí o dever de guarda e vigilância sobre o preso. Pela teoria do risco integral, quer o preso tenha sido morto, quer tenha cometido suicídio, espontaneamente ou motivado, a pessoa jurídica pública responde, em tese, pela morte, no mínimo por culpa in vigilando. 'O dano decorrente da morte de uma pessoa ligada a outra por vínculo de sangue é presumido. Daí o direito à indenização'(STF, re n. 59.538, rel. Min. Djaci Falcão). Consoante jurisprudência do STJ, consolidou-se o entendimento no sentido de considerar a presumida sobrevida da vítima como sendo termo final do pagamento da pensão, tomando-se por base a idade provável de 65 anos, haja vista não se pode presumir que a vítima, aos 25 anos, deixaria de ajudar seus .familiares, prestando-lhes alimentos (Resp 28.861-PR, 4a T, rel. Min. Sálvio de Figueiredo, in RT 698/237).

Para muitos, este é um típico caso de aplicação da teoria do risco integral. Longe de nós, portanto, a pretensão de contestar as afirmações do eminente julgador, sobretudo por não conhecermos todo o acórdão. Mesmo assim, achamos que a aplicação da teoria do risco integral, ao caso concreto, foi exagerada, visto que o Estado, não obstante tenha o dever de zelar pela integridade física dos presos, não poderia, no caso, colocar um guarda na porta de cada cela a fim de protegê-los. A culpa do Estado no caso somente foi constatada após exaustiva apuração, por meio do competente inquérito, que provou ter o Estado culpa no evento, ao negligenciar na apreensão de instrumentos ou no afastamento dos meios necessários à prática do suicídio, como acabou acontecendo. Essa é a razão por que discordamos da aplicação da teoria do risco integral, posto haver-se constatado que o Estado teve culpa. Assim, não se há de falar, pois, em responsabilidade civil com base no risco integral. Houve, no caso, a aplicação da teoria subjetiva, uma vez que ficou provada a culpa in vigilando da Administração.

Em nosso meio, por igual, não é difícil a verificação de danos causados pela inação oficial propriamente dita, posto que, diariamente, deparamos com ela pelas ruas de nossa cidade. Basta que olhemos as obras malfeitas, em especial, as de saneamento, para constatarmos esse fato. O saneamento da cidade, devido à natureza de suas intervenções, tem deixado as vias públicas em precárias condições de tráfego, causando, com isso, enormes prejuízos à população, não só pelos cansativos desvios de percurso, mas, notadamente, pelos danos acarretados aos veículos, particulares ou coletivos, face à buraqueira existente, ou aos transtornos provocados pelas sobras de material não recolhido. Esse estado de coisas constitui-se em verdadeiro desmando administrativo, em flagrante e completa ausência do Estado.

Como exemplo, vejamos um fato que nos foi narrado por uma contribuinte, conhecida nossa, vitimada pelo desleixo de agentes públicos, materializado na falta de sinalização de uma via em obras. Em decorrência dessa omissão, a cidadã teve seu carro danificado, ao chocar-se com um amontoado de pedras, que seriam utilizadas na pavimentação de determinada artéria.

Houvesse, como era de esperar-se, a necessária sinalização o evento teria sido evitado e, obviamente, a cidadã não teria sofrido prejuízo algum. No caso sob comento, a contribuinte, como de direito, ingressou, administrativamente, com uma ação reparatória perante o órgão municipal responsável pela obra. Este, por sua vez, reconheceu o direito da referida cidadã, ressarcindo-lhe as despesas efetuadas com o reparo do veículo.

Como se vê, os danos foram reparados parcialmente, porquanto o Município somente lhe reembolsou as despesas com o conserto do automóvel, desconsiderando a depreciação do veículo, bem como os gastos efetuados com o aluguel de um outro veículo, enquanto se viu privada do seu. Trata-se, como demonstrado, de peculiar exemplo de omissão criminosa da Administração, uma vez que tais danos, por pura sorte, não tiveram outra magnitude.

Sem qualquer exagero, o incidente poderia ter alcançado a própria vida daquela cidadã. Em casos semelhantes, os contribuintes, de um modo geral, são indiretamente compelidos a responder por tais danos, vez que os recursos a ele destinados poderiam ter melhor aplicação, não fora a desídia administrativa. Isso só ocorre, na maioria das vezes, em razão da impunidade gerada pelo apadrinhamento político. Fatos similares a este podem ser ilustrados por decisões de nossos tribunais, como se vê a seguir:

RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - VEÍCULO QUE CAI EM VALA DE ESGOTO - CABIMENTO.
"Responsabilidade civil do Município. - É flagrante a responsabilidade civil do Município pelos danos ocasionados a veículo que, à noite, cai numa vala para passagem de esgoto, aberta há mais de um ano em viela estreita, e assim mantida desde então, sem sinalização. - Alegação não provada de excesso de velocidade do veiculo do autor, que não afasta, assim, a responsabilidade do réu. - Apelo desprovido. "(Ac. un. da 4a C Civ do TJ SC - AC 48.289 - Rel. Des. João José Schaefer - j 05.10.95 - Apte.: Município de Brusque; Apdo.: Valdêncio Mafra - DJ SC 06.11.95, P. 13 - ementa oficial - in Repertório IOB de Jurisprudência - 2a Quinzena de Janeiro de 1996 - n° 2/96 - página 24)

Outra forma de omissão, talvez de maior significação, observa-se, diariamente, nos serviços públicos de saúde. Todos os dias, desde o amanhecer, centenas de pessoas batem às portas dos hospitais e centros de saúde do sistema público de saúde, em busca de lenitivo para seus males. E o que vemos- Nada mais, nada menos do que a ausência de uma política séria de saúde, onde se dê prioridade à prevenção das doenças ao invés de sua terapêutica. Demais disso, tem-se a falta de gerenciamento de recursos materiais e humanos, o que tem contribuído sobremaneira para a não prestação de um serviço adequado às necessidades de cada um. Isso acontece não só em razão da carência de profissionais de saúde, mas também como resultante da falta absoluta de uma decisão política de fazer a coisa certa, ou melhor, de fazer cumprir as leis que regem o sistema. É a omissão criminosa de que já falamos. Sendo, como é, responsabilidade do Estado assegurar a saúde de seus cidadãos, em obediência ao mandamento constitucional, cabe-lhe adotar todas as medidas necessárias, para que isso se realize. Para tanto, deverá fiscalizar a aplicação dos recursos a ela destinados, cuidando de organizar adequadamente seus serviços, sob pena de responder civilmente por qualquer omissão. Assim, também, quando não operar com a diligência a eficiência esperadas.

Não faz muito, tomamos conhecimento de um caso perfeitamente tipificável como crime de omissão, fato ocorrido em determinado hospital público, quando um cidadão, vítima de atropelamento, foi levado àquele hospital. Lá chegando, foi examinado, inicialmente, por um traumatologista, que o encaminhou ao serviço de Raios-X, para exames complementares. Ocorre que, após realizar os exames, o infeliz não mais encontrou o "medico" que o atendera, inicialmente, porquanto havia terminado o seu "quarto de plantão", passando-o, então, aos cuidados de outro medico, que acabara de chegar. Este, numa demonstração de completa falta de respeito para com a vida humana e de compromisso para com sua profissão, determinou, após ligeira olhada nos exames radiológicos, que o paciente fosse internado para observação. Infelizmente, seu estado de saúde se agravou no decorrer da noite, requerendo imediata assistência de um medico. Conquanto tenha sido chamado pela enfermeira de plantão, o tal medico, que se achava em repouso, não se dignou de atendê-lo, como era de seu dever, deixando-o a mercê da sorte no restante da noite, o que provocou o agravamento ainda mais, de seu estado de saúde. No dia seguinte, quando nova turma assumia o plantão, o cirurgião-chefe foi informado da ocorrência, levando-o imediatamente ao centro cirúrgico, onde faleceu, por não resistir aos ferimentos sofridos.

Casos como este são encontráveis com bastante freqüência nos hospitais públicos de nosso país, embora poucas sejam as ações interpostas com vistas à sua reparação. Isso ocorre porque os familiares da vítima, em sua maioria, por desconhecerem seus direitos, contentam-se com o recebimento do seguro obrigatório, cuja a importância, por ser ínfima, cobre tão-só as despesas com os funerais.

No caso em apreço, uma vez munidos da cópia do relatório da sindicância ou do processo administrativo, juntamente com a cópia da necropsia, estariam os interessados em plenas condições de obterem sucesso numa ação reparatória, porquanto restou provado que houve omissão do Poder Público, quando negou a necessária assistência àquele infeliz.

No aspecto administrativo, não obstante tenha sido devidamente apurado, não houve sequer punição dos culpados, com a aplicação da pena merecida, uma vez que o processo administrativo-disciplinar concluiu pela aplicação da pena de trinta dias de suspensão para os indiciados, segundo fomos informados posteriormente.

Em que pese à ocorrência de casos como o relatado acima, onde a impunidade campeou, chegará o dia, temos certeza, em que os cidadãos vão estar cada vez mais cônscios de seus direitos e, por sua vez, o Estado passará, mais e mais, a tomar as devidas cautelas, para não incorrer em omissões como essa ou em quaisquer outras que possam dar azo à causação de danos a seus administrados. Demais disso, nunca é demais repetir que, para acabar com a impunidade reinante no que concerne à ação ou omissão dos servidores públicos, basta a pronta aplicação das normas estatutárias pertinentes, a fim de que tenhamos agentes mais atentos e mais cuidadosos no trato da coisa pública. Assim procederão porque são sabedores de sua responsabilidade perante suas ações ou omissões, na condição de representantes do Estado.

Pensarão dez vezes antes de abandonar seus postos de serviço ou de recusar atender a quantos busquem os serviços públicos, bem como procurarão evitar a criação de situações de risco, certos de que, se falharem ou se omitirem, serão chamados, regressivamente, a responder pelos danos que causarem.

O Estado deverá ficar de olhos abertos, adotando as providências que se fizerem necessárias, de modo eficiente e oportuno, sob pena de responder civilmente por sua ação ou omissão.

BIBLIOGRAFIA

01- BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 6a ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Malheiros Editores,1995;

02 - CAHALI, Yusef Said. Responsabilidade Civil do Estado, 2a ed. ampl., rev e atual. São Paulo: Malheiros Editores,1995;

03 - CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. 10a ed. rev e atual., Rio de Janeiro: Forense,1989;

04 - DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil. 9a ed. rev e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1994;

05 - DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 4a edição. São Paulo: Atlas, 1994;

06 - GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.