AUTENTICAÇÃO
DE DOCUMENTOS DE LICITANTES PELA COMISSÃO DE LICITAÇÃO- UMA QUESTÃO POLÊMICA
EUGÊNIA
GRACE DE SOUZA
Advogada,
pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Ceará | Ex - Coordenadora da Procuradoria Jurídica do Instituto Dr.
José Frota | Procuradora Assistente da Procuradoria Geral do Município de
Fortaleza | Membro da Comissão de Sistematização do Projeto de Lei de
Licitações do Município de Fortaleza
Chama-nos a atenção, o tema objeto do presente estudo, em vista da
interpretação simplista que muitos comentaristas têm dado ao caput do art. 32,
da Lei n.° 8.666/93 (que trata das Licitações e
Contratos Administrativos), com suas alterações posteriores, afirmativo de que
"os documentos necessários à habilitação poderão ser apresentados em
original, por qualquer processo de cópia autenticada por cartório competente ou
por servidor da Administração ou publicação em órgão da imprensa oficial."
Muito se tem perquerido sobre a possibilidade de o
servidor de órgão, entidade ou unidade, que realiza licitação, bem como sobre a
possibilidade da comissão, ter competência para autenticar documentos dos
licitantes, necessários à habilitação, quando de seu recebimento na abertura do
procedimento licitatório. Isso, face ao disposto no art.19 da Constituição
Federal; no art. 7° inc. V, da Lei n.° 8.935, de
18.11.94; ao art.365, inc. III, do Código Processo Civil.
O dispositivo especial mencionado cria para o servidor público, especificamente
para a Comissão de licitação, a competência para autenticar documentos dos
licitantes, necessários à fase de habilitação, assim considerados os elencados
nos art. 28 usque 33, que cuidam da habilitação
jurídica, qualificação técnica, qualificação econômica e financeira e
regularidade fiscal, quais sejam a cédula de identidade, o registro comercial,
o estatuto e o contrato social da empresa, o CPF, CGC, as certidões de
regularidade para com o INSS, o FGTS, as certidões tributárias, os atestados de
aptidão técnica, dentre muitos outros.
Ressalte-se que tais documentos fazem parte do acervo particular de cada
licitante cabendo, por conseguinte, a esse, a competência para tomar todas as
providências acerca da devida regularização documental, em cumprimento das
exigências legais para a participação no certame. Uma dessas providências é a
autenticação dos documentos a serem apresentados por cópias, conforme exigido
no ato convocatório.
Certamente, a mens legis da Lei n° 8.666 / 93 foi a de desburocratizar o
procedimento licitatório que os licitantes menos diligentes pudessem participar
da licitação, mesmo quando não lhes fosse possível recorrer ao cartório
competente, para proceder à autenticação de seus documentos e, até, quem sabe,
estimular a participação de um número mais acentuado de licitantes, em face do custo
zero da autenticação dos documentos.
O legislador, ao nosso ver, foi infeliz ao instituir, por meio do art. 32, da
Lei n° 8.666/93 a hipótese de o servidor também autenticar os documentos de
habilitação, o que nada mais é do que repassar um encargo do licitante para a
Administração, numa atitude paternalista e ao mesmo tempo perigosa.
Não se pode olvidar o fato de que a licitação é uma competição onde cada
licitante joga com as armas lícitas e ilícitas, muitas das vezes levando
parcela significativa a fraudar documentos oficiais, com o fim de se
locupletarem das mais diversas formas.
Ademais, nem todos os servidores públicos estão imbuídos de espírito público,
somando-se a isso os parcos salários que percebem, fato que enseja a
possibilidade de tais servidores, motivados por promessas ou mesmo por ganhos
fáceis e espúrios, virem a atestar autenticidade a documentos totalmente em
fraude, em benefício do eleito.
Questiona-se, por isso, onde ficaria o princípio da moralidade e o da
impessoalidade da própria Administração licitadora-
Considerando que somente com a efetiva entrega das propostas de Habilitação,
Preço e Técnica quando for o caso, é que se pode afirmar realmente o início da
fase executória da licitação. Será, este o primeiro contato oficial da Comissão
com os licitantes cabendo àquela as atribuições contidas no art. 6° inc. XVI,
da Lei n° 8.666/93, de "receber, examinar e julgar os documentos e
procedimentos referentes à licitação e ao cadastramento de licitantes."
É cristalina a inteligência da norma suso mencionada
quando determina que caberá à Comissão apenas as atribuições de "receber,
examinar e julgar os documentos", competindo-lhe o dever de aceitá-los da
forma como foram apresentados pelo licitante, ou seja, em original, em cópia
autenticada em cartório competente ou através de publicação em órgão da
imprensa oficial.
Vê-se pois, segundo o art. 7°, inc. V, da Lei n.°
8.935, de 18.11.94, e que trata dos Serviços Notariais e de Registros, que
"aos tabeliães de notas competem com exclusividade dentre outras
autenticar cópias".
Assim sendo, ao nosso ver, sendo a referida Lei especial quanto a
matéria relativa aos serviços notariais e de registros, veio retirar do
servidor público a prerrogativa de também autenticar fotocópias de documentos,
até então autorizada pelo Estatuto das Licitações e Contratos Administrativos
(Lex specialis revogat legi generali).
A título de argumentação poder-se-ia aventar a possibilidade de aplicar tal
faculdade quando os documentos estivessem inclusos em processos administrativos
em trâmite em órgão ou entidade da Administração, mas mesmo assim com cautela.
Mas para o caso em estudo, a situação é diversa. Os documentos
trazidos pelos licitantes, para a licitação, têm procedência estranha à esfera
de governo e de poder, aos quais servidor está vinculado funcionalmente. E, o
mais grave, sem que esse servidor disponha de conhecimento de técnicas
notariais, capaz de examinar com precisão a perícia o instrumento objeto da
autenticação.
Sabendo-se que a licitação consubstancia-se em um procedimento administrativo,
nos termos do art. 38, da Lei n.° 8.666/93, cujo
formalismo deve se assemelhar ao processo judicial, de acordo com entendimento
do eminente magistrado JESSÉ TORRES PEREIRA JÚNIOR 1, é de capital importância o mandamento contido no art.365, inciso
III, do Código de Processo Civil, no ponto em que dispõe sobre a força probante
dos documentos:
"Art. 365. Fazem a mesma prova que os originais:
(...)
III - as reproduções dos documentos públicos desde que autenticados por oficial
público ou conferidas em cartório, com os respectivos originais."
A Carta Magna, conforme seu art. 236, é taxativa em estabelecer
que lei especial definirá os serviços notariais e de registro, assim como suas
competências, peremptoriamente declarando que:
"Art. 236. Os serviços notariais e de registros são exercidos
em caráter privado, por delegação do Poder Público.
§ 1°. Lei definirá as atividades, disciplinará a responsabilidade civil
e criminal dos notários, dos oficiais do registro e de seus prepostos, e
definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário."
Tal assertiva faz com que o nosso entendimento não se confronte
com a inteligência do art. 19, da Lei Maior, que veda à União, ao Estado, ao
Município e ao Distrito Federal, negar fé aos documentos públicos.
Conforme leciona o mestre JOSÉ CRETELLA JUNIOR 2
"Documento público é todo papel escrito - certidão atestado,
diploma - assinado por funcionário público. Fé pública é a confiança que emana
dos documentos públicos elaborados pelo agente público. "Recusar fé em
documentos público" é o ato negativo e ilegal da não aceitação, como
autêntico, de papel escrito, fornecido pela autoridade credenciada do
Estado."
Continua o eminente jurista em sua alocução, que: Se a finalidade
dos registros públicos é a de "conferir autenticidade, segurança e certeza
aos atos jurídicos , tais atributos igualmente emanam
naturalmente dos "documentos públicos," que são autênticos, por
trazerem a "garantia da casa", a "marca de origem", a
"fé pública", valendo, assim, em todo território nacional, nas três
esferas."
Note-se que a Constituição fala em negar fé aos documentos públicos e não à
cópia desses. Frise-se por oportuno que nosso posicionamento em nada afronta o
art.19, da CF/88. Ao contrário, pretende demonstrar duas coisas: a primeira, a
de que a competência legal para a execução do ato de autenticar documentos está
definida em lei como sendo exclusiva do notário público; a segunda, a de que os
atos dos servidores públicos continuam a gozar de presunção de veracidade,
legitimidade e legalidade, mas apenas quando praticados dentro de suas
competências.
Fora, serão inválidos.
Leciona com clareza o jurista CAIO TACIT0 3 que "não é competente quem quer, mas quem pode, segundo a
norma de Direito".
Percebe-se por conseguinte, que o fundamento básico do presente estudo é a
questão da aplicabilidade do art. 32, da lei 8.666/93 alterada pela a Lei 8.883
de 08.06.94, ante a matéria nele enfocada, e o art. 7°, da Lei n.°8.935, de
18.11.94, considerando que ambas são leis ordinárias e de cunho nacional. A
primeira, no que concerne às normas gerais sobre licitação e contratos
administrativos. A última, quanto à matéria relativa aos Serviços Notariais e
Registro. Cuida-se de uma lei nova que derrogou os efeitos da lei anterior no
que com ela conflita.
A propósito das hipóteses de revogação da lei antiga por lei nova
em face das antinomias jurídicas a professora MARIA HELENA DINIZ 4 ensina que
"revogar é tornar sem efeito uma norma, retirando sua
obrigatoriedade. Revogação é um termo genérico, que indica a idéia de cessação da existência da norma obrigatória. Assim
sendo, ter-se-á permanência da lei quando, uma vez promulgada e publicada,
começa a obrigar indefinidamente até que outra a revogue. A lei nova começa a
vigorar a partir do dia em que a lei revogada vier perder a força. Em outros
termos, a data da cessação da eficácia de uma lei não é a promulgação ou
publicação da lei que a revoga, mas a em que a lei revogatória se tornar
obrigatória."
A revogação, segundo a especialista, é o gênero, cujas espécies
são a ab-rogação e a derrogação, sendo que aquela ocorre quando a nova lei
revoga totalmente a lei anterior pelo fato de regular inteiramente a matéria de
forma diversa e incompatível entre entre si. "A
derrogação, torna sem efeito uma parte da norma. A norma derrogada não perderá
sua vigência, pois somente os dispositivos atingidos é que não mais terão
obrigatoriedade... "A derrogação, como se vê, consiste na modificação
explícita ou implícita de parte da lei anterior."
A forma como ocorre, tanto a ab-rogação como a derrogação, poderá ser expressa
ou tácita. No primeiro caso, a norma revogadora declara expressamente qual a lei
que está extinta a todos os seus dispositivos, ou aponta os artigos que
pretende retirar do mundo jurídico. Na hipótese da revogação tácita existe uma
"incompatibilidade entre a lei nova e a antiga, pelo fato de que a nova
passa a regular parcial ou inteiramente a matéria tratada pela anterior, mesmo
que nela não conste a expressão "revogam-se as disposições em
contrário", por ser supérflua. A revogação tácita ou indireta operar-se-á,
portanto quando a nova lei contiver algumas disposições incompatíveis com as da
anterior, hipótese em que se terá a derrogação."
Esclareça-se, ainda, a respeito da Lei n° 8.935/94 (Registros Públicos) sobre a
diferenciação entre a norma geral e a especial para maior compreensão da tese
exposta, que envolve o princípio da especialidade, defendido pela eminente
MARIA HELENA DINIZ 5 . Assim, "uma norma é especial se possuir em sua definição
legal todos os elementos típicos da norma geral e mais alguns de natureza
objetiva ou subjetiva, denominados especializantes. A
norma é especial quando acresce um elemento próprio à descrição legal do tipo
previsto na norma geral, tendo prevalência sobre esta, afastando assim o bis in
idem, pois o comportamento só se enquadrará na norma especial, embora também
esteja previsto na geral. O tipo geral está contido no tipo especial."
(RJTSP, 29: 303)
Do exposto, é de se concluir que em vista do advento da Lei n.°
8.935/94, posterior à edição da Lei n.° 8.666/93, não
mais é facultado ao servidor público membro ou não de Comissão de Licitação,
autenticar fotocópias de documentos no momento da recepção das propostas de
Habilitação, Preço, ou Técnica, justamente pelo fato de que tais agentes não
dispõem de competência legal para a prática desses atos, agora de cunho
notarial.
A norma de Serviços Notariais e de Registro é clara e taxativa quanto a essa
competência, definido que somente os tabeliães estão autorizados por Lei a
praticarem atos de autenticação de cópias documentais, por delegação do Poder
Público.
NOTAS
1 Os autos do processo administrativo da licitação devem receber
tratamento formal idêntico aos do processo judicial" - COMENTÁRIOS Á LEI
DAS LICITAÇOES E CONTRAÇÕES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, pág. 244.
2 COMENTÁRIOS Á CONSTT'TUIÇÃO, vol. III, Forense Universitária,
p.1180 / 1181.
3 O ABUSO DO PODER ADMINISTRATIVO NO BRASIL, Rio,1959, p.128, op.
cit. In Direito Administrativo Brasileiro, Hely Lopes Meirelles, Malheiros
Editores, p.134.
4 LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO INTERPRETADA,
Saraiva, p. 64 / 65.
5 p.72
BIBLIOGRAFIA
PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres - Comentários à Lei de Licitações e
Contratos da Administração Pública, Editora Renovar,1996;
CRETELLA JUNIOR, José - Comentários à Constituição, volume III,
Editora Forense Universitária, 1990;
FERREIRA, Wolgran Junqueira -
Comentários à Constituição de 1988, volume I, Editora Julez
Livros, 1989;
CITADINI, Antonio Roque - Comentários e
Jurisprudência sobre a Lei de Licitações Públicas, Editora Max Limonad;
JUSTEN FILHO, Marçal - Comentários à Lei de Licitações e Contratos
Administrativos, Editora Aidê,1996;
BOBBIO, Norberto - Teoria do Ordenamento Jurídico - Editora
UNB,1996
DINIZ, Maria Helena - A Lei de Introdução ao Código Civil, Editora
Saraiva, 1996;