NORMAS DE ISENÇÃO E IMUNIDADE: UMA INTERPRETAÇÃO POSSÍVEL.

VALMIR PONTES FILHO(*)

Insistente chegou a ser a doutrina na sustentação da tese de que a interpretação das normas de isenção tributária haveria de ser "restritiva", por motivos que vão desde sua "excepcionalidade", até à circunstância de veicularem elas um "privilégio". De BERNARDO RIBEIRO DE MORAES a DINO JARACH, são inúmeros os respeitados juristas a defender esse ponto de vista.

Sem querer menoscabar os preciosos argumentos em sentido oposto, parece-nos necessário analisar a questão sob outro ângulo, partindo do pressuposto de que nem sempre as chamadas regras de interpretação, ainda quando positivadas, são assim tão cogentes, ou vinculantes, quanto possam parecer. Iniciemos por lembrar que a tentativa de "determinação" do sentido, da vontade ou da finalidade da lei há sido a questão crucial da Hermenêutica. Afinal, se a interpretação tem por escopo a busca desse sentido, vontade ou finalidade da norma jurídica, duas perguntas básicas devem preliminarmente ser postas: cada uma das normas do Direito teria um único sentido, vontade ou finalidade? Em caso positivo, como determiná-la(s)?

Importa vislumbrar, de logo, uma incontestável realidade, qual a de que a atividade hermenêutica importa o desenvolvimento de um esforço mental unificado, a compreender não só a interpretação em si mesma, mas a conseqüente e necessária aplicação do Direito interpretado. Isso quando não se faz imperioso recorrer aos instrumentos de integração (à vista das lacunas técnico-normativas 1 ,é dizer, das eventuais ausências de normas específicas voltadas à regulação de uma dada conduta 2 ). O fundamental é perceber, portanto, que ninguém interpreta a lei 3 senão para a ela dar aplicação, assim como impossível será "aplicar a lei" sem que antes se proceda à sua interpretação. Não é novidade alguma, portanto, afirmar-se que a interpretação vem a ser algo ínsito ao próprio Direito, atividade mental indispensável à sua realização 4 .

Com base em tal pressuposto, qual seria a técnica recomendável, a ser adotada pelo hermenêuta, com vistas à obtenção de uma "segura" (ou "correta") interpretação das normas jurídicas? De outra sorte, até que ponto o intérprete/aplicador do Direito está livre para fixar os efeitos - extensivos, restritivos ou meramente declaratórios, como em geral se diz - da interpretação/aplicação que vier a proceder? Encaremos cada uma das perguntas com a prudência dos iniciantes no trato do tema.

Superada, sem embargo das opiniões em contrário, a idéia de que o apego à literalidade da regra conduziria a porto seguro (de vez que a chamada "interpretação literal" outra coisa não pode ser senão o mero ponto deflagrador da atividade hermenêutica 5 ), chegou-se, modernamente, à indicação da técnica lógico-sistemática como aquela mais adequada à obtenção do fim pretendido. Assim, "correto" seria empreender labuta intelectual no escopo de indicar a razão objetiva da lei ( a ratio legis), por meio de raciocínio lógico (dedutivo ou indutivo), sem perder a perspectiva de que cada norma se vê inserta num dado contexto normativo (num ordenamento ou sistema jurídico), dele sofrendo direta influência, notadamente de suas regras de maior hierarquia e/ou generalidade. Sem existir isoladamente, como se fora um departamento estanque, cada regra do Direito se conecta com diversas outras do sistema a que pertence - inclusive e principalmente com a Constituição, fundamentante de todas as demais - e seu sentido só deve ser "fixado" sob o influxo dessa correlação inter-normativa.

Dizer apenas isto não nos parece suficiente, todavia. Mesmo que se adote a técnica lógico-sistemática (sem deslembrar que outra não deve ser adotada), persiste o problema da indicação "precisa", pelo intérprete/aplicador, do sentido da lei, na medida em que tal indicação não é produto apenas de um ato cognoscitivo, mas também de um ato de vontade desse mesmo intérprete/aplicador.

Tão desaconselhável quanto o apego à "literalidade" da lei, sem dúvida, é imaginar-se seja possível identificar a vontade da lei com a vontade do legislador 6. Assente é a boa doutrina em sustentar que a voluntas legislatoris se aparta, no momento da elaboração da norma, da voluntas legislatoris, até pelo fato que o intuito de quem a elaborou nem sempre se cristaliza ou materializa na lei em si mesma. Esta, uma vez trazida ao mundo jurídico, passaria a ter uma "vontade própria", embora "despsicologizada", como inteligentemente a denominou CARLOS AYRES BRITTO. A questão fundamental permaneceria intocada: por qual trilha deveria seguir o exegeta para descobrir essa "vontade própria" da lei?

A trilha da razão, dir-se-á. Ocorre que o próprio esforço racional tem limites, posto que ao homem - e a interpretação/aplicação do direito é atividade tipicamente humana - não parece ser dado o condão de conhecer as coisas (os objetos cognoscíveis) em sua inteireza ou plenitude, senão conhecê-las relativamente, depois de "filtradas" pela gama de sentimentos, paixões e idiossincrasias que inelutavelmente carrega consigo. Até mesmo quando se trata de realizar um conhecimento científico tido como "exato" -como o dos fenômenos físicos - hoje se concluiu que a interpretação deles nunca conduz a uma conclusão unívoca. Como observou o jovem e notável físico nuclear brasileiro MARCELO GLEISER 7, o estudo "... da realidade quântica prescreve um papel surpreendente para o observador dos fenômenos físicos: no mundo do muito pequeno, o observador não tem um papel passivo na descrição dos fenômenos naturais; se a luz se comporta como onda ou partícula dependendo do experimento, então não podemos mais separar o observador do observado. A noção de que uma realidade objetiva existe independentemente da presença de um observador, parte fundamental da descrição clássica da natureza, tem de ser abandonada. De certo modo, a realidade física observada ( e apenas essa! ), ao menos no mundo do muito pequeno, é resultado de nossa escolha" (o grifo é nosso).

Eis ser razoável afirmar , sem qualquer intuito de originalidade, que os objetos não nos chegam ao conhecimento do modo que eles são (ou supostamente sejam), mas, sim, da maneira que nossa relativa capacidade de conhecimento nos permite percebê-los, levada em conta a circunstância de que, enquanto observadores (ou intérpretes), interferimos, de um modo ou de outro, nos próprios objetos a conhecer.

Seria diferente em relação às normas jurídicas e à interpretação/aplicação que delas fazemos? Provavelmente não. Já bem ensinava GOFFREDO DA SILUA TELLES que interpretar é fazer renascer a regra em nosso espírito. É recriá-la. Se assim é, também não devemos perder de vista a singularidade de que, ao interpretarmos/aplicarmos uma lei, promovemos uma "redução" da norma geral a uma norma individual (KELSEN). De um preceito genérico, buscamos extrair uma norma especificamente adequada a um situação concreta, "pequena", destinada ao oferecimento de uma resposta institucionalizada a um problema da vida real, enfim. Neste desideratum, é forçoso que nos concentremos, primeiramente, no dito "problema", analisando-o em todas as suas peculiaridades e em todos os seus aspectos, sentindo-o em suas mais tênues manifestações e, não raro, com ele interferindo. É o que recomenda o pensamento tópico, segundo o qual o raciocínio do intérprete/aplicador há de obedecer a uma "seta dinâmica": do problema para o sistema jurídico, neste último buscando encontrar a(s) norma(s) - inclusive e principalmente a(s) principiológica(s) - que ofereçam a "melhor" ou "mais adequada" resposta ao dito problema; caso, numa primeira tentativa, essa "melhor resposta" não surgir (ao menos a ponto de contentar o interprete/aplicador), deve-se voltar ao problema e conseqüentemente ao ordenamento jurídico tantas vezes seja necessário, até a tarefa se tenha por (razoavelmente) cumprida. Não sem razão se poderá dizer que o esforço de interpretação/aplicação é, por isso, circular (como bem anotou MARCIO DINIZ). Ao cabo, o operador jurídico terá produzido uma decisão (a resposta institucionalizada a que aludimos, e que terá, acaso oriunda do Poder Judiciário, caráter de definitividade) a qual lhe parecerá "justa" para aquele caso. Ainda aí, porém, estar-se-á diante de uma norma jurídica (individual, como vimos), e que o é exatamente por prescrever uma conduto , admitir seu descumprimento e encontrar fundamento de validade em outra norma também jurídica (não se confundindo, pois, com a sanção propriamente dita).

Eis porque fica difícil aceitar a assertiva, tão ardorosa quanto brilhantemente defendida por JOSE SOUTO MAIOR BORGES - por cuja séria e fecunda produção científica nutrimos a mais profunda admiração - segundo a qual " as expressões interpretação extensiva ou restritiva configuram autênticos idiotismos da linguagem jurídica. Com efeito, não é possível ao intérprete estender ou restringir o alcance da lei. A exigência de interpretação restritiva ou extensiva é ditada pela própria norma. O método de interpretação não restringe nem amplia o preceito: a restrição ou ampliação do seu âmbito de incidência resulta objetivamente da norma interpretada... A mens legis é insuscetível de alteração pela via interpretativa" 8. É que parte o eminente Professor de uma premissa que nos parece, data venia, equivocada: a de que a mens legis existe bastante e integralmente em si mesma, exteriorizando-se quando da interpretação da norma, independentemente do "querer" do intérprete.

Há de ver, todavia - tal como dantes lembrado - que, sendo a interpretação feita pelo homem, será. exatamente ele, o homem-intérprete, a fixar (e veicular, por meio da proposição jurídica que elabora) a razão ou a vontade de uma dada lei. Ao fazê-lo, fará uso não apenas da razão pura, mas também, inevitavelmente, de toda a carga de emoções, preconceitos e ideologias impregnada em seu espírito. No máximo conseguirá ele dosar esses fatores, privilegiando o aspecto racional; mas nunca deixará de lado seus sentimentos, ou sequer homem será! Jamais se deve olvidar, enfim, que toda norma jurídica alberga um dado valor, nela feito inserir no momento de sua edição, valor esse, porém, captado pelo exegeta num dado espaço-tempo futuro (em relação ao da feitura da norma). Isso importa dizer que esse valor normativo será indicado, em certa medida, pela vontade do próprio intérprete-aplicador, e não dela extraído "automaticamente", como de uma máquina de calcular se extrai a raiz quadrada de um número qualquer.

Recorramos, a título de esclarecimento da questão, a um exemplo simples: diante de uma lei que conceda isenção do ICMS aos "fabricantes de calçados", poder-se-á considerar isento do imposto alguém que, em pequeno estabelecimento, manufature sozinho sapatos por encomenda? A um exegeta mais ortodoxo (apegado talvez à dita "interpretação literal") ocorrerá que a vantagem só há de beneficiar a quem produza calçados numa fábrica, em linha industrial; mas a outro, a quem os princípios da isonomia e da razoabilidade mais impressione (a par de aderir à técnica lógico-sistemática de interpretação) poderá parecer que a expressão "fabricante" deve ser substituída por outra mais adequada, como "produtores", com o que o artífice seria beneficiado com a isenção.

Perguntar-se-á se houve, no caso, uma interpretação com efeitos extensivos ou mera utilização da analogia. Pouco importa isto, neste passo, até porque a diferença entre ambas, se existente, é sobremodo sutil. O que é importante é perceber que a "mens legis" foi uma ou foi outra, a depender do intérprete, sem que se possa, em tom de verdade absoluta, afirmar que qualquer delas tenha sido uma interpretação "correta" ou "errada". Tanto quanto esta, qualquer outra norma jurídica - posta em conexão com as demais do sistema - terá uma "vontade", um "sentido" ou um "alcance" a ser determinado, caso a caso, pelo intérprete/aplicador.

O que se deve por claro, porém, é que esse intérprete-aplicador não se encontra inteiramente livre para indicar qual seja a mens legis. Ainda de KELSEN se extrai a insuperável lição de que essa liberdade esbarra da moldura normativa, a funcionar como uma muralha, um obstáculo a que a percepção lógico-racional do exegeta há de guardar mesura. Para além da moldura, estar-se-á saindo do próprio ordenamento e caindo no campo da insegurança jurídica. Voltando ao exemplo de que nos valemos, irracional, e portanto inaceitável, seria supor que a isenção alcançasse os produtores de guarda-chuvas ( estes, sem dúvida, postos ao largo da "moldura" normativa).

Tal não importa dizer que o ato de conhecimento dessa moldura -como fronteira dentro da qual a ação volitiva do intérprete/aplicador se desenvolve - também não acarrete certas dificuldades. Para alguns, a própria fronteira (moldura) pode parecer maior ou menor 9, e este é problema a exigir reflexão ainda mais profunda e cuidadosa.

A interpretação/aplicação do Direito, finalmente, só se tem como adequada quando feita à luz a sob o influxo das normas e princípios e princípios constitucionais. A Constituição, para além de ser a regra suprema do ordenamento e o estatuto da nacionalidade (por via da qual o poder se transforma em competências e, de resto, são resguardados os direitos individuais e sociais), influi na interpretação das demais regras do sistema a ela inferiores 10 . E ela própria, por sua vez, é um todo sistemático, o que autorizou ROQUE ANTONIO CARRAZZA a assim se pronunciar: "Sem dúvida a hermenêutica profliga o exame apartado de artigos da Carta Magna. Insulá-los, dissociando-os do todo harmônico a que pertencem, é encampar as idéias dos 'tecnocratas', que, arvorando-se em juristas, superestimam o método literal para a interpretação do Direito" 11.

Repisando-se: não apenas as normas infra-constitucionais, mas as regras da própria Constituição, hão de ser interpretadas de acordo com o "todo harmônico" em que se vêem inseridas e, principalmente, sob a direta influência dos princípios constitucionais, de larga generalidade e inspiradores cogentes de todo e qualquer esforço interpretativo. Os valores erigidos pela Lei Maior, pela via principiológica, em pilares de sustentação do ordenamento jurídico-positivo nacional, servirão de bússola bem afinada para o trabalho do hermeneuta. Destituídos de significado é que não podem ser, pelo valores relevantes que encerram, princípios como o republicano, o democrático, o da igualdade, o federativo, o da erradicação da pobreza, o da redução das desigualdades sociais, o da construção de uma sociedade justa a solidária, o do valor social do trabalho, o da dignidade da pessoa humana, o da busca do pleno emprego e tantos outros (CF, arts. 1°, 3°, 170).

Assim, se as leis que concedem isenção tributária - porque infraconstitucionais - devem ser interpretadas (ou ter seu alcance determinado) à luz da Constituição e das demais, mesmo comuns, que com elas se conectem, as concessoras de imunidade - estas de patamar constitucional - também hão de ser enxergadas sob o prisma dos princípios jurídicos que o sistema adotou. Isso sem excluir a possibilidade de estas virem a sofrer, excepcionalmente, até mesmo a influência de normas inferiores, quando o sentido da dada palavra ou expressão depender dessa recorrência 12 . Em qualquer hipótese, é fundamental que o dito "alcance" dessas normas se indique por meio de um esforço de interpretação-aplicação que considere o problema específico, o "caso" a ser examinado, a reclamar uma resposta institucionalizada e que certamente possuirá singularidades relevantes a partir das quais o esforço mental do jurista se deve movimentar. A depender de cada "caso" ao problema se dará uma aplicação (fruto de prévia interpretação) com efeitos restritivos ou extensivos, sem qualquer posicionamento apriorístico do intérprete-aplicador do Direito.

(*) o autor é Advogado, Professor de Direito Constitucional e de Hermenêutica jurídica da UNIFOR e da UFC e Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP.

1 Expressão utilizada na esteira do pensamento de MARIA HELINA DINIZ.

2 A presença de tais lacunas técnicas não importa dizer não seja o ordenamento jurídico completo, pleno, à vista da regra de fechamento do sistema, segundo a qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (CF, art. 5°, II); com efeito, à falta de uma regra que prescreva ser obrigatória ou proibida uma certa conduta, ter-se-á essa mesma conduta como juridicamente permitida (licita).

3 Entenda-se o termo no seu sentido mais largo.

4 Superada já foi, de há muito, a tese segundo a qual se devia buscar, por meio da interpretação, esclarecer a norma jurídica; como bem já restou explicado pelo doutos, interpreta?se necessariamente qualquer norma, obscura ou não, até porque só se chega à conclusão de que ela é clara por meio do esforço interpretativo.

5 As palavras de que a lei se utiliza não passam de "rótulos", às vezes não tão bem empregados, e hão de servir como um ponto de partida, e não de chegada, dessa empreitada interpretativa; a linguagem normativa, como qualquer outra, haverá de ser objeto de interpretação e chegará ao intérprete desta ou daquela maneira, a depender de circunstâncias várias, como adiante se tentará explicar.

6 Como bem anotava o insuperável e saudoso GERALDO ATALIBA, o sentido de uma dada lei independe daquele que lhe tenha querido dar seu criador; tanto isso é verdade que se por acaso o legislador haja mudado de vontade, nem por isso a lei por elaborada por ele ter-se-ia como “revogada”.

7 V. sua obra "A dança do universo – dos mitos da criação ao big-bang”, Companhia das Letras, 1997. n299.

8 "Isenções tributárias", Seg. Lit.,1980, 2a ed., ps.110/111.

9 Tem-se como inadmissíveis emendas constitucionais tendentes a abolir a forma federativa de estado (CF, art.60, § 4, 1); mas a que federação está a aludir a Constituição : aquela que pressupõe, segundo a doutrina tradicional, a existência de pelo menos duas esferas de governo- ou, ao contrário, a que foi criada pela própria Lei Maior, compreendendo, além da União e dos Estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal- Adotado o primeiro entendimento, seria possível excluir a pessoa política municipal do concerto federativo: o segundo - que nos parece mais "correto" - conduz a uma resposta negativa.

10 Tal não querendo dizer que uma norma inferior não influa na interpretação da própria Constituição; afinal, quando a Lei Suprema garante do "direito de propriedade", o conceito de propriedade se retirará da lei civil!

11 Curso de direito constitucional tributário", Malheiros, 8a ed.,1996, p.32.

12 Imagina-se que por "partido político" - a que se refere o art. 150,VI, c, da CF/88 - se deva entender a agremiação como tal considerada pela legislação eleitoral.