PENHORA
DO FATURAMENTO E PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
EDUARDO
ROCHA DIAS
Professor
de Direito Previdenciário a de Direito Constitucional da UNIFOR | Procurador
Autárquico do INSS Mestre em Direito
A crescente afirmação dos direitos e garantias individuais que
acompanha a evolução do constitucionalismo se pauta pelo reconhecimento da
necessidade de limitar o poder estatal. Tal limitação se faz nítida nos
chamados direitos fundamentais de primeira geração, direitos de liberdade e de
propriedade, que revestem uma subjetividade bastante característica como
direitos de resistência ou oposição perante o Estado 1 , tendo um conteúdo negativo: exige-se que o Estado se
abstenha de violar determinados bens jurídicos (a vida, a liberdade, a
propriedade etc). Tais direitos, juntamente com os
direitos fundamentais de segunda geração, que são os chamados direitos
econômicos, sociais e culturais, os quais exigem uma atuação positiva do
Estado, mediante o oferecimento de prestações (serviços públicos, saúde,
educação, previdência etc), são tutelados pela Carta
Magna brasileira de 1988.
A Constituição, em seu artigo 1º., define a República Federativa
do Brasil como um Estado Democrático de Direito. Urge, porém, atribuir à noção
de Estado de Direito um conteúdo material. Por Estado de Direito não se pode
entender simplesmente, segundo uma perspectiva formalista, aquele que pauta sua
atuação pelo respeito à lei. Como salienta Gustavo Zagrebelsky
2, a Alemanha nazista não deixou de ser um Estado de Direito se
por tal se entende a simples atuação segundo a lei.
O chamado princípio da proporcionalidade exerce um papel de relevo
na definição de tal conteúdo material do princípio do Estado de Direito. À
noção de proporcionalidade corresponde a idéia
intuitiva de justa medida, de necessidade e de adequação. Não é por acaso que a
primeira afirmação do princípio se encontra justamente em matéria punitiva, no
artigo 8º. da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o qual alude ao
imperativo de serem as penas "strictement et évidemment nécessaires". Para Cesare
Beccaria, deve haver "uma proporção entre os
crimes e os castigos" 3 .
Canotilho 4 lembra que no século XVIII a idéia
de proporcionalidade se vinculava também ao problema da limitação da atuação
administrativa do Estado frente à liberdade individual, sendo introduzida no
direito administrativo do século XIX como um princípio do "direito de policia". Assumiu, porém, em seguida, contornos mais
amplos, de princípio de direito constitucional. Nesse sentido, é igualmente
conhecido como princípio da proibição de excesso (em língua alemã, Übermassverbot) de toda a atuação estatal. Pode ser dividido
em três subprincípios: a) o princípio da conformidade ou adequação dos meios
aos fins pretendidos; b) o princípio da necessidade, segundo o qual o cidadão
tem o direito "à menor desvantagem possível" sempre que houver uma
atuação estatal, devendo esta revestir a "menor ingerência possível"
na sua esfera de direitos; c) o princípio da proporcionalidade em sentido
restrito, a predicar a ponderação entre a carga aflitiva da atuação estatal e o
resultado obtido no caso concreto, visando a determinar se o meio utilizado é
ou não desproporcional em relação ao fim.
Tais considerações são necessárias ao exame do tema deste estudo,
que busca identificar os limites para o exercício válido da chamada penhora do
faturamento. O processo de execução se caracteriza pela prática de atos
materiais tendentes a retirar do patrimônio do devedor bens necessários à
satisfação do direito do credor reconhecido em um título executivo 5 . Entre
tais atos se coloca a penhora, a "apreensão material, direta ou indireta,
de bens constantes no patrimônio do devedor" 6 . A
execução tem repercussão patrimonial, respondendo o devedor para o cumprimento
de suas obrigações com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as
restrições estabelecidas em lei (art. 591 do Código de Processo Civil). A
prática dos atos materiais de execução, porém, subordina-se ao princípio da
proporcionalidade. Toda ingerência estatal na esfera de direitos individuais
dos cidadãos deve se dar da forma menos gravosa possível. O direito positivo brasileiro
expressamente consagra tal princípio, de maneira cogente, no artigo 620 do
Código de Processo Civil: "quando por vários meios o credor puder promover
a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o
devedor". Tal regra se impõe tanto ao juiz, como à Fazenda Pública, quando
esta for exeqüente, já que o princípio da
proporcionalidade se impõe a toda atuação do Estado. Os atos materiais do
processo de execução deverão, ainda, observar a intangilibilidade
de uma série de bens reconhecidos pela lei como impenhoráveis, como, por
exemplo, o bem de família.
É essa a moldura que deve o intérprete observar na determinação da
possibilidade ou não de se determinar a penhora do faturamento. Por faturamento
se deve entender os rendimentos auferidos pelo exercício da atividade da pessoa
física ou jurídica. Tem, portanto, um sentido mais amplo que a simples receita
decorrente da venda de mercadorias, de serviços e de mercadorias e serviços,
abrangendo inclusive os rendimentos decorrentes do exercício de atividades de
não-comerciantes.
Há quem não aceite a possibilidade de tal penhora. Para Arnaldo Marmitt 7, por exemplo, tais rendimentos constituem capital de giro do
executado, "necessário para atender às necessidades da firma,
ordinariamente preferenciais em relação ao crédito em execução".
Tais rendimentos, porém, constituem dinheiro, e o dinheiro é
penhorável, nos termos dos artigos 655, inciso I, do Código de Processo Civil,
e 11, inciso I, da Lei 6.830/80. A jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça também admite a penhora do faturamento, dentro de certos limites, que
serão examinados mais à frente.
Lembre-se, inicialmente, que não se pode confundir o dinheiro
depositado em conta corrente, de que tem o executado disponibilidade, e a
receita decorrente do exercício de suas atividades, a qual muitas vezes já se
encontra comprometida com a satisfação das necessidades do executado, e cuja
constrição pode trazer sérias dificuldades à sua mantença. Daí porque se, por
um lado, não se pode negar a possibilidade de tal penhora, por outro lado não
se pode deixar de traçar limites para a operacionalização dessa providência.
Face ao princípio da proporcionalidade, e ante o comando do artigo
620 do Código de Processo Civil, tem-se que a medida constitui providência
excepcional, que somente deve ser requerida pelo credor e deferida pelo juiz na
hipótese de se demonstrar a inexistência de outros bens que possam suportar os
atos materiais de execução. Nesse sentido, se encaminha a seguinte decisão do
Tribunal Regional Federal da 4a. Região:
"1. Direito tributário. 2. Execução fiscal. Penhora do
faturamento. Indeferimento. Agravo de instrumento. 3. A constrição do
faturamento é medida de extremo rigor que somente deve ser admitida na falta
de outros bens para garantir o juízo. 4. Agravo desprovido" (Ac. un. da
1a. Turma do TRF da 4a. Região, Ag. 96.04.12056?5/RS, DJU 2 de 05.06.96, p.
38.336). |
O credor-exeqüente, portanto, deverá demonstrar a
inexistência de outros bens sobre os quais possa recair a penhora de modo menos
gravoso para o executado, juntando declarações ou certidões negativas de
cartórios de registro de imóveis, do DETR.AN etc. Demonstrará assim o exeqüente que diligenciou no sentido de localizar tais
bens, não restando outra saída que a via extrema da penhora do faturamento.
Há decisões do Superior Tribunal de justiça, aproximando a penhora do faturamento
do usufruto de imóvel ou de empresa, que exigem a observância do artigo 719 do
Código de Processo Civil, como se depreende do teor da seguinte decisão,
relatada pelo Ministro Ari Pargendler:
"Processo Civil. Execução fiscal. Penhora em dinheiro. A
penhora em dinheiro supõe a disponibilidade deste, não se confundindo com a
penhora do faturamento que exige nomeação de administrador na forma do artigo
719 do Código de Processo Civil. Agravo regimental improvido" (AgRg em Ag. 123.365-SP, DJU 1, de 03.02.97, p. 711). |
Por conseqüência, o credor-exeqüente
deverá apontar um administrador dos referidos recursos, bem como apresentar
forma de administração e esquema de pagamento, nos termos do artigo 719 do
Código de Processo Civil (RSTJ 56/338). Obviamente que tal somente deverá
ocorrer se houver concordância do devedor, tal como alude o artigo 722 do
Código de Processo Civil. Na verdade, não há como confundir o usufruto com a
penhora. Aquele constitui uma forma de pagamento da dívida. Caso o executado
deseje oferecer embargos, a solução que se apresenta é que o montante
penhorado, decorrente do faturamento do devedor, seja depositado em conta
corrente sujeita a juros e correção monetária. Garantido o valor da execução,
poderão ser interpostos os embargos, não cabendo falar de pagamento.
Em outro julgado, o STJ considerou a penhora de faturamento como hipótese de
penhora de estabelecimento (parágrafo lo., do artigo 11, da Lei 6.830/80),
reafirmando o caráter excepcional da medida, bem como efetuando distinção entre
a mesma e a penhora em dinheiro:
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O Superior Tribunal de Justiça também definiu como limite que o
valor penhorado não ultrapasse 30% (trinta por cento) do faturamento do
executado:
"A penhora do faturamento mensal de empresa não pode
ultrapassar a 30%, independentemente da distinção entre receita operacional
bruta e resultado líquido" (RT 695/107 e STJ, 1a. Turma, Resp 36.535-0-SP, Rel. Min. Garcia Vieira, DJU l, de
4.10.93, p. 20.524).
É evidente que tal percentual poderá ser reduzido, caso o executado
demonstre a necessidade de dispor de um volume maior de recursos para atender a
seus compromissos. A penhora do faturamento não pode chegar ao ponto de
inviabilizar o próprio funcionamento da empresa, com o que restaria violado o
princípio da liberdade de iniciativa, fundamento da República Federativa do
Brasil e da ordem econômica (arts.1o. e 170 da Carta Magna).
1 Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, São Paulo,
Malheiros,1993, p. 475. J.J. Gomes Canotilho,
Direito Constitutional, Coimbra, Almedina, 1992, p.
535.
2 Il Diritto Mite,
Turim, Einaudi,1992, p. 20 e ss.
3 Dos Delitos e das penas, São Paulo,Hemus, 1971, p.61.
4 Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 1992, p.386.
5 Araken de Assis, Manual do Processo
de Execução, Porto Alegre, Lejur,1987, p. 30-31.
6 Araken de Assis, op. cit., p. 368.
7 A Penhora - Doutrina a Jurisprudência, Rio de Janeiro,
AIDE,1986, p. 293.