INTERPRETAÇÃO
DAS NORMAS REFERENTES A REMOÇÃO A PEDIDO E LICENÇA PARA COMPANHAR CÔNJUGE A LUZ
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
JOSÉ
VIDAL SILVA NETO
Procurador
da República na Paraíba
Este trabalho tenciona investigar qual a exegese a ser dada ao
parágrafo único do art. 36 e parágrafo segundo do art. 84 da Lei n. 8.112/ 90,
sob a ótica dos arts. 226 e 227 da Constituição Federal que obrigam o Estado a
dar completa guarida à preservação da célula familiar e aos interesses das
crianças nela geradas.
Uma exegese literal poderia conduzir à aparente conclusão de que a
faculdade legal limitar-se-ia a beneficiar pessoas que já são servidoras,
quando, em decorrência de circunstâncias vinculadas a este seu cargo
originário, passam a ter de oficiar em outro espaço geográfico e lotação, no
mesmo cargo, ou em outro, dentro das hipóteses de remoção e provimento previstas
em lei. O mero deslocamento físico do indivíduo que decide assumir função
pública a ser exercida em outro Estado não permitiria que o seu cônjuge, também
servidor público, o acompanhasse, gozando da remoção ou de provimento precário
e exercício provisório em ofício compatível com seu cargo em órgão da
Administração Federal do local do destino.
Não condiz, entretanto, tal entendimento estreito com a finalidade
albergada no dispositivo legal, que, às claras, pretendeu concretizar em favor
de casais formados por servidores públicos federais, a garantia genérica da
proteção do Estado ao organismo familiar.
A norma procurou remediar a hipótese de separação fática entre
servidores casados, derivada do exercício funcional em localidades distintas.
Essa circunstância colocaria em risco por si só, dada a cessação da vida
marital e salutar convivência dos parceiros, a estabilidade da instituição
familiar, considerada tão valiosa no Pacto Social que ora nos rege.
O preceito alcança todos os que estão sob a égide do Estatuto do
Servidor Público. Basta à incidência que ambos os cônjuges, dotados da condição
de servidores na ativa, corram o risco de separação de corpos em virtude do
exercício dos respectivos misteres administrativos, sejam quais forem as
contingências que o determinou, em locais distintos.
A partícula "deslocamento" inserta na regra, não quer
significar tal ou qual espécie jurídica de provimento ou remoção, de forma a
excluir as demais. Isso conduziria à inevitável e ilógica inferência de que a
lei dispôs em parte de conformidade com sua razão de ser, e, de outra parte, em
sentido contrário.
Ad argumentandum tantum, se o vocábulo
"deslocamento” indicasse exclusivamente a hipotética remoção de ofício de
cônjuge de servidor, e não a primeira investidura em cargo ou função pública,
ou remoção a pedido, concluir-se-ia que a lei só está a proteger um grupo de
casais de servidores, ou seja; o em que um dos membros foi sujeito a um
específico modo de transferência. Tratando-se de outro tipo de transferência,
considerada lícita pelo ordenamento e pela administração, como a remoção a
pedido quando haja vaga e precisão no quadro do lugar pretendido ou investidura
originária em cargo, conquistada por um dos cônjuges, a instituição familiar
ficaria ao relento de qualquer atenção.
Ora, à evidência, o parágrafo segundo do art. 84 do Estatuto do
Servidor não tornou dispensável ou proibida providência da Administração no
fito de zelar pela união matrimonial e familiar dos seus servidores, no tocante
a alguns casos em que se apresente a possibilidade de que um vá exercer
legalmente suas funções em local diverso do outro. A interpretação da lei não
descamba no absurdo. Impôs o ditame, ao revés, que, adquirindo a pessoa a
condição de servidora, seu deslocamento físico para exercer legalmente suas
funções do cargo em local distinto do em que seu cônjuge é também servidor,
seja qual for o motivo que o determinou, primeira investidura, remoção de
ofício, remoção a pedido ou quejandos, gera o dever para a Administração Federal,
direta, autárquica ou fundacional, de dar lotação provisória ao Ultimo no local da transferência, desde que para atividade
compatível com seu cargo anterior.
Não há margem de discricionariedade para a Administração, em
segundo a oportunidade e as circunstâncias, negar o pedido do casal. O
"poderá" veiculado na norma fica ao critério das conveniências do
casal, de operacionalizar ou não a transferência em seu favor, como melhor
aprouver aos cabeças da instituição familiar. Portanto, a regra é vinculativa
do proceder da Potestade.
É idêntica a inteligência a ser extraída do parágrafo único do
art. 36 da Lei n. 8.112/90. Entendimento outro levaria ao choque do preceptivo
com os arts. 226 e 227 da Constituição Federal, ao chancelar a penosa situação
em que, para fins de subsistência própria e dos filhos, os membros do casal
consentissem em se afastar para não perder parte de sua renda familiar,
prejudicando, assim, a convivência entre si e o contato com os rebentos,
inevitavelmente separados de um deles.
De outro lado, é falaciosa a tese de que o interesse
"particular" dos servidores deve ser sacrificado à seara do interesse
público da Administração, ameaçado de sofrer prejuízo com a perda de efetivo em
seus quadros. Essa asserção advém de axioma genérico a inspirar o legislador de
direito administrativo, que pode e deve ser temperado ou harmonizado com outros
princípios, no momento em que vertido em termos de direito positivo.
No caso, foi o que aconteceu no ordenamento jurídico brasileiro. A
intocabilidade da união familiar não se reduz ao interesse particular de quem a
integra. É direito complexo, de natureza institucional, que o legislador
constituinte houve por bem em inserir entre os fins transcendentais do Estado.
Entre o funcionamento cotidiano dos órgão administrativos e a paz familiar de
seus agentes, valor este alçado a píncaros supremos, a Constituição de 1988 e o
Regime Jurídico Único preferiram privilegiar, sem dúvida, este. Aí o fundamento
dos comandos do art. 36, parágrafo único e art. 84, parágrafo segundo da Lei n.
8.112/90, que protegeram a estabilidade conjugal, em detrimento da manutenção
de servidor na unidade de origem. No entanto, esse dano é amenizado, e até
dissipado pela sua remoção ou pela incorporação do mesmo em função compatível
com seu cargo em repartição do lugar do destino, aliada à posse a investidura
do cônjuge em cargo vago em outro posto da Administração, onde tanto demandava
pessoal, que, por interesse da administração, realizou-se o concurso público em
que foi este aprovado.
A jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais, inclusive a da
5a. Região, não destoa do acima arrazoado. Senão, vejamos: "
Administrativo. Funcionário público federal. Remoção para acompanhar cônjuge. O
regime jurídico único (Lei n. 8112/90, art. 36, parágrafo único) garante ao
servidor o direito a remoção, a pedido, "para acompanhar cônjuge ou
companheiro" independentemente de vaga, o que alias,
é corolário da "especial proteção do Estado" dispensada à família,
pela Constituição Federal (arts. 226, 227 e 229)" (TRF da 1a. Região, Rel.
Juiz Daniel Paes Ribeiro, publicado no DJU de 19.09.94).
"Constitucional e Administrativo. Remoção de servidor para
acompanhar cônjuge. Direito a transferência de curso superior. Não se deve
distinguir a remoção ex officio
ou voluntária, quando se tratar de cônjuge ou companheiro. A educação é dever
do Estado, como também é seu dever proteger a família. Remessa oficial
improvida" (TRF 5a. Região, Rel. Juiz Hugo de Brito Machado, publicado
no DJU de 12.08.94). |
O Juiz Federal da Seção Judiciária do Maranhão, Dr. Ney de Barros Bello Filho, no Proc. N. 96.648-2, trouxe a última pá de
cal na resolução do problema:
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Interpretar os artigos ora analisados diversamente, de modo a
permitir que somente a remoção de ofício do servidor dê cabimento à remoção a
pedido de seu cônjuge, ou entender que a primeira investidura do servidor não
proporcione ao seu cônjuge o direito à licença para acompanhá-lo, é negar
vigência ao Texto Constitucional.
As normas guardam um relação de mútua interdependência e, ao mesmo tempo, só
ganham sentido se referidas ao sistema harmônico em que inseridas. O atributo
do todo implica na necessidade de um corpo normativo situado no topo
hierárquico do ordenamento, onde se busquem princípios que contenham os valores
maiores selecionados pela sociedade a ser regulada.
Se para a subsistência da norma legal no ordenamento, sem perigo
de choque com a Constituição, é preciso distorcer-lhe
o sentido extraído do método gramatical ou lógico, o intérprete não deve
titubear, impondo-se a escolha da interpretação que diga mais, menos, ou outra
coisa, do que o texto aparentemente quis. Não havendo chance de conciliar o
preceito inferior com o superior, declarar-se-á, como drástica medida, a
inconstitucionalidade daquele a aplicar-se-á diretamente ao caso a vontade
concreta da Constituição.
BIBLIOGRAFIA
JOSE AFONSO DA SILVA, in "Curso de Direito
Constitucional", editora RT, 1990, 6a Edição, São Paulo.
JOSE ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, in "Processo
Constitucional", editora Forense,1984, 1a Edição, Rio de janeiro.
MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILH0, in "Curso de Direito
Constitucional", Editora Saraiva, São Paulo, 1993.
SANTI ROMANO, in "Princípios de Direito Constitucional",
Editora RT, 1977, tradução Maria Helena Diniz.