O NOVO PERFIL DAS RELAÇÕES DE TRABALHO

KARLA DE ALMEIDA MIRANDA MAIA

Promotora de Justiça | Titular da 5a Promotoria Auxiliar da Comarca de Fortaleza-CE

O trabalho é uma atividade que altera o estado dos materiais encontrados na natureza, objetivando melhorar sua utilidade. Assim, em sua forma humana, foi chamado por Aristóteles de ação inteligente.

Karl Marx, em sua festejada obra O Capital, nos ensina que "uma aranha desempenha operações que se parecem com as de um tecelão, e a abelha envergonha muito arquiteto na construção de seu cortiço. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor das abelhas é que o arquiteto figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador" (in Harry Braverman, Trabalho e Capital Monopolista: A Degradação do Trabalho no Século XX. 3a Edição, Rio de Janeiro, Zahar Editores,1980). Assim, tem-se que o trabalho humano é consciente e proposital, ao passo que aquele desenvolvido pelos outros animais é instintivo.

Desse modo, o trabalho humano, ao longo da história, sempre foi alvo das atenções de estudiosos, quer seja no âmbito da Sociologia ou mesmo do Direito.

Os juslaboralistas nos ensinam que as raízes do Direito do Trabalho estão fincadas na conhecida Revolução Industrial, com o aparecimento da máquina a vapor. Tal fato acarretou o excesso de mão-de-obra, com o seu conseqüente barateamento. Esse quadro propiciou o surgimento das mais diversas formas de exploração da classe trabalhadora, a qual era submetida a condições desumanas de labor, com jornadas exaustivas, das quais ninguém era poupado, nem mesmo as mulheres e crianças.

Todavia, a introdução da máquina no processo produtivo não foi pacífica. Os trabalhadores, oprimidos pela ameaça de desemprego em massa, promoveram atos de resistência que variavam desde petições dirigidas aos Prefeitos até a efetiva destruição dos equipamentos. a qual teve na Inglaterra o seu apogeu, com o movimento conhecido como luddismo.

Nesse cenário de total liberalismo, era comum o obreiro sujeitar -se à condições de trabalho por demais aviltantes, como forma de assegurar a manutenção do emprego e, de resto, o sustento de sua família. Desse modo, a liberdade tão almejada pelo trabalhador voltou-se contra ele próprio, impondo-se a interferência do Estado para propiciar um maior equilíbrio entre as partes.

Daí surgiram as primeiras intervenções estatais, no campo legislativo, com o aparecimento de normas reguladoras dos limites das jornadas de trabalho, proteção do trabalho da mulher e do menor, dentre outras.

No Brasil, essa febre legislativa culminou com a edição da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, em 1943, diploma este que, além de compilar diversas leis trabalhistas esparsas já existentes, disciplinou inúmeros outras matérias até então carentes de regulamentação, de interesse da classe trabalhadora.

A CLT, marcada pelo caráter protecionista do trabalhador, ainda é o principal instrumento de regulação das relações laborais em nosso país. Todavia, algumas metamorfoses ocorridas no mundo do trabalho fizeram com que o legislador repensasse diversos dispositivos nela insertos, com vistas à adequá-los às novas condições que o mercado está a impor.

Nas décadas de 80 e 90, o mundo vem experimentando profundas alterações nas relações trabalhistas, capitaneadas por dois processos distintos: a) a desproletarização do trabalho industrial fabril, com a diminuição da classe operária industrial tradicional; a b) subproletarização intensificada, evidenciada com a expansão do trabalho parcial, temporário, precário, subcontratado e terceirizado.

Essas transformações geraram um quadro de desemprego estrutural, com a redução do pessoal fabril, industrial, em decorrência do quadro recessivo ou mesma da robótica ou microeletrônica. De outro lado, deuse um crescimento explosivo do setor de serviços.

Analisando esse cenário, Ricardo Antunes, em sua obra Adeus ao Trabalho- (Rio de Janeiro. Cortez,1994), preleciona que a subproletarização do trabalho encontra-se "presente nas formas de trabalho precário, parcial, temporário, subcontratado, terceirizado, vinculados à economia informal, entre tantas modalidades existentes. Como diz Alain Èihr (1991:89), essas diversas categorias de trabalhadores têm em comum a precariedade do emprego e da remuneração; a desregulamentação das condições de trabalho em relação às normas legais vigentes ou acordadas e a conseqüente regressão dos direitos sociais, bem como a ausência de proteção e expressão sindicais, configurando uma tendência à individualização extrema da relação salarial".

Ao lado da mudança do perfil da classe trabalhadora, verifica-se uma tendência de diminuição das taxas de sindicalização, especialmente na década de 1980. Essa queda é resultante natural do processo de terciarização e fragmentação que assola a classe trabalhadora, resultando, daí, o enfraquecimento do movimento sindical e, de resto, da própria classe obreira.

Para completar o quadro de mudanças acima relatado, o Brasil está sendo bafejado pelos ventos do neoliberalismo, com suas políticas voltadas para a flexibilização a desregulamentação das relações laborais, acarretando um maior enfraquecimento das relações laborais.

A recessão econômica profunda (ocasionando a perda de emprego de milhares de trabalhadores sindicalizados); a mudança na composição da força de trabalho (com a migração dos setores industriais para os setores de serviços); o incremento do trabalho precário, por tempo parcial e temporário e, por fim, a redução dos índices de sindicalização, formaram o terreno propício para a germinação das idéias neoliberais em nosso meio.

No Brasil, o neoliberalismo teve seus primeiros lampejos em 1990, quando da eleição do Presidente Fernando Collor de Mello e a edição do malfadado Plano Collor I.

O movimento neoliberal caracteriza-se por uma política industrial centrada na abertura comercial, pelo impulso no processo de privatização, desregulamentação e flexibilização das relações trabalhistas, austeridade nos gastos públicos e reestruturação das políticas sociais.

No magistério de Giovanni Alves, em amigo publicado na obra Neoliberalismo e Reestruturação Produtiva. As Novas Determinantes do Mundo do Trabalho (São Paulo, Cortez, 1996), "o ajuste neoliberal tende a adotar políticas deflacionárias, cujos exemplos são o Plano Collor, que conduziu o país a uma de suas maiores recessões da história econômica (a de 1991 /93) e, mais recentemente, o Plano Real, de 1994, que obtém sucesso em seus objetivos deflacionários, mas assentado numa política monetária restrita e numa abertura comercial que, em linhas gerais, dá continuidade à política neoliberal de Collor. Além disso, conduz o país a um processo recessivo que atinge os setores de ponta da indústria nacional, além de promover o desemprego, debilitando, portanto, a base de mobilização operária e sindical".

Dessarte, verifica-se que as políticas neoliberais postas em prática no Brasil e, de resto, em todos os países desenvolvidos e em desenvolvimento, centra-se em três grandes pilares: flexibilização das relações de trabalho, terceirização e globalização da economia.
Inicialmente, cumpre-nos salientar que flexibilização e desregulamentação são termos com significações inteiramente distintas.

Para o ilustre advogado e professor José Alberto Couto Maciel, a desregulamentação "admite a redução dos direitos trabalhistas visando a preservar a saúde das empresas e a implementar novas tecnologias, baixando o custo de produção. Afasta-se o Estado da relação de emprego e, em conseqüência, há uma autonomia das empresas para discutir direitos com sindicatos enfraquecidos, retornando-se a uma fase histórica de péssimas condições de trabalho, da qual se originou toda uma legislação protetora do trabalhador"(In Revista LTr,61-04/469).

Já a flexibilização. no magistério de Arnaldo Süssekind, "corresponde a uma fenda no princípio da inderrogabilidade das normas de ordem pública e no da inalterabilidade in pejus das condições contratuais ajustadas em favor do trabalhador, visando a facilitar a implementação de nova tecnologia ou preservar a saúde da empresa e a manutenção de empregos (In Revista LTr.61-01 /42).

A flexibilização leva em conta a idéia de abrandamento do rigor das normas trabalhistas, objetivando adequá-las às novas condições do mercado, tendo em vista fatores de ordem tecnológica, dentre outros.

Quanto à forma de prestar o trabalho, a flexibilização pode ser observada no abandono da clássica divisão entre trabalho subordinado e autônomo, para a adoção de novas formas de trabalho como o tele-trabalho, o trabalho a domicílio e outras formas similares, propiciadas pelo avanço da informática, modalidades estas mais frequentes entre trabalhadores detentores de maior grau de qualificação profissional, nos quais a subordinação jurídica rarefaz-se, volatiza-se.

No que tange ao tempo da prestação de serviço, a flexibilização traduz-se na celebração mais frequente de contratos por prazo determinado e de trabalho temporário, trabalho em dias alternados, part-time e com horários flexíveis.

No âmbito da legislação trabalhista pátria, a flexibilização encontra suas primeiras manifestações na Lei n° 4923/65, a qual permitia a redução de jornada e de salários, nos casos nela previstos. Outro exemplo típico de flexibilização vislumbramos na recente Lei n° 9.601, de 21.01.98, através da qual se instituiu o contrato de trabalho por prazo determinado, por meio de convenções e acordos coletivos, independentemente das condições previstas no § 2° do art. 443, da CLT, bem como se criou o chamado banco de horas extras, alterando-se o tradicional sistema de compensação semanal ora vigente.

Na esfera da jurisprudência, sinais evidentes da flexibilização podem ser notados da leitura dos Enunciados n° s. 342 (permite a efetivação de outros descontos no salário do empregado, além das hipóteses previstas no art. 462 da CLT) e 331 (o qual ampliou as hipóteses de prestação de serviços por terceiros), ambos do Colendo TST.

Por fim, no plano constitucional, a flexibilização já se faz presente, consoante se observa do art. 7°, incisos VI, XIII, XIV e XXVI, condicionada à prévia anuência das entidades sindicais.

Por seu turno, no escólio de Ari Possidonio Beltran, a terceirização "trata-se de serviço ou produção especializada, que tem como principal vantagem manter a empresa tomadora em sua atividade-fim, delegando certas tarefas ou as produções de alguns bens, a terceiros. É, pois, processo, de transferência, para terceiros especializados, que têm a incumbência da realização de atividades acessórias ou de apoio, liberando a empresa tomadora para maior aperfeiçoamento e concentração em sua atividadefim".(In Revista LTr.61-04/494).

A terceirização é atualmente uma das transformações produtivas mais temidas pelo movimento sindical, dado que acarreta uma fragmentação da classe trabalhadora, a qual perde o seu poder de associação e, conseqüentemente, de mobilização. Através dela, o empregado chega a perder o seu referencial de ambiente de trabalho e até mesmo de empregador.

Analisando o fenômeno da terceirização, Giovanni Alves (In Neoliberalismo e Reestruturação Produtiva? As Novas Determinações do Mundo do Trabalho, São Paulo, Cortez,1996) preleciona que "muitos autores contrastam dois tipos de terceirização no Brasil - um, considerado autêntico, que integra uma estratégia relacional, com tecnologias gerenciais de qualidade, buscando a parceria em todo fluxo produtivo, instaurando um relacionamento tipo ganha-ganha, e outro denominado espúrio, que integra uma estratégia de confronto, buscando reduzir custos, mantendo o antagonismo com os empregados e o movimento sindical, instaurando um relacionamento tipo ganha-perde".

Como exemplo da primeira espécie de terceirização temos aquele praticado pelas indústrias do setor de autopeças no interior de São Paulo. Já o segundo modelo de terceirização identifica-se com a indústria de calçados do Rio Grande do Sul, o complexo calçadista de Novo Hamburgo e a indústria de confecções do Rio de Janeiro.

Ari Possidonio Beltran (In Revista Ltr.61-04/494) assevera que "no piano individual, as principais distorções que têm sido apontadas pelos críticos da terceirização são: a terceirização em fraude aos direitos trabalhistas ou falsa terceirização; a contratação com empresas inidôneas que não respondem pelos direitos regularmente assegurados; o rebaixamento do padrão salarial e de benefícios; a inobservância das normas de segurança do trabalho; a terceirização com o objetivo de transferência de passivos trabalhistas ou ainda para a transferência de riscos do negócio ao terceiro e seus contratados".

No Brasil, as Leis n° s 6.019/74 (trabalho temporário) e 7.102/83 (serviços de vigilância e segurança) já permitiam a terceirização das atividades nelas previstas.

A nível de jurisprudência, o Tribunal Superior do Trabalho já disciplinou inteiramente a matéria, por intermédio do Enunciado n° 331, o qual revogou o de n° 256 daquela Corte Trabalhista.

Por fim, salientamos que o fenômeno da terceirização revela-se inevitável e cada dia mais em voga, principalmente no âmbito das grandes empresas. Devemos aprender a conviver com ele e, na medida do possível, procurar distinguir a verdadeira terceirização daquela tida como espúria e imoral, que objetiva, tão-somente, solapar os direitos trabalhistas da classe obreira.

A flexibilização e a terceirização representam fenômenos que integram um movimento de maior amplitude, qual seja, a globalização das economias.

Estamos a vivenciar a era da cibernética. Os milagres proporcionados pelo avanço da informática nos fazem perder a noção de tempo e de espaço. Hoje já é possível estarmos em Tóquio e, em questão de segundos, fazermos aplicações financeiras on line na Bolsa de Nova Iorque. As distâncias estão cada vez mais encurtadas, com a tecnologia existente no ramo do transporte aéreo. Mais recentemente, assistimos pela TV a exploração do Planeta Marte, feita por intermédio de um robô-sonda, comandado por ondas eletromagnéticas enviadas pelos cientistas da NASA, nos Estados Unidos.

Como se observa, o progresso caminha a passos largos e se espraia em todas as áreas do conhecimento humano, atingindo povos e nações.

Por conseguinte, as relações laborais não poderiam passar incólume a essa revolução tecnológica. Como já salientamos, a informática propiciou novas formas de trabalho, tais como o teletrabalho, o trabalho remoto e o trabalho a domicílio.

Com isso, os níveis de desemprego experimentaram substancial elevação, com a substituição do trabalho vivo pelo trabalho morto. Por outro lado, o excesso populacional em alguns países como a China, fizeram com que os grandes conglomerados empresariais intensificassem a exploração da mão-de-obra, ensejando uma sensível redução salarial e, de resto, de outros direitos trabalhistas.

Com vistas a se proteger dos efeitos deletérios da concorrência desenfreada e da liberalização, motivada pela entrada de produtos internacionais de baixo custo, os Países estão se reunindo em blocos econômicos regionais, como forma de autodefesa em benefício de seus produtores e consumidores. Nessa esteira surgiram a União Européia, o Nafta, o Asean e, por fim, o nosso conhecido Mercosul.

Para concluirmos, ressaltamos serem inequívocos os benefícios decorrentes do avanço tecnológico e, de resto, da própria globalização das economias. Todavia, consoante preleciona Jose Alberto Couto Maciel (In Revista LTr.61-04/469), "acima da globalização, e do interesse em aumentar a produção reduzindo custos, está a dignidade do trabalhador, devendo sempre surgir o Estado como agente moderador a fim de controlar melhor essa interferência externa, compensando, com a sua superioridade jurídica, a inferioridade econômica do operário (Gallart Folch)".

A flexibilização e a terceirização são fenômenos inexoráveis, dos quais não podemos fugir nem tampouco ignorar.

Todavia, compete-nos extrair desses institutos o que neles houver de melhor, em favor de ambos os integrantes da relação de trabalho, e não utilizá-los para benefício exclusivo da classe empresarial.

Fortaleza-CE., 13 de julho de 1998

KARLA DE ALMEIDA MIRANDA MAIA
Promotora de justiça, Titular da 5a Promotoria Auxiliar da Comarca de Fortaleza-CE